Por Mariana Ceci, compartilhado de Projeto Colabora –
Polícia Federal, Ibama e órgãos ambientais da Paraíba e do Rio Grande do Norte investigam resíduos encontrados no litoral dos dois estados
Aos sábados, Juliana Cardoso, de 26 anos, pega sua prancha de surf e sai cedo de casa em direção à praia de Tabatinga, no município de Nísia Floresta, distante pouco mais de 30 km de Natal, capital do Rio Grande do Norte. Conhecida pelo mirante de golfinhos e pela presença de tartarugas marinhas, Tabatinga é um dos locais mais procurados pelos natalenses que querem se afastar do movimento das praias urbanas sem ir muito longe de casa. Ao colocar o pé na areia da orla no último sábado (24), no entanto, a surfista se deparou com uma cena distante do cenário paradisíaco com o qual estava acostumada: montes de lixo, que já estavam sendo recolhidos por voluntários desde antes das 6h da manhã, tomavam a areia da praia. Entre o lixo, filhotes recém-nascidos de tartarugas marinhas tentavam superar os obstáculos formados por seringas hospitalares, sacos plásticos, materiais de campanha política e garrafas para chegar ao mar.
Tabatinga é uma entre pelo menos 10 praias entre os estados do Rio Grande do Norte e da Paraíba atingidas por toneladas de lixo na penúltima semana de abril. Desde o dia 21, quando o lixo foi avistado pela primeira vez, voluntários trabalham para coletar os dejetos e reduzir os danos ambientais nas praias, que ainda não haviam se recuperado do derramamento de óleo no segundo semestre de 2019. O derramamento é considerado o maior desastre ambiental que já atingiu o litoral brasileiro, e mais de cinco mil toneladas de óleo foram identificadas em 130 municípios.
Agora, as toneladas de óleo serão somadas às de lixo. Ao menos, 46 toneladas já foram recolhidas nos municípios atingidos. No Rio Grande do Norte, o material foi encontrado em seis municípios, e atingiu também praias turísticas, como Pipa e Barra do Cunhaú. A capital potiguar, que não havia sido atingida durante os primeiros dias, teve os primeiros registros de lixo identificados na orla na quinta-feira (28/4).
A Paraíba concentra a maior quantidade de dejetos recolhidos até o momento: foram 40 toneladas, que atingiram os municípios de Cabedelo, Conde e a capital João Pessoa. Técnicos das cidades atingidas e dos órgãos estaduais de meio-ambiente reforçaram as recomendações para que a população evite tomar banho nas praias atingidas enquanto a coleta e a análise de balneabilidade das praias prosseguirem em andamento.
A surfista Juliana Cardoso diz ter ficado surpresa ao se deparar com a cena. “Nunca tinha visto algo assim. Passamos mais de uma hora coletando lixo, que parecia que não acabava nunca. Quando chegamos, já tinha gente coletando e, quando saímos, a limpeza continuou”. Ela conta que chegou a encontrar um dos filhotes de tartaruga preso entre sacos e garrafas plásticas. “Como não sabíamos o que fazer, colocamos ela em um pote e procuramos ajuda para que nos explicassem como soltá-la”, completa.
Em geral, os filhotes de tartaruga marinha são capazes de chegar sozinhos ao mar. A capacidade de sair dos ovos, atravessar a faixa de areia e chegar à água é resultado de séculos de evolução. As tartarugas são capazes até mesmo de superar obstáculos naturais, como galhos e raízes que podem ter crescido sob o local onde os ovos estão enterrados. Os obstáculos produzidos pelos seres humanos, no entanto, são mais difíceis de superar. “É uma situação muito delicada, porque essas tartarugas possuem mecanismos evolutivos para chegar ao mar, mas não para se soltar de um plástico, de lixo como estamos vendo no litoral recentemente”, diz Mauro Lima, analista socioambiental da organização Oceânica, que faz o monitoramento do nascimento das tartarugas no litoral Sul do Rio Grande do Norte.
A sobrevivência da fauna e da flora marinhas é a maior preocupação dos pesquisadores que atuam na região desde 2019, quando mais de 100 animais morreram em diferentes estados em decorrência do óleo. Mauro destaca ainda que a presença dos dejetos podem causar um desequilíbrio para toda a vida marinha, que é intimiamente interligada. “As tartarugas evitam o crescimento exagerado de algumas espécies se alimentando delas e, com isso, permitem que outras espécies cresçam. Elas garantem a manutenção da diversidade e impedem a dominância de uma espécie sobre a outra”, destaca.
De acordo com Flávio Lima, do projeto Cetáceos da Costa Branca, vinculado à Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (Uern), o cenário atual é “catastrófico”. “As pesquisas já estimavam que levaria ao menos 10 anos para o litoral se recuperar do derramamento de óleo. Agora, estamos ainda mais distantes disso. É uma situação trágica, porque se trata de um aporte de lixo muito volumoso em uma área de grande importância para tartarugas marinhas”, afirma o pesquisador.
O Projeto Cetáceos faz o resgate e reabilitação dos animais vivos encontrados na costa, além de investigar a causa da morte daqueles que são encontrados sem vida. Segundo ele, a ingestão de lixo, em especial o plástico, é a terceira principal causa de morte da fauna marinha identificada pelo projeto ao longo de seus 20 anos de existência. Ela fica atrás somente da interação negativa com a pesca e de ferimentos provocados por facas, também relacionados à atividade humana. “De forma muito triste, elas confundem o lixo que fica misturado às algas, das quais se alimentam. Elas acabam ingerindo o plástico e aquilo fica envolvido no seu trato intestinal, provocando a morte por inanição”, explica.
Lixo pode ter sido originado em Pernambuco
A Polícia Federal e o Instituto Brasileiro de Meio Ambiente (Ibama) abriram investigações para apurar a origem do lixo que surgiu no litoral. O #Colabora questionou o Ibama sobre o andamento das investigações e o que foi apurado até então, mas não teve resposta do órgão ambiental. Apesar das investigações continuarem em andamento, há hipóteses que apontam para a possibilidade do lixo ter sido trazido da última enchente que ocorreu em Recife, entre os dias 9 e 14 de abril. “Foi encontrado nas praias de João Pessoa material gráfico de campanha de Pernambuco, daí a conclusão de que o lixo pode ter vindo do estado vizinho.”, disse Welison Silva, secretário de Meio Ambiente de João Pessoa e presidente da Associação Nacional de Órgãos Municipais de Meio Ambiente (Anamma).
As chuvas registradas em Pernambuco na segunda semana de abril conseguiram bater em quatro dias a média prevista para todo o mês, de acordo com o Boletim de Acompanhamento da Chuva em Pernambuco, divulgado pela Agência Pernambucana de Águas e Clima (APAC). Recife e sua região metropolitana foram as mais afetadas pelas chuvas, que provocaram diversos pontos de alagamento e inundações. Na zona Sul de Recife, um homem de 52 anos foi arrastado pela correnteza e teve seu corpo encontrado apenas 15 dias depois.
Através do Consórcio Nordeste, os estados estão atuando de forma conjunta para tentar identificar a origem do problema e as possíveis soluções. Na quarta-feira (27), o Consórcio anunciou a criação da “Rede de Apoio para enfrentamento do lixo no mar”, que determinou a ação conjunta para contribuir aos estados e municípios afetados. Eles pretendem criar um protocolo de procedimentos para orientar as cidades atingidas, e especialistas devem ser enviados para contribuir com o mapeamento, perícia e análise do material no RN e na Paraíba.
Impactos são ambientais e sociais
Fauna e flora não foram os únicos afetados pelos desastres ambientais que acometeram a costa brasileira ao longo dos últimos dois anos. Para as comunidades de pescadores artesanais, a chegada do lixo foi mais um obstáculo na tentativa de se restabelecer após o óleo. “É horrível para nós, porque associam nossa pesca à sujeira e deixam de querer comprar. Por isso somos os primeiros a ir para os mutirões de limpeza”, lamenta Susana Araújo, de 55 anos.
Susana é presidente da Colônia de Pescadores de Pirangi do Sul, que abarca a região de Tabatinga e outras praias do litoral Sul do Rio Grande do Norte. Ela conta que a chegada do lixo é o terceiro golpe que atinge as comunidades tradicionais de pescadores em pouco tempo. O primeiro, foi o óleo, quando tiveram de passar semanas sem poder pescar, à espera dos resultados de testes laboratoriais feitos para constatar se os animais haviam sido contaminados e se estavam aptos para consumo.
Mesmo após resultados que confirmavam que não havia contaminação, as vendas caíram, junto com a confiança da população na ingestão dos pescados. Em seguida, diz Susana, veio a pandemia. “O preço do pescado foi lá para baixo, caiu tudo. Mesmo assim, ninguém comprava, porque as pessoas em geral saíam para o supermercado e esqueceram as feiras livres e mercados abertos”, diz.
O lixo, diz Susana, “veio para coroar a desgraça”. “Além de tudo, é perigoso para quem circula na praia, porque havia seringas e outras coisas de hospital. Estamos trabalhando para tentar garantir que tudo fique limpo o mais rápido possível. É do mar que vem nossa sobrevivência, nosso sustento. Se os peixes e os outros animais não conseguirem viver, a gente também não consegue”.