E o doutor em Literatura Cícero César Sotero Batista, na coluna “A César o que é de Cícero”, vem a público para, em sua última crônica deste ano, desejar um feliz 2025 e nos levar, em sua máquina do tempo, aos anos 80 do papel picado e galeto do Frango Veloz.
Com a cabeça nas nuvens, lembro-me: num dia 30 de dezembro deixamos a mãe no aeroporto do Galeão e fomos de ônibus Frescão ao centro da cidade. Meu Deus, penso que talvez eu deva me precaver aqui, pois pode haver gente que não sabe mais nem o que é Frescão (ônibus com tarifa mais cara porque tinha poltronas reclináveis e ar-condicionado) nem o que é o centro da cidade – o lugar onde ficava o centro comercial do Rio de Janeiro até pelo menos quando novos ventos levaram a grana para lugares tais como a Barra da Tijuca. Para ser honesto, eu também já não sei o que é o centro. Já não sei andar por aqui.
Enfim, voltemos à história. Em vez de irmos direto para a casa, meu pai levou meu irmão e eu ao restaurante Frango Veloz no Centro. Ora, não sei se a memória me trai, se o nome do restaurante era esse mesmo, mas me lembro da porta de “saloon”, das banquetas onde os clientes de aboletavam, da longa mesa formada pelo balcão em U. Lembro-me do galeto assado, do molho à campanha, do arroz branco, da farofa, das batatas fritas, do refri, dos garçons imaculadamente vestidos.
Lembro-me da ligeireza com que se atendia àquela época de tempos de antanho – isto é, do início da década de 1980. Era no tempo em que se chamava refeição rápida de “minuta”. E não sei se já existia a máquina de fechar quentinha. Eu achava aquela máquina muito curiosa com aquela manivela.
Eu me recordo, ainda mais nessas épocas.
Tenho certeza de que, devido ao fato de ter ido almoçar com a família no restaurante Frango Veloz, quando penso na minha refeição predileta penso em um galeto com fritas. Se possível, acompanhado de um bom chopp escuro gelado servido naquelas tulipas de antigamente, compridas e talvez mais frágeis que as flores a que estão associadas.
Não é fácil encontrar lugares assim. Talvez seja mesmo impossível. Esse centro da cidade não existe mais. Ou será que existe para além da imaginação? O que é o centro da cidade?
Para não me perder ainda mais, pego-me pela gola ou pela mão e continuo a minha história. Era fim de ano. O chão estava coberto de papel picado. Mais sujo, portanto, do que costume. Era sábado. Não sei bem por que insisto neste ponto, o dia correto não é tão relevante assim para a narrativa, realmente não sei como explicar esse afã de precisão. Só sei que era sábado à tarde e a cidade estava vazia. Isso explica as ruas cobertas de papel picado.
Era uma tradição esquisita do centro da cidade, não sei se resistiu ao mundo contemporâneo. Jogavam-se pelas janelas do escritório, sei lá, as duplicatas e os balancetes e as danados recibos como se fossem confete e serpentina. Por uns instantes, os funcionários tão zelosos de seus afazeres perdiam as estribeiras e desmantelavam os seus arquivos.
Foi num sábado de fim de ano no Frango Veloz que vi pela primeira vez um homem revirar lixo em busca de comida. Ele metia a mão em um tonel onde lixo havia sido depositado. Da minha banqueta eu vi o homem revirar as carcaças dos galetos. Eu vi a cena inteira como se fosse um filme. Eu não me esqueci disso.
Quando li, tempos mais tarde, o poema “O Bicho” do grande Manuel Bandeira eu entendi que já havia gente a revirar o lixo na época dele. Nós produzimos lixos e bichos assim demais. Manuel Bandeira, poeta da vida inteira.
Já não zanzo pela cidade. Contudo, vezes há em que me ocorre uma ideia esquisita de reavistar aquele homem, de sair da minha banqueta, do meu banquete e lhe estender a mão, superando o meu próprio medo, o meu próprio asco. “Ele é um homem como eu”, digo para mim mesmo, tomando coragem dentro da minha cabeça – porque tudo isso ocorre dentro da minha cabeça, sem que eu revele o meu devaneio a ninguém. Aquele homem são esses homens todos debaixo dessas marquises replicados, revividos.
Sobre a minha cabeça passa um avião. E a tarde cai na altura do Palácio Capanema. E ouço ao longe o badalar do VLT passando feito o Bonde de São Januário. Me lembro e me esqueço cada vez mais. E em vez de papel picado talvez me venha cocô de pombo na cabeça, vá saber. A cidade tem dessas coisas. Dizem que cocô na cabeça dá sorte. Será?
Seja como for, que venha 2025.