“Que horas ela volta?” retrata o estatuto da desigualdade no Brasil

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Por Alessandro Soares, Justificando – 

Sem apelar ao derramamento de um rio de sangue ou lágrimas, o filme  Que horas ela volta?, de Anna Muylaert, se impõe como arte que é capaz de emocionar e, ao mesmo tempo, fazer pensar. Muitas vezes, ao longo do filme, tem-se a impressão de que algo vai acontecer: uma luta física, um conflito maior, um assédio, uma morte. Nada disso ocorre, o drama é a própria história. De um ponto de vista geral, trata-se de um filme que fala de maneira atual das contradições nacionais, da desigualdade, da exploração e dos conflitos de classes sociais.

Assim, pergunta-se: o que podemos ver efetivamente em Que horas ela volta? Vemos o desconforto de uma família da elite paulistana com os seus espaços e privilégios sendo ameaçados por parte de uma classe social que até ontem seguia um estatuto implícito de submissão imposta. Regina Casé interpreta uma tradicional empregada de família de classe média alta. Vive no quarto dos fundos, onde a janela dá para uma parede, veste branco quando no papel de babá do filho da família e sabe qual é o seu lugar geográfico na casa: da cozinha para trás. É consciente também das regras que deve seguir, embora estas não estejam escritas em lugar algum.




Jéssica é a filha da empregada que chega do Nordeste com o intuito de prestar vestibular em um dos melhores cursos de São Paulo. Aqui as imprevistas disputas por espaço começam. O seu comportamento é, de início, anedótico para os patrões da mãe. A mãe de Jéssica, Val, sabe o seu lugar. Uma empregada sabe o seu lugar. Já Jéssica, a filha da empregada, querendo entrar em uma das melhores universidades do País, é uma “desavisada”. Mas a história continua, e, ao conhecer a sala da casa, Jéssica não hesita, logo vê um livro de seu desejo na estante, uma surpresa para os donos da casa. “Sabe-se” que a classe média paulistana gosta de fazer coleções de livros, principalmente aqueles vendidos em série em bancas de jornal, sem nunca lê-los; assim, na estante funcionam como um enfeite passivo, demonstração de um conhecimento por rótulo, e não conteúdo. Contudo, a filha da empregada avisa: eu leio. Na geladeira da cozinha, a divisão é clara. Há o sorvete da família e o da empregada. Jéssica não concebe essa distinção ditada de início pela própria mãe. Na piscina em que a mãe nunca tinha entrado ao longo dos seus vários anos na casa, Jéssica também não se sente proibida e mergulha. Esse enredo de ocupação toma parte importante do filme e simbolicamente o marca: piscina, quarto de hóspede, sorvete, mesa de jantar, livros – pouco a pouco Jéssica se põe como uma igual.

Segundo a mãe de Jéssica, algo está fora de lugar. O desconcerto quanto ao mundo é visível quando esta compra um jogo de xícaras para dar de presente de aniversário à patroa. A foto da caixa do produto indica que para uma xícara branca há um pires preto, e vice-versa. Para Val, cada coisa tem o seu lugar. Cada qual deveria saber o seu lugar de forma natural, e o lugar da filha da empregada não é dentro da piscina, assim como cada xícara e pires devem fazer seu par perfeito pelas cores. Jéssica mata a questão rapidamente: “Isso aqui parece a Índia”. De fato, ao longo de toda a estadia de Jéssica na casa, em nenhum momento nada é proibido explicitamente pelos patrões da mãe. Contudo, Val alerta: “As pessoas oferecem as coisas para nós por educação, esperam que digamos ‘não, obrigada’”. Nesse procedimento tão comedido, vemos como os espaços são preservados de forma “consentida”. Diante de uma oferta bondosa uma negativa educada. As consciências saem limpas desse jogo de poder, e o mais importante, as elites não carregam o peso de impor o “não” ao compartilhamento de um privilégio. Essas são regras naturalizadas que Jéssica deveria reproduzir acriticamente. E Val não entende porque a filha não as reproduz.

No entanto, Bárbara não demora muito a reagir (reação). É preciso expulsar Jéssica da casa, ou seja, colocá-la em seu devido lugar. A piscina é esvaziada porque a patroa viu um “rato” dentro. Assim, uma primeira regra explícita é emitida: Jéssica não pode passar da porta da cozinha – ela tem que aprender qual é o seu lugar. Se as regras implícitas não funcionam, os atos devem ficar mais claros, os preconceitos surgem e o mando substitui a educação forçada. Jéssica já sabe que a sociedade não é estática e se recusa a aceitar a regra imposta.

Na sequência, o que temos é Jéssica sendo aprovada na primeira fase do vestibular, enquanto o filho dos patrões da mãe, Fabinho, é reprovado. Bárbara, a patroa, manda o aviso simbólico: “Ela só passou na primeira a fase; a segunda é bem mais difícil, não se anime muito”. O que resta de todo esse retrato feito anteriormente? Um verdadeiro conflito de posições entre as classes sociais. E demonstrando que os hábitos de classe dominante no cinema, por falarem durante a sessão, são de certa forma tão bárbaros quanto os da personagem Bárbara, é interessante observar que, enquanto eu via o filme, algumas pessoas comentavam no cinema: “Como essa mina (Jéssica) é folgada” – como se dissessem “Ela não sabe o seu lugar”. Verdade seja dita, uma parte da burguesia paulistana vai assistir ao filme e digerir mal o que viu. A reação aqui é mais do que esperada, já que se trata de uma cidade em que boa parte dos apartamentos de classe média e alta ainda ostentam um quarto de empregada ao fundo e há pessoas que impõem de maneira quase selvagem a roupa branca para a babá de seus filhos, (uma verdadeira estetização da dominação). Não tardará muito para que alguém diga também: “Vi um rato no cinema”.

Alessandro Soares é Coordenador da Faculdade Escola Paulista de Direito – EPD e Professor da Faculdade de Direito da Universidade Mackenzie

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