Primeiro foi necessário civilizar o homem em relação ao próprio homem. Agora é necessário civilizar o homem em relação à natureza e aos animais. Victor Hugo
E a coluna “A César o que é de Cícero”, do doutor em Literatura Cícero César Sotero Batista, aborda o momento cruel em que vivemos, no qual a humanidade põe fogo em seu planeta, feito um Nero ensandecido pela força da grana, que queima e destrói o que é fundamental para a nossa sobrevivência, colocando fogo nas próprias vestes, envenenando o ar que respira e o próprio prato de comida.
Vamos ao triste e belo texto:
“Da minha janela vejo parte do morro em chamas. É o tempo seco, penso. Não chove faz semanas, meses, anos.
Como algumas boas fotos, as de Lalo de Almeida publicadas na coluna do Elio Gaspari (22/9/2024) me causam incômodo: são bonitas, acima do chão demais. Entretanto, denunciam: o animal carbonizado; a silhueta de uma árvore formada por cinzas; o vermelho-laranja do fogo; o enxame de bombeiros no Piauí.
Recentemente, o meu filho foi solicitado a escrever uma redação sobre a Amazônia. Ele falou do que sabia, isto é, da riqueza do Bioma, da necessidade de sua preservação, entre outras coisas. Como não conseguimos avançar mais do que isso, focou-se então na parte técnica: na argumentação, nos conectivos, no evitar repetições, na pontuação.
Fiquei aflito porque me percebi ignorante a respeito do assunto. O que é um bioma? Sabe-se que, quanto mais ignorante, mais a boiada passa com facilidade. São em casos assim que penso no quanto é bom ter bons professores.
Resolvi me inteirar. Calhou de eu topar com uma sugestão de leitura na coluna de Fernanda Torres na Folha de São Paulo, jornal cujo slogan atualmente envolve a expressão “energia limpa”. A atriz falou de “Arrabalde”, série de reportagens do documentarista João Moreira Salles que trata da questão climática na Amazônia – mais especificamente a partir da perspectiva do estado do Pará, região onde ele estava hospedado.
Em uma forma talvez um tanto inusitada de leitura dinâmica, retive na memória a imagem de uma estrada: a BR 163. De um lado, o verde da floresta; do outro, a devastação. Para mim, tal imagem sintetiza o livro, que é muito bem escrito, muito doloroso, que mede o dedo na ferida: a Amazônia tem sido um arrabalde, uma terra de ninguém, a ser destruída para ser conquistada.
Pesando bem as coisas, e levando adiante a imagem da BR 163, digamos que o prognóstico do livro é sombrio. Se nada for feito, uma catástrofe de grandiosas proporções cairá sobre o planeta. O Brasil será um dos países mais afetados. E agora digamos que o prognóstico do livro é esperançoso. Se algumas medidas forem tomadas, teremos chance: a floresta tem um alto poder de regeneração, quase que como se ela soubesse se virar sozinha.
Tomadas ou retomadas, seria bom salientar, porque as medidas existem. Não podemos continuar expandindo as fronteiras, não podemos afrouxar legislações que punem o desmatamento. Há de se pensar em formas de desenvolvimento sustentável para a região em cárater de urgência.
É coisa à beça a se pensar. E é preciso se pensar rápido.
O grande ciclo de desmatamento na Amazônia promovido pela Ditadura tem por volta de cinquenta anos. Basta ver um filme como “Iracema: uma transa amazônica” (Dir. Jorge Bodanski, 1974), recém-restaurado, para aprender um pouco sobre a devastação como princípio ordenador.
Se ligarmos o livro ao filme, perceberemos que o roteiro se repete, poucas vezes deixou de se repetir. Desmatamento, derrubada e venda das árvores de valor comercial, tais como o mogno; mineração, atualmente com maquinário pesado; envenenamento dos rios; monocultura e pecuária, em geral de baixo rendimento; empobrecimento do solo; abandono da terra.
Voltando ao livro, dá para perceber que os pioneiros foram atraídos pelas terras que lhes foram oferecidas quase de graça, uma vez que havia interesse do Estado em “integrar” a região. E vieram os aventureiros à procura da grande fortuna com uma mão na frente e outra atrás.
Mesmo os casos mais favoráveis, de alto rendimento na agricultura e na pecuária, nos fazem perguntar se o investimento vale a pena ou não. Não vale, de acordo com o autor. Alguns países se recusam a comprar da gente o que é produzido na Amazônia porque nós não a protegemos.
Da minha sala vejo parte do morro em chamas. É o tempo bruto, penso. Não chove faz semanas, meses, anos.
A matéria do Elio Gaspari destaca a morosidade do governo Lula em tomar providências. O velho jornalista usa a cantiga “Ciranda, cirandinha” para ilustrar o modus operandi do governo Lula, que, na visão dele, se reúne, se reúne, e não sai do lugar.
O velho jornalista também assinala o modus operandi do governo anterior, que era absolutamente negacionista, que fez o que fez. Não é à toa que Bolsonaro para muita gente que desmata é um mito. Tudo isso é bem sabido. Cabe a Lula, com sua inteligência política, ser capaz de articular as diversos interesses em jogo em prol do melhor objetivo em comum.
Quando vi “Madalena” (Dir. Mardiano Marcheti, 2021), filme que se passa no Pantanal, não o do poeta Manuel de Barros, mas este de hoje desencantado pelas plantações de soja, me assombrei com o maquinário usado, que mais parecia um enxame de enormes grilos mecânicos.
Hoje entendo melhor o final do filme, que é assim: um grupo por travestis e uma prostituta pega um carro Gol caixinha e vai se embrenhar lá no meio do Pantanal, onde não tem nem Velho do Rio. É que a diversidade representada pelos gays, trans e tais ali terá condições de tomar banho de rio sem ser molestada, penso. Ali o território destinado à diversidade ainda é respeitado. O tamanho do Gol caixinha constrasta com o tamanho das Pick-ups que aparecem em outras cenas do filme.
Que o fogo não chegue até lá onde os bichos e as bichas estão. Que o fogo cesse, penso.
É noite, é dia, na minha janela vejo a mata arder. Secou-me o açude de ideias.
Ponho minha máscara e vou para a rua. Não chove faz semanas, meses, anos. E as carreatas passam por mim a anunciar os novos tempos enquanto eu torço pela chuva e pelo passarinho.
Eu não quero mudar de planeta.”
O Preguiçoso (Pablo Neruda)
Continuarão a viajar coisas
de metal entre as estrelas,
subirão homens extenuados,
violentarão a Lua suave
e ali abrirão farmácias.
Neste temo de uva cheia
o vinho começa a viver
entre o mar e as cordilheiras.
No Chile bailam as cerejas,
cantam as moças morenas
e nas violas brilha a água.
O sol bate a todas as portas
e faz milagres com o trigo.
O primeiro vinho é rosado,
doce como um menino pequeno,
o segundo vinho é robusto
como a voz dum marinheiro
e o terceiro é um topázio,
uma papoila e um incêndio.
A minha casa tem mar e terra,
a minha mulher tem grandes olhos
da cor da avelã silvestre,
quando chega a noite o mar
veste-se de branco e de verde
e depois a Lua na espuma
sonha como noiva marinha.
Não quero mudar de planeta.
Foto da capa do post: Lalo de Almeida
Sobre o autor
Radicado em Nilópolis, município do Rio de Janeiro, Cícero César Sotero Batista é doutor, mestre e especialista na área da literatura. É casado com Layla Warrak, com quem tem dois filhos, o Francisco e a Cecília, a quem se dedica em tempo integral e um pouco mais, se algum dos dois cair da/e cama.
Ou seja, Cícero César é professor, escritor e pai de dois, não exatamente nessa ordem. É autor do petisco Cartas para Francisco: uma cartografia dos afetos (Kazuá, 2019), Circo (de Bolso) Gilci e está preparando um livro sobre as letras e as crônicas que Aldir Blanc produziu na década de 1970.