Quem cuida de quem cuidou?

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Faltam políticas públicas no país para cuidar de pessoas com Doença de Alzheimer. Cuidadore(a)s sentem solidão, despreparo e exaustão

Por Liliana Peixinho, compartilhado de Projeto Colabora




Arte Claudio Duarte

Relatos de muito sofrimento se espalham, criando uma atmosfera que embala o encontro no grupo de apoio a cuidadores familiares ao qual o site Colabora teve acesso. A reunião aconteceu em setembro de 2022, mês que marca a Conscientização sobre a Doença de Alzheimer e outras demências. A chamada para o encontro, nas redes sociais e coletivos especializados, tinha o foco na doença que se espalha de forma preocupante: dados do Ministério da Saúde apontam que o mal atinge cerca de 30% da população com mais de 80 anos. No ano passado, o Brasil tinha cerca de 1,8 milhão de pessoas diagnosticadas com Alzheimer.

A situação dos cuidadores, que já têm a carga emocional a lhes tirar as forças, torna-se ainda mais penosa porque ela cai naquele nicho das coisas que  não merecem atenção nem da sociedade nem do  estado. Basta saber que a medição de riquezas nacional, o PIB, não os considera na hora de fazer as contas.

“Estimado em cerca de 9% do produto interno bruto (PIB) global, o cuidado não remunerado contribui com benefícios substanciais para os sistemas econômico e de saúde, mas permanece amplamente não reconhecido”, diz o artigo assinado pelo professor de gerontologia Rubens de Fraga Junior.

Em novembro do ano passado, reunidos em Buenos Aires, representantes dos países participantes da XV Conferência Regional sobre a Mulher da América Latina e do Caribe, realizada em novembro do ano passado em Buenos Aires deram um salto civilizatório ao incorporarem o direito ao cuidado no relatório final do encontro.

“O Compromisso de Buenos Aires reconhece o cuidado como um direito das pessoas a cuidar, a serem cuidadas e a exercer o autocuidado com base nos princípios de igualdade, universalidade e corresponsabilidade social e de gênero e, portanto, como uma responsabilidade que deve ser compartilhada pelas pessoas de todos os setores da sociedade, as famílias, as comunidades, as empresas e o Estado”, diz o texto.

Mas, por enquanto, são apenas indícios de que o fardo pesado que carregam os cuidadores poderá ficar mais leve.

Estudos recentes, feitos em parceria entre a Federação Brasileira de Associações de Alzheimer (Febraz) e outras seis instituições, reforçam o que circula em diversos grupos de apoio a cuidadores: 80% dos cuidadores familiares são mulheres, normalmente a filha mais velha da casa, ou seja, também uma idosa. A situação reforça a necessidade de apoio aos cuidadores familiares e a aproximação da família no papel de cuidados a quem cuidou.

A Doença de Alzheimer atinge cerca de 30% da população com mais de 80 anos. No ano passado, o Brasil tinha cerca de 1,8 milhão de pessoas diagnosticadas com a doença. Foto Aline Morcillo/Hans Lucas via AFP
A Doença de Alzheimer atinge cerca de 30% da população com mais de 80 anos. No ano passado, o Brasil tinha cerca de 1,8 milhão de pessoas diagnosticadas com a doença. Foto Aline Morcillo/Hans Lucas via AFP

Segundo a professora Dra. Nereida Kilza da Costa Lima, associada da Divisão de Clínica Médica Geral, da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, é preciso iniciativas de informações especializadas sobre o Alzheimer. Além disso, é fundamental dar  os apoios aos cuidadores familiares.

Com esse cenário, e sabendo do grande número de mulheres idosas que exercem o papel de cuidadoras de doentes com Alzheimer, pesquisadores da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP) da USP confirmaram, em estudo recente, que “cuidar de pessoas doentes pode deixar os cuidadores também doentes”.

Denunciando a falta de uma estrutura pública capaz de absorver pessoas idosas, os cuidadores e cuidadoras falam também com muita angústia sobre o momento de decidir internar seus entes adoecidos. Se, por um lado, as pessoas estão vivendo mais tempo – segundo dados de 2021 do IBGE, triplicou a população com mais de 60 anos no Brasil – por outro, não há como garantir bem estar aos idosos que não têm estrutura financeira para pagar boas casas de acolhimento.

Abaixo, alguns relatos que comprovam o estudo feito pela Febraz:

Aos 52 anos, a contadora Arliude Silva, moradora de Feira de Santana, na Bahia, perdeu há pouco sua mãe, uma professora sempre ativa e muito querida por todos, que morreu de infarto aos 79 anos. Arliude quer compartilhar sua história para tentar ajudar outras pessoas que, como ela, tiveram que se ver no papel de cuidadores, de uma hora para outra, sem noção do que isso representa. Ou, do trabalho extra que isso traz.

“Minha mãe estava aposentada, mas era muito ativa e sociável. Mesmo no auge da doença ela nunca esqueceu nada: seus sintomas eram depressão e mau humor. Quando começou, passei por um período de negação, perdia muito a paciência com ela. Depois, participando de vários grupos de apoio nas redes socias, fui entendendo que tudo aquilo era real. A sensação é que estava dentro de um poço escuro, sem saída. Ela só tinha a mim, sou filha única”, disse ela.

Foi bem complexo também chegar a um diagnóstico. Quando começou a perceber que havia algo de errado com a mãe, Arliude buscou ajuda com psicólogos e psicoterapeutas, mas eles pouco podiam fazer, já que a mãe se negava a aceitar qualquer tratamento.

“Minha mãe tinha Doença de Alzheimer e Demência Vascular há mais de dez anos. E nenhum profissional foi capaz de me pedir para fazer uma ressonância, o que poderia ter ajudado a fazer o diagnóstico. Eu quero  dividir minha experiência  para tentar ajudar  outras pessoas que estão vivendo isso. Eu venho tentando escrever algo para alertar sobre os sinais do Alzheimer, porque eu achava que minha mãe estava depressiva”, conta ela.

Quando passou a ser a cuidadora da mãe, Arliude buscou ajuda em grupos de outros cuidadores, e foi lá que se sentiu mais reconfortada.

“É muito importante interagir com os grupos. Eu aprendi a dialogar com minha mãe sem entrar em confronto. Eu ‘via’ tudo que ela falava. Baixei o tom da voz para que se sentisse segura. Quando ela não me reconhecia, deixava ela me chamar do nome que quisesse sem contestar. Fazia todas as vontades. Não entrava na questão de ‘pode’ ou ‘não pode’”, relata a filha Arliude, sobre os cuidados com sua mãe.

Benício, bebê de um ano, tem sido o propagador de energia para a avó Sandra Sappatin, moradora de São Paulo, que passou cinco anos envolvida nos cuidados com o marido que tinha a Doença de Alzheimer. Como trabalha fora, ela só podia cuidar dele a partir de meio-dia, e o resto do tempo a mãe de Benício, única filha do casal, assumia a responsabilidade:

“Nosso dia era bem exaustivo. Porque, além do meu esposo, que faleceu em outubro, minha filha tem um bebê de um ano, o Benício. Era ele quem nos impulsionava na energia para cuidar. Meu esposo era totalmente dependente de nós. Usava fraldas, a comida tinha que ser bem amassada, erámos nós que tínhamos que fazer tudo por ele. Só Deus para nos dava forças! A luta era grande. Eu e minha filha não podíamos sair juntas porque sempre tinha que ter alguém em casa. Eles não podiam ficar sozinhos”, disse ela.

Assim como outros cuidadores, Sandra também se queixa de solidão, já que a doença neurodegenerativa costuma afastar os amigos e parentes distantes. O Estado não consegue estar presente:

“O SUS não estava fornecendo mais remédios. Os gastos com fraldas, medicamentos, alimentação eram muito altos.  Não sobrava dinheiro para pagar profissional especializado para ajudar”, conclui.

Apesar de ter apenas 68 anos, a paulista Rosemari Schinberger tem um histórico como cuidadora. Começou com a sogra, que operou um câncer no útero e ficou um tempo precisando de seus cuidados. Na esteira veio o sogro, com 81 anos, que tinha labirintite e fez cirurgia nos dois joelhos. E o marido, que até falecer, aos 70 anos, foi acometido de artrite reumatoide. Hoje ela cuida da mãe, que anda triste, chorosa:

“Mas eu não me deixo abater. Agora, por exemplo, estou comemorando porque minha mãe aceitou fazer o jogo de caça-palavras no tablet. Desde a pandemia, quando minha mãe foi praticamente para a cama sem conseguir se levantar, parece que a família teve sinal verde para esquecer que tem uma mãe, uma avó, uma bisavó”, queixou-se ela.

A situação financeira familiar permite a Rosemari que contrate uma cuidadora profissional, que vai lá três vezes por semana para dar banho de chuveiro na mãe:

“O resto é comigo: as refeições, que são dadas na boca, a higiene dela, as tarefas domésticas. Faço a terapia com ela. Tem dias que não tenho vontade de levantar da cama de tão cansada, pois quando ela tem crises chega a ficar 40 horas sem dormir e tendo visões. É difícil lidar com tudo sozinha. Fico chateada com minhas irmãs porque parece que elas não se importam”, contou Rosemari.

Maria Kassimati é a mais velha de três irmãs, e há quatro anos cuida sozinha da mãe, que já está em estágio avançado da Doença de Alzheimer, com afasia, crises de mau humor e agressividade verbal e física.  O relato de Maria tem dois dos sintomas que se assemelham ao das outras cuidadoras ouvidas pelo site: solidão e exaustão.

“Há dois anos tive que contratar cuidadora pois rompi o ligamento do ombro de tanto levantar minha mãe da cama. Passei por cirurgia e desde então tenho a ajuda de uma cuidadora de segunda a sexta-feira. Sou professora ainda na ativa. Tem sido muito difícil, especialmente financeiramente, e também psicologicamente. Tomo antidepressivos desde 2020”, contou ela.

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