Quem defende a liberdade de culto

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Por Gustavo Henrique Freire Barbos, Outras Palavras – 

Perseguição das elites brasileiras às religiões africanas não é nova. Elas só deixaram de ser reprimidos graças a gente como Mãe Menininha — e aos deputados Jorge Amado e Carlos Marighella

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Jorge Amado pede a bênção da ialorixá Maria Escolástica da Conceição Nazaré, a Mãe Menininha do Gantois. Ação da bancada comunista na Constituinte revogou a Lei de Jogos e Costumes, usada na República Velha para discriminar e proibir o Candomblé e a Umbanda

A constituição brasileira promulgada em 24 de fevereiro de 1891 foi a primeira carta constitucional de nossa república. Reproduzindo os ventos liberais que marcaram o século XIX, uma de suas mais emblemáticas mudanças em relação ao regime monárquico foi exatamente a separação entre Igreja e Estado, amparando-se na laicidade característica do modelo republicano.

As liberdades de associação, expressão e de imprensa, alicerces clássicos do liberalismo, foram da mesma forma previstas pela Constituição de 1891, consagrando de vez, no plano institucional, o triunfo liberal sobre a decrepitude monárquica e nobiliárquica dos reis, duques, condes, barões e marqueses.




Contudo, foi durante a República Velha (1889-1930) e sob o amparo da Constituição de 1891 que, sob a condescendência dos liberais alinhados aos representantes da Política do Café com Leite, foi implementada uma forte política de repressão contra greves, sindicatos, manifestações populares e mesmo contra órgãos da imprensa, perseguidos, invadidos e fechados durante o governo de Washington Luís, para quem “a questão social é um caso de polícia”. Tudo sob os olhares complacentes dos autodenominados liberais que compunham a elite cafeicultora, herdeiros morais de revoluções como a do Porto e da própria Revolução Francesa.

Malgrado a liberdade de culto e religião já tivesse previsão constitucional na carta de 1891, as manifestações culturais e religiosas de matriz africana permaneceram sendo alvo de intensa perseguição institucional antes, durante e depois do governo Vargas. Nesse contexto, a ialorixá Maria Escolástica da Conceição Nazaré, a Mãe Menininha do Gantois, tradicional terreiro de Salvador, tornou-se um símbolo da luta contra a intolerância religiosa e contra a repressão policial que sofriam os terreiros na década de 30, enquadrados na draconiana Lei de Jogos e Costumes. Cantada por nomes como Maria Bethânia, Gilberto Gil, Dorival Caimmy, Caetano Veloso e Gal Costa, foi ela uma das principais articuladoras do término das restrições e proibições à realização dos rituais religiosos do Candomblé e da Umbanda, à época submetidos à autorização do governo.A coerência dos pupilos de Montesquieu foi também colocada à prova na Assembleia Constituinte de 1946, onde bandeiras fundamentais do credo liberal alinhadas a direitos não-patrimoniais foram ignoradas tanto pelos liberais do Partido Social Democrático (PSD) e da União Democrática Nacional (UDN) como pelos varguistas do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB). Na ocasião, coube aos membros da diminuta bancada do Partido Comunista Brasileiro (PCB) voltar os olhos para a defesa de direitos os quais, embora legitimados pelo clássico ideário iluminista, não se enquadravam na narrativa ruralista e oligárquica dos coronéis e governistas que representavam a ampla maioria no Congresso.

Mãe Menininha não estava sozinha em sua disposição de derrubar os obstáculos impostos às tradições culturais e religiosas afrodescendentes. Contava com parceiros no Congresso Nacional. Entretanto, seguindo a boa tradição dos rednecks confederados que na Guerra da Secessão norte-americana empunhavam em uma mão a bandeira do liberalismo e na outra a do escravismo, não foram os liberais que dividiram com ela as trincheiras da luta pela liberdade de culto, e sim os comunistas – em especial os congressistas Carlos Marighella e Jorge Amado, responsáveis por expor o fato de que a liberdade que seus colegas liberais tão eloquentemente defendiam na tribuna não dizia respeito a pessoas, mas sim a negócios e à abertura da economia nacional ao capital estrangeiro. Esqueçam, assim, as desinteressadas crias de Danton e Robespierre: foram de iniciativa do autor de Dona Flor e seus dois maridos as emendas que instituíram as liberdade de culto e de imprensa, ao passo que o deputado Marighella subia à tribuna para bradar: “nós, comunistas, sabemos respeitar as religiões; somos pela liberdade completa de consciência e não desejamos, de forma alguma, que essa liberdade seja utilizada pelos dominadores, pelos fascistas, pelos reacionários, pelos senhores feudais para acorrentar o nosso povo, miseravelmente, como o tem feito”[1]. Aprovada, a emenda da liberdade de culto converteu-se no artigo 141, §7° da Constituição de 1946.

Da mesma forma que os comunistas norte-americanos nas décadas de 20 e 30 eram a única força política a defender a democracia racial completa e fora das premissas meramente formais exauridas em previsões legais inócuas, Amado, Marighella e outros integrantes do PCB foram autores de várias emendas voltadas à regulamentação e criação de direitos relacionados a liberdades individuais. Todas, praticamente, derrubadas pela maioria conservadora do parlamento, a mesma que, com um misto de satisfação e indiferença, assistiu em 1948 à cassação dos mandatos dos seus colegas do PCB e à perseguição promovida pelo presidente Eurico Gaspar Dutra ao partido, colocando-o mais uma vez na ilegalidade.

Os episódios acima são paradigmáticos no sentido de apontar que tudo o que hoje identificamos com as noções de liberdade e de democracia liberal, desde os sindicatos e da liberdade de associação ao voto universal, da liberdade de culto à liberdade de imprensa, foi fruto das lutas travadas pelas classes subalternas nos séculos XIX e XX, de modo que o reconhecimento destes direitos está longe de ser uma consequência “natural” da democracia liberal, conforme observa Slavoj Zizek, segundo o qual, com exceção da abolição da propriedade privada dos meios de produção, a grande maioria do catálogo de direitos do Manifesto do Partido Comunista é amplamente aceita nas democracias burguesas, ainda que a contragosto e somente enquanto resultado direto das lutas populares, nunca como concessões benevolentes e unilaterais.

Antonio Gramsci afirmou que existe um momento na história em que a burguesia é obrigada a repudiar o que ela mesma criou. Não alimentemos, mesmo na radicalização ultraliberal do pós-golpe, qualquer expectativa de que os atentados de Michel Temer contra a Constituição Federal por meio de PEC’s que lhe rasgam todo o sentido programático bem como contra a liberdade de imprensa causem alguma comoção no andar de cima e em seus acólitos da classe média.

O mesmo se pode esperar da política de repressão a manifestações populares adotada pelo hoje ministro do STF Alexandre de Moraes e dos arroubos absolutistas do juiz Sérgio Moro no sentido de despertar qualquer sensibilidade por parte de quem, no espectro ideológico da direita liberal e conservadora, se coloca na posição de defensor das liberdades constitucionais – a começar pelo STF, entusiasta adesista da ofensiva contra sindicatos e movimentos grevistas, e por coletivos e pessoas que, a exemplo do senador Ronaldo Caiado, costumam se afirmar liberais embora se calem diante das intermitentes e constantes investidas contra estas mesmas liberdades – quando não são elas próprias as autoras destas afrontas[6].

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