Quem é o diverso e complexo eleitorado evangélico

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Subdivididos em diversas igrejas, representavam apenas 9% da população no início dos anos 1990; passaram para 15,6% no começo dos anos 2000 e, agora, ultrapassam de um terço da população

Por Marcelo Menna Barreto, compartilhado de Extra Classe




Foto: Igor Sperotto

Não é de agora que o crescente eleitorado evangélico é disputado por partidos e candidatos, sejam em pleitos municipais, estaduais ou federais. Se, no começo do século, quando representavam 15% da população já definiam eleições, hoje os evangélicos representam um terço dos brasileiros.

Que as estatísticas oficiais do Brasil estão defasadas, não é novidade. No entanto, enquanto não saem os números do Censo nacional promovido pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), prognósticos extraoficiais dão conta de algo que é visto a olho nu: o movimento evangélico no país não para de crescer.

Os evangélicos, que se subdividem em diversas igrejas, representavam apenas 9% da população no início dos anos 1990; passaram para 15,6% no começo dos anos 2000 e, agora, no mínimo, segundo o Datafolha, passam de um terço da população.

Diante disso, nenhuma discussão séria sobre o país deve desconsiderar esse crescimento.

Para o doutor em Sociologia e pesquisador do Instituto de Estudos da Religião (Iser), o pastor batista Clemir Fernandes, o perfil do evangélico no Brasil é quase impossível de se identificar. “Primeiro, porque ele está em todas as classes sociais hoje”, pondera.

Do ponto de vista da racialidade, aponta haver “uma ampla maioria de evangélicos negros nas igrejas pentecostais”.

Inclusive, diz Clemir, estudos aventam a possibilidade de existir percentualmente maior número de negros no evangelismo do que nas próprias religiões de matriz africana.

Do ponto de vista político, em 2018, José Eustáquio Diniz Alves, doutor em Demografia e professor titular do mestrado e doutorado em População, Território e Estatísticas Públicas da Escola Nacional de Ciências Estatísticas (Ence/IBGE), afirmava que os resultados eleitorais não tinham deixado dúvida naquele ano em “que Jair Bolsonaro foi eleito, fundamentalmente, com o voto evangélico, quando se considera a variável religião”.

Clemir, por outro lado, contemporiza. “Há uma discussão muito forte sobre voto evangélico, mas também se o voto chamado católico representa a religião propriamente dita.”

Entre pesquisadores, atesta Clemir, tem os que afirmam que ele representa o voto do cidadão médio brasileiro que, por identidade histórica, é católico. “Em geral, essa pessoa (católica) vai menos à igreja que o fiel evangélico”, completa.

Já para o pastor Filipe Gibran, “ninguém mais está dando conta de viver do jeito que as atuais grandes igrejas evangélicas são. Virou cinismo, hipocrisia. Brinco que se criou o evangélico não praticante”.

Ele, que é formado em Direito, Filosofia e Teologia, garante que, “na real”, são as igrejas neopentecostais que mais crescem.

“É um público de ‘crentes’ muito rotativo. Vai um dia na Universal, outro na Mundial. Vai na medida que tem um problema a ser solucionado, como algo mágico”, pontua ele, que é fundador de uma microigreja, como chama, A Comuna do Reino, de Belo Horizonte.

Quem são os jovens evangélicos 

Quem é o diverso e complexo eleitorado evangélico

Foto: Igor Sperotto

A proliferação de igrejas, aliás, é uma característica muito forte. Em parte, grande responsável pelo avanço evangélico no país.

“Nas denominações são na ordem de milhares. Milhares”, acentua Clemir Fernandes.

Denominações são grupos de igrejas que atuam em redes. Há ainda, lembra o pesquisador, uma infinidade de igrejas evangélicas sem vínculo nenhum com uma ou outra denominação.

O pastor Filipe Gibran fala que integra um grupo que está vivendo um paradoxo. “Pensar novos paradigmas”, modelos ou padrões a seguir em sua fé e não ser visto como pauta para os meios de comunicação.

“Essa molecada nova que é a minha geração – tem um monte de gente como eu de trinta, trinta e poucos anos – está abrindo igrejas”, diz.

Lembrando que nos últimos dias 2, 3 e 4 de dezembro aconteceu, em São Paulo, um encontro chamado Novas Narrativas Evangélicas, Gibran lança um apelo: “Seria interessante para dar uma força para a gente que está na luta pensar pautas que reflitam que nem toda Igreja é conservadora”, assegura.

Exemplos não faltam. Além da microigreja de Gibran, outras se somam. É o caso da Igreja Batista do Caminho, do pastor Henrique Vieira, recém-eleito deputado federal pelo PSOL/RS, que se autointitula antifundamentalista; a Igreja Batista Alternativa, do pastor Rodolfo Capler, entre outras, e as igrejas evangélicas inclusivas, que militam entre a população LGBTQIA+, como a Acalanto, a do Movimento Espiritual Livre e a Comunidade Cristã Nova Esperança.

Já há pastores evangélicos assumidamente homossexuais e, em 2017, Alexya Salvador se tornou a primeira pastora transgênero da América Latina na Igreja da Comunidade Metropolitana (ICM), em São Paulo.

Na própria ICM, surgiu no ano passado a ICM Séfora’s, a primeira igreja trans do Brasil. Lá, a pastora Jacque Chanel, mulher transexual, acolhe fiéis trans, travestis e muitos moradores em situação de rua.

De vanguarda contra o feudalismo ao retrocesso contemporâneo

Quem é o diverso e complexo eleitorado evangélico

Pastor batista Clemir Fernandes, doutor em Sociologia e pesquisador do Instituto de Estudos da Religião (Iser)Foto: A.F. Rodrigues/Iser

Foram muitos os relatos de coerção eleitoral praticada por grandes lideranças evangélicas (em especial, pastores pentecostais e neopentecostais). Extrapolando o conservadorismo, na reta final do pleito, foi usada a estratégia do medo para convencer fiéis optarem pela candidatura de Bolsonaro. Os episódios resultaram até mesmo em uma carta de Lula aos evangélicos na reta final das eleições.

Tanto para Gibran quanto para Clemir, isso significa um paradoxo. Ambos denunciam pressões que envolveram, inclusive, o afastamento de pastores de suas igrejas que resistiram a ceder a estas práticas de voto de cabresto.

O protestantismo, lembra Clemir, surge de um ambiente histórico de “uma consciência libertada do jugo do senhor feudal”.

Ele assim traça um paralelo com a Igreja Católica para explicar um motivo da proliferação dos evangélicos.

Segundo o pesquisador do Iser, enquanto o catolicismo seria “filho da antiguidade”, o protestantismo é “filho da modernidade”. “Não existe protestantismo sem que antes tenha tido o Renascimento, a redescoberta das línguas, a leitura dos textos originais, a compreensão do mundo sob outra ordem. Os três ‘R’: Renascimento, Reforma Protestante e Revolução Francesa”, elenca.

Enquanto o catolicismo apresenta uma estrutura piramidal, fruto da cultura do Império Romano, Clemir vê no chamado, a grosso modo, protestantismo histórico a abertura para a diversidade.

“Ele já nasce diverso porque a diversidade não é só porque Lutero disse que a pessoa está livre para ler e interpretar os textos sagrados; é porque já não havia mais possibilidade de alguém querer interpretar os textos sozinho. A consciência tinha sido libertada. A consciência filosófica e política que se liberta do senhor feudal, do mandatário, do absolutista”, narra.

Historiadores não negam. Sem a Reforma protestante, os ideais iluministas seriam abafados pela opressão do catolicismo da época. Os ideais de liberdade e igualdade da Revolução Francesa teriam que esperar.

Mas, de um tempo para cá, em especial nas grandes denominações, vê-se uma espécie de retrocesso.

Clemir diz que – apesar do embasamento ser em pesquisas de opinião a respeito do voto neste ano – os cerca de 35% de evangélicos que não se dobraram à pressão das lideranças religiosas para a reeleição de Bolsonaro é sinal de que “houve resistência”.

Ele, que chegou a dizer que o voto de obediência de um sacerdote católico ao seu bispo, um ser humano, remonta o mundo antigo, “onde as relações de vassalagem e autoritarismo eram aceitas como tal”, é um conceito impossível de um protestante aceitar, concorda com o questionamento da reportagem de Extra Classe: “Sim, há um paradoxo (na campanha pró-Bolsonaro das lideranças evangélicas). Isso (a opção por Bolsonaro) poderia ter sido muito mais diluído”.

Evangélicos bebem em fontes católicas

Quem é o diverso e complexo eleitorado evangélico_

Filipe Gibran, pastor da microigreja A Comuna do Reino, de Belo HorizonteFoto: Marcelo Menna Barreto

Filipe Gibran entende que muito do que aconteceu é fruto de um “evangeliquês cruel e triste”, gestado em processos norte-americanos.

Para ele, o complexo é que não se tem entre os evangélicos uma unidade teológica. “Cada igreja está pensando alguma coisa. Essas igrejas nem têm mais uma relação com Lutero. O que ele fez foi importante, ok, mas não tem mais relação. Não dá nem para denominar que a gente é protestante”, acredita.

De certa forma, há uma ironia aí. Um movimento que surgiu pregando a possibilidade de uma livre interpretação das escrituras e até na forma de se organizar, ganha na voz do jovem pastor a crítica de haver uma dispersão de pensar teológico.

Mais irônico ainda é que pastores como Gibran e Henrique Vieira têm como referência religiosos e teólogos católicos, como o bispo Dom Helder Câmara, o cardeal Dom Paulo Evaristo Arns, Frei Betto e Leonardo Boff.

“Vou chamar de teólogos latino-americanos, porque já há uma galera pós-eles que está produzindo coisa muito boa, mas não chama de Teologia da Libertação. Eu chamo de teologias latino-americanas. Tem dentro delas libertação, mas também se aprofunda no indigenismo, na negritude”, opina Gibran.

Ele ainda cita “os caras da Europa que nos influenciam muito”. Entre esses teólogos, estão os sacerdotes católicos José Antônio Pagola, espanhol, e o galego Andrés Torres Queiruga.

Nos evangélicos-raiz, estão o pastor batista brasileiro Ariovaldo Ramos e o equatoriano René Padilla, que cunhou o termo Teologia da Missão Integral no início dos anos 1970, uma variante protestante da Teologia da Libertação católica.

“Na forma como a coisa vem, a gente é bem mais evangelicalizado. A gente, agora, está tentando subverter isso, pensando sobre a América Latina, sobre uma teologia indigenista, uma teologia negra”, fala Gibran. Em seu pensar, que se insere na já citada Novas Narrativas Evangélicas, o pastor ainda se contrapõe a um pensamento clássico do protestantismo: o de que a “salvação” se dá via relação individual do crente com Deus.

“Na leitura do texto bíblico, da história do povo de Deus, dos profetas dos séculos 7 e 8, é possível dizer que existe salvação individual; você ter uma relação pessoal com a divindade. Eu até concordo. Mas eu acho que – na minha perspectiva, falando assim de soteriologia (Nota da redação: o estudo da salvação humana) – acho mesmo que o que salva a humanidade é o processo de coletividade.”

Um breve histórico

Clemir Fernandes afirma que os evangélicos no Brasil estão em três grandes tipologias comumente usadas: protestantismo histórico, pentecostalismo e neopentecostalismo.

Para ele, isso resume de uma maneira até grotesca os autoproclamados evangélicos. “São definições aproximadas, mas que nunca dão conta do todo; um nome imposto pela mídia nos anos 1980. Antes disso, não existia.”

Os evangélicos históricos seriam aqueles que surgiram diretamente da reforma protestante no século 16 ou que são descendentes imediatas desse movimento. “Luteranos, presbiterianos, batistas, metodistas, congregacionais, que é uma outra denominação, são os cinco blocos vinculados”, descreve.

Tempos atrás, recorda ele, o IBGE também chamava de Protestantismo de Missão, porque essas igrejas aportaram no Brasil em projetos missionários da Europa e dos Estados Unidos. Depois, vem o pentecostalismo chamado de clássico, o primeiro pentecostalismo. Sua matriz no Brasil se iniciou com a Congregação Cristã no Brasil (CCB) e a Assembleia de Deus (AD). A Assembleia de Deus, explica Clemir, tem origem na Suécia. Conforme ele, os primeiros missionários “na origem eram batistas. Nos Estados Unidos tiveram a experiência de ‘falar em línguas’, como eles dizem”.

Os primeiros missionários da AD, os sueco-americanos Gunnar Vingrem e Daniel Berg, aportaram, em 1911, em Belém do Pará, onde fundaram a primeira igreja.

Muito importante em São Paulo, especialmente onde tem a sua sede, a CCB foi fundada pelo italiano Luigi Francescon. Ele, da Itália, foi para os Estados Unidos. Lá, relata Clemir, teve uma experiência de conversão pentecostal, veio para o Paraná, onde fundou sua igreja em 1910, que, após, se fortaleceu em São Paulo.

Expoentes do segundo pentecostalismo, aponta o pesquisador do Iser, surgem nos anos 1960. Entre elas, estão Deus é Amor e Igreja do Evangelho Quadrangular.

Já o neopentecostalismo começa a proliferar nas décadas de 1970 e 1980, quando entram em cena igrejas como a Universal do Reino de Deus, Igreja Internacional da Graça de Deus, Renascer em Cristo, Igreja Mundial do Poder de Deus e, com ela, a chamada Teologia da Prosperidade.

“Não é o pentecostalismo clássico que tinha a ênfase de falar em línguas e na crença das curas divinas, mas que tem ênfase na utilização dos meios de comunicação de massas, rádio, TVs”, esclarece Clemir. Interessante que nesse histórico das igrejas evangélicas no Brasil, como se vê na “galera” do pastor Gibran, uma espécie de sincretismo também começa a acontecer. “Eu sei que é difícil, mas nunca dá para colocar em chaves fechadas. Hoje vai se encontrar muitas igrejas do protestantismo histórico influenciadas pela Teologia da Libertação católica e vai encontrar igrejas neopentecostais que se tornam neocalvinistas, que abrem mão e criticam a teologia da prosperidade. O mundo evangélico é muito complicado de se entender a olho nu”, ri.

Um exemplo é o pentecostalismo de um Silas Malafaia, que mudou muito em relação ao que é o pentecostalismo clássico. Hoje, ele  se influencia também de experiências neopentecostais e usa fortemente os meios de comunicação e adota a Teologia da Prosperidade.

A Teologia da Prosperidade é uma corrente doutrinal que tem por princípio que o cristão tem que ser vitorioso em todas as áreas de sua vida: espiritual, física e financeira. Apesar de ganhar proeminência nos Estados Unidos nos anos 1950, ela se fortificou no tele-evangelismo dos anos 1980.

Números que impressionam

Devido aos adiamentos promovidos pelo governo Bolsonaro na realização do Censo nacional, o Iser considera que uma pesquisa do Instituto Datafolha, publicada em 2020, é – por enquanto – a fonte mais qualificada e recente para se avaliar o quadro atual das religiões no Brasil.

Se nos dados defasados do IBGE, em 2010, os evangélicos representavam 22,89% da população brasileira, o estudo do Datafolha apontou um índice estimado de 31%.

Levando em consideração a margem de erro de 2% para mais ou para menos, os dados coletados em 2019 não descartam um crescimento de 10 pontos percentuais.

Para se ter uma ideia desse movimento que apresenta um significativo crescimento no país – a ponto de ser visto como fator de decisão em vários pleitos nacionais –, a população evangélica teve um aumento estimado de 49% entre os anos de 2010 e 2019.

Quase que dobrando em nove anos, os evangélicos, dentro das estimativas atuais, tiveram entre si um acréscimo que praticamente representa 10% de toda a população brasileira prognosticada em 2019.

Foi um salto de 21,5 milhões de pessoas, diante dos dados do IBGE de 2010. Na ocasião, os números consolidados do Censo registravam 43,6 milhões de evangélicos no país.

Frente à hipótese apontada de 65,1 milhões de indivíduos dessa vertente do cristianismo em uma população brasileira estimada em 210,1 milhões, são números que impressionam.

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