Quem matou Thainara?

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Laudo contradiz PMs e indica que jovem de 18 anos foi asfixiada em abordagem policial em MG

Por Gabi Coelho, compartilhado de Intercept




Thainara Vitória Francisco Santos, mulher negra de 18 anos, não morreu em 14 de novembro de 2024 porque se sentiu mal e teve tontura dentro de uma viatura após ser detida pela polícia em Governador Valadares, como alegaram os PMs envolvidos na ação. Thainara morreu por asfixia causada por estrangulamento. É o que revela o laudo parcial da perícia, feita pela Polícia Civil e obtido com exclusividade pelo Intercept Brasil

A análise do legista atesta que a jovem foi asfixiada até a morte. Também cita que ela tinha hematomas no crânio, hemorragia, além de escoriações, inchaços e marcas roxas nos pés, pernas, pescoço, braços e rosto. Nada disso condiz com seu estado de saúde quando foi levada para uma viatura pela PM, segundo testemunhas que acompanharam a abordagem policial. 

Thainara, mãe de uma criança de quatro anos, foi detida no dia 14 de novembro de 2024, no prédio onde morava, após tentar defender seu irmão de 15 anos, autista, deficiente intelectual e portador de Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade, TDAH, de uma abordagem policial violenta. 

Na ocasião, os policiais alegaram que após a apreensão de um adolescente no local teve início uma confusão generalizada e agentes foram agredidos por moradores. A versão oficial era de que dois jovens, Thainara e um homem, foram presos. Ela, ao entrar na viatura, teria apresentado fraqueza e ânsia de vômito, e depois morrido no hospital.

No entanto, o laudo, imagens e depoimentos de testemunhas e de médicos obtidos pelo Intercept revelam uma série de contradições no depoimento dos policiais. Eles mostram que Thainara foi violentamente espancada, depois asfixiada e já chegou morta à Unidade de Pronto Atendimento.

Segundo o documento, o exame legista foi realizado em uma “mulher que perdeu consciência durante operação policial (supostamente após agressão por parte dos agentes), que foi socorrida ao serviço de saúde e chegou já sem vida no local, tendo sido constatado óbito pelo médico plantonista”. 

O registro do relatório médico anexado no laudo também reitera a informação: “Paciente adulta deu entrada na unidade trazida pela PM de GV em PCR (parada cardiorrespiratória), sem tempo determinado”.

Imagens de câmeras de segurança às quais o Intercept teve acesso revelam que Thainara demorou 2 minutos e 20 segundos para ser retirada da viatura para ser atendida, uma demora que foge do protocolo  de urgência em casos de suspeita de parada cardiorrespiratória.

As múltiplas lesões também contradizem a versão dos policiais militares, que justificaram suas ações mencionando que as contenções tinham o ‘objetivo de imobilizar’ Thainara Vitória e garantir a segurança do local. 

No depoimento dos PMs envolvidos, aos quais o Intercept teve acesso, há diversas contradições. Enquanto alguns dos policiais afirmam que Thainara estava andando normalmente, ainda que algemada, até a viatura, outros não deixam claro se ela começou a passar mal antes ou depois de ser colocada no veículo. 

Um dos policiais, por exemplo, afirma que “enquanto era levada para a viatura, os militares perceberam que Thainara demonstrou estar com ânsia de vômito, então entenderam por bem levá-la até a UPA”. 

Já um segundo agente conta, também no depoimento, que Thainara estava “algemada para trás e andando normalmente”, quando um tenente afirmou que ela “estava passando mal”.

Na declaração de um terceiro policial, Thainara “estava caminhando e em determinado momento apresentou ‘uma certa fraqueza’, mas logo continuou caminhando”, e que “a mesma estava consciente”.

‘As imagens deixam claro que a condução do caso foi repleta de falhas graves que violam protocolos básicos de direitos humanos’.

No entanto, uma vizinha – que não será identificada por questões de segurança – afirma em seu depoimento que acompanhou a cena. “Era nítido que ela estava meio desfalecida, não conseguia parar em pé. O policial que estava segurando ela tentou de tudo para fazer ela ficar de pé, mas ela acabou caindo. Foi quando o policial a apoiou nas pernas dele, pegou pelo pescoço, como se estivesse dando um mata-leão, pegando o braço dele e passando no pescoço dela, fazendo com que ela ficasse em pé”. 

A mesma vizinha disse que, ainda no momento em que Thainara estava sendo conduzida à viatura, ela caiu no chão de novo, e outro policial apareceu para ajudá-la, um segurando pelas pernas e outros pelos ombros, em seguida a colocaram dentro da viatura, fechando o compartimento. “Ela já parecia sem forças quando colocaram na viatura, de bruços. Os policiais não prestaram nenhum socorro”. 

O Ministério Público de Minas Gerais enviou na quarta-feira, 22, uma solicitação à Polícia Militar, pedindo – em um prazo de 30 dias – novos laudos, diligências e investigações mais aprofundadas para esclarecer as contradições. 

 ‘Morreu defendendo seu irmão autista da polícia’

A ação policial foi motivada, segundo testemunhas e depoimentos dos PMs, por uma denúncia relacionada a suspeitas de homicídio – a Polícia Militar não respondeu ao Intercept sobre qual o propósito da operação.

Alguns vídeos feitos pelos vizinhos e uma gravação da câmera corporal de um dos policiais permitem traçar a cronologia do que aconteceu na noite em que a jovem foi morta. 

Thainara Vitória Francisco Santos tinha 18 anos

Thainara foi contida por um policial após ver que seu irmão estava sendo imobilizado de forma violenta por outros agentes. Os vídeos mostram os vizinhos gritando para que os PMs soltassem o adolescente e avisando que ele tinha autismo.

O garoto se desesperou ao ouvir Jucileia Santos da Cruz Silva, a mãe dele e de Thainara, ficar nervosa com a ação policial em sua casa. “Eles começaram a revirar a casa e mexeram até na minha bolsa. Eles não tinham motivos para aquilo. Quando questionei, eles começaram a me tratar de forma grosseira”, declarou Jucileia, de acordo com o inquérito.

Ao ouvir os gritos da mãe, o adolescente tentou intervir, mas foi contido violentamente, de acordo com familiares e vizinhos. “Quando o policial colocou a mão no meu ombro, eu disse: ‘Não coloca a mão em mim, não’, e ele me empurrou com força”, disse o garoto em seu depoimento à polícia. Os vídeos mostram que, depois disso, os PMs começam a tentar detê-lo.

Uma vizinha contou que foi aí que Thainara tentou proteger o irmão. “Ela gritou: ‘Ele é autista, ele não pode ser tratado assim’. Mas os policiais não ouviram nada e empurraram ela contra a parede, jogaram no chão e continuaram batendo”, relatou a moradora em seu depoimento para a polícia.

Vários moradores passaram a gravar vídeos com seus celulares. Em um deles, é possível ouvir uma vizinha gritando O menino é doente!”, a que um dos policiais rebate: “Então fala pra ele parar de resistir”. Outros moradores, então, insistem: “Mas ele é doente”, “Vocês estão machucando o menor, o menor não é envolvido”. Os apelos foram ignorados. No vídeo, é possível ver Thainara sendo empurrada contra a parede e imobilizada.

‘Ela não estava respirando’

Segundo os vizinhos, Thainara foi levada para outra área das escadas do prédio e algemada. Em um trecho do vídeo – em que é possível apenas ouvir a jovem –, ela pede aos policiais para sair para poder tomar um ar.  

Vídeos mostram a cena em que a jovem é carregada pelos PMs na rua, que está tomada por viaturas, mas, pela baixa qualidade das imagens, não é possível identificar o estado de saúde dela nesse ponto. 

Laudo aponta que corpo de Thainara tinha lesões

No entanto, as imagens das câmeras de segurança da UPA do bairro Vila Isa também corroboram o laudo da perícia de que Thainara chegou já sem vida. Após a demora de mais de dois minutos para retirá-la da viatura, ela é finalmente colocada na maca. Durante a gravação, é possível ver que ela está desacordada.

O médico plantonista afirmou em seu depoimento à polícia: “A paciente deu entrada na UPA já em óbito”. Segundo o vigia que trouxe a maca até o carro dos policiais na chegada à unidade, a jovem “estava mole, desfalecida e com a cabeça pendente na maca […]Ela não estava respirando, mas eles não disseram nada sobre o que tinha acontecido antes”, afirmou.

Funcionários da UPA que deram depoimentos à polícia relataram que Thainara chegou com marcas visíveis de agressão. Segundo uma técnica de enfermagem que a recebeu, havia “marcas cianóticas (roxas) na região do pescoço”. Ela também afirmou, em seu depoimento à polícia, que os policiais militares “[eles] saíam puxando a maca para dentro da UPA”, sem fornecer informações precisas. 

Ainda segundo a técnica, um dos policiais disse que a jovem havia sido encontrada em estado crítico após uma briga na rua e “que ela tinha tentado ajudar um preso, fugitivo da cadeia e a encontrou no chão”. Outra enfermeira que atendeu Thainara confirmou a presença de hematomas no abdômen e escoriações no rosto. É o que também disse um parente da vítima, que chegou à UPA pouco depois da viatura: “Ela tinha marcas de socos no rosto, no pescoço e estava coberta de terra”.

Especialistas dizem que PM cometeu erros básicos

A abordagem policial foi problemática em diversos pontos, segundo especialistas ouvidos pelo Intercept. Um dos erros ocorreu na UPA,  segundo o tenente-coronel da reserva da PM Adilson Paes de Souza, que é doutor em Psicologia pela USP e especialista em abordagem policial. 

Ele afirma que, se os agentes sabiam que Thainara estava morta, não deveriam ter retirado a jovem da viatura, já que “movimentar um corpo sem vida antes da perícia viola protocolos básicos de investigação criminal”. 

Se não sabiam, Souza afirma que o tempo de espera na viatura foi excessivo: “deveriam tê-la socorrido com a máxima urgência, acionando a equipe de socorro para que ela tivesse sido encaminhada, com urgência,  para o atendimento”.

Após ver as gravações da câmera de segurança da UPA e do celular dos vizinhos, ele pontuou que “as imagens deixam claro que a condução do caso foi repleta de falhas graves que violam protocolos básicos de direitos humanos”. 

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