Por Pedro Borges, com ilustração de Vinicius de Araújo, publicado em Conti Outra –
Pelé, Garrincha, Paulo César Caju, Rivaldo, Ronaldinho Gaúcho, Neymar. Se por um lado a lista de craques negros é infinita, a de treinadores pretos é quase inexistente. A figura responsável por decidir a tática do time e os jogadores que entrarão em campo é dominada por brancos. Desde rostos consagrados como os de Luiz Felipe Scolari e Telê Santana, a nomes questionados como o de Dunga, o atual comandante da seleção, a maioria dos técnicos brasileiros tem um fator em comum: a pele clara. Dos 20 treinadores da série A do campeonato brasileiro, apenas um é negro, Roger Machado, do Grêmio. Os números do torneio deste ano não destoam das estatísticas das demais edições e explicam uma situação inusitada para o Brasil, apenas um treinador negro se sagrou campeão nacional. Em 2009, Andrade, ex-jogador de Flamengo e Vasco da Gama, levantou o caneco pela equipe rubro-negra. Antes, enquanto jogador, Andrade já havia saboreado o título nacional quatro vezes pelo Flamengo e uma pelo Vasco. A quebra do tabu e a vitória de um treinador preto não estavam, porém, nos planos do Flamengo. Andrade era auxiliar-técnico de Cuca, então comandante da equipe da Gávea. Depois de uma péssima sequência no campeonato brasileiro, 3 pontos conquistados de 12 disputados, sendo 9 deles em casa, Cuca foi demitido. Depois da sua queda, Andrade assumiu o cargo de modo interino e com o bom desempenho que teve, manteve-se no posto. Com a mudança do esquema tático da equipe do 3-5-2 para o 4-2-3-1 e com aproveitamento de 73% dos pontos disputados, o troféu veio, assim como o título de melhor técnico do campeonato brasileiro daquela edição. Nada, porém, que o mantivesse frente à equipe carioca. 5 meses depois da conquista, Andrade foi demitido. Osmar de Souza Jr., doutor em Educação Física pela UNICAMP e professor da UFSCar, explica que os treinadores negros estão mais vulneráveis aos resultados negativos e às oscilações de desempenho da equipe. Para ele, é como se existisse uma “pressão externa e interna no clube apenas aguardando um momento de instabilidade para concretizar o desejo coletivo de substituí-lo por um branco, que também será cobrado por resultados, mas terá um limiar de tolerância muito maior por parte da torcida, da imprensa e de outros agentes do universo do futebol. É lamentável”. Desde a demissão, Andrade nunca mais conseguiu espaço entre os grandes clubes do país. Os seus seguintes trabalhos foram feitos em times de menor expressão, como o Brasiliense (2010), Paysandu (2011), Boavista (2012) e o São João da Barra (2014), este último da segunda divisão do campeonato carioca. O boicote a treinadores pretos e as barreiras raciais dentro do futebol vão além do caso de Andrade. Lula Pereira, ex-treinador de equipes como Flamengo, Bahia e Ceará, disse em entrevista à Revista Placar que já ouviu de empresários que “o pessoal do clube gostou do seu perfil, mas, me desculpe, você é preto”. O pentacampeão do mundo Roque Jr. também sentiu na pele o racismo dentro do futebol. Depois de estágios em equipes no Brasil e no exterior, curso de treinador e MBA na área de gestão esportiva, Roque Jr. recebeu o convite para dirigir o XV de Piracicaba-SP durante o campeonato paulista de 2015. Antes mesmo do primeiro jogo, a mídia local tratava Roque Jr. como uma má opção para comandar a equipe. Durante a campanha, depois de atritos entre o ex-jogador e a imprensa, parte dos veículos de comunicação do interior de São Paulo o rotularam como arrogante. O ex-treinador do XV de Piracicaba ficou 6 jogos a frente da equipe, o necessário para ser considerado pela imprensa regional como o pior técnico da história do clube. Racismo Inercial Hélio Santos, um dos precursores da política de cotas no Brasil e presidente do Instituto Brasileiro de Diversidade, destaca como é bom observar que “os treinadores (ex-jogadores) brancos não são nenhum ‘intelectuais’ do futebol. Muito pelo contrário. É racismo inercial: negros jogam futebol, mas não são capazes de ‘pensar futebol’”. Se Andrade e Roque Jr. são lembrados por ótimas passagens em Flamengo e Palmeiras, respectivamente, e mesmo assim tiveram poucas oportunidades, ex-jogadores brancos, independente da qualidade que tinham, foram premiados com ótimas chances. Paulo Roberto Falcão e Dunga são bons exemplos disso. Ambos tiveram as suas primeiras experiências enquanto treinadores como dirigentes da seleção brasileira. A naturalidade com que os fanáticos por futebol enxergam a falta de negros no posto de coordenador das equipes é vista por Hélio Santos, como face do racismo inercial. Para ele, “treinar equipes sugere ‘racionalizar’ técnicas futebolísticas. Ou seja, infere-se que para treinar há que pensar e refletir. Tudo aponta para uma síndrome racista que não vê o negro nessa posição, mesmo sendo ele exímio craque”. Seria o mesmo que dizer “que o treinador branco representaria o cérebro da equipe e os jogadores predominantemente os músculos”, de acordo com Osmar de Souza. Ele ainda pontua como essa divisão não se restringe ao esporte. O futebol apenas reproduz a lógica da divisão social do trabalho, onde brancos coordenam e negros executam. Osmar expõe que “nesta lógica podemos assumir que os treinadores ocupariam a posição que tem como referente, no mercado, o gestor, o patrão, enquanto o jogador, grosso modo, poderia ser entendido como o operário, o ‘peão’”. As pesquisas comprovam. Conforme se sobe a escala dentro de qualquer empresa, diminui-se a quantidade de negros, distantes dos espaços de decisão e de definição de estratégias. De acordo com uma pesquisa realizada em 2010 pelo Instituto Ethos e pelo Ibope, os negros ocupam 25,6% dos cargos de supervisão, 13,2% dos cargos de gerência e 5,3% dos cargos executivos nas empresas brasileiras, embora, segundo o IBGE, 53% dos brasileiros sejam pretos e pardos. Seleção Brasileira Símbolo nacional, a seleção brasileira não foge à regra dos clubes do país. Em toda a história, a equipe foi dirigida em apenas 6 partidas por negros. Em 11 de setembro de 1991, Ernesto de Paulo comandou o país na derrota para País de Gales. Ernesto ocupou o cargo de forma interina depois da saída de Paulo Roberto Falcão. Gentil Cardoso teve mais oportunidades do que Ernesto de Paulo. Em 1959, Gentil organizou um combinado entre as equipes de Pernambuco para disputar um torneio sul-americano. A seleção terminou em 3° lugar e Gentil foi demitido depois de 5 partidas e 23 dias a frente do cargo. Gentil até o fim da sua vida dizia que “só não me chamaram porque eu sou preto”, em referência a não ter tido uma real oportunidade enquanto treinador da seleção. Mesmo sem oportunidades reais na seleção e nos principais clubes nacionais, alguns treinadores negros obtiveram sucesso em outros países. Um nome a ser destacado é o do craque Didi. Campeão do mundo em 1958 e 1962 ao lado de Garrincha, Didi sagrou-se campeão peruano enquanto treinador pelo Cerveceros, em 1968. O bom trabalho o possibilitou a condição de dirigir a seleção peruana em 1969, quando o país se classificou via eliminatórias pela primeira vez para a Copa do Mundo com uma surpreende vitória sobre a Argentina. No mundial, Didi levou a seleção peruana às quartas de final, quando o país foi eliminado justamente para o Brasil, campeão daquela edição. Didi, até os dias de hoje, mesmo passados anos da sua morte, é tido como ídolo no Peru. O craque chegou a treinar clubes como River Plate da Argentina, Fernerbache da Turquia e os brasileiros Cruzeiro, Fluminense e Botafogo. Nunca, contudo, foi convidado a dirigir a seleção brasileira. Os gênios em campo O não reconhecimento da inteligência do negro faz com que muitos craques não recebam o convite para serem treinadores. Mesmo distante dos gramados, jogadores como Djalminha, Rivaldo, Carlos Alberto Torres e Pelé não seguiram no meio futebolístico enquanto técnicos. As lentes racistas brasileiras impossibilitam que se enxergue competência mental e cognitiva no futebol praticado pelo negro. A técnica e o drible não são vistos como frutos da inteligência. As duas últimas duplas de destaque do Santos evidenciam essa diferença. Enquanto Robinho e Neymar foram vistos como talentosos e técnicos, Diego e Paulo Henrique Ganso foram entendidos como jogadores cerebrais. Osmar de Souza entende o caso como um exemplo clássico e por isso problematiza. Ele lembra como diversos jogadores negros também tinham essa qualidade e eram vistos como cerebrais, casos de Didi, Domingos da Guia, Djalminha, Alex, entre outros. Em segundo lugar, pontua que existem diferentes inteligências, como a técnica e tática. Enquanto Neymar e Robinho se destacam pela primeira, Ganso, Diego, Alex e Didi pela segunda, “desconstruindo a tese de que as diferenças de inteligência ou competência teriam raízes em marcadores raciais”, na sua visão. Exemplos de luta e mudança Independente das diferentes realidades de Brasil e EUA, os americanos buscaram soluções para o problema. Em 2003, foi criada a lei de Rooney na NFL, a liga de futebol americano. Desde então, para toda e qualquer seleção e entrevista para algum cargo de treinador ou de direção das equipes, é necessário que pelo menos a metade dos entrevistados sejam negros. Nas ligas americanas como a NBA e a NFL, onde há uma presença de destaque de atletas negros, há um problema similar. Na NBA, assim como na NFL, há uma supremacia de treinadores brancos. Hélio Santos confirma a existência do mesmo problema no esporte americano, mas ressalva. “Nos EUA se veem mais comentaristas e técnicos negros do que aqui”. Para Hélio Santos, a resolução do problema passa por um maior enfrentamento da situação por parte dos treinadores negros. “Os ex-jogadores negros sabem-se discriminados e ficam calados. Ativistas, como eu, podem falar e escrever, mas seria diferente se Jairzinho, Mengálvio, Lima, Zé Maria, Wladimir, Careca e Pelé reclamassem”. * A reportagem do Alma Preta não conseguiu localizar Cristóvão Borges, enquanto Andrade preferiu não se pronunciar sobre o tema. Depois de semanas em contato com a assessoria de Roque Jr., a reportagem não conseguiu uma resposta.Mesmo com inúmeros craques negros na história do futebol nacional, o cargo de treinador ainda é um tabu para os afro-brasileiros