Por Erin McAweeney, compartilhado de Carta Maior –
Essa pandemia expõe a crescente desconfiança coletiva na competência dos especialistas em saúde
A resposta sobre quem lucra com as vítimas de informações falsas e de ausência de informações sobre a saúde é menos óbvia do que quem perde. Essa é uma pergunta que tenho feito repetidamente a mim mesma e não é uma resposta tão direta quanto, por exemplo, a interferência estrangeira em uma eleição para conduzir um candidato preferido ao cargo. As campanhas realizadas por atores estrangeiros que se intrometem na integridade das eleições têm uma continuidade linear de conteúdo que pode ser rastreada até o poder político no centro. As vendas de equipamentos de preparação para o dia do juízo final e a atenção recebida por fazer afirmações ousadas online sobre a disseminação do coronavírus têm motivações claras, mas o efeito a longo prazo da desinformação sobre a saúde é mais insidioso. É tanto uma questão de quem se beneficia agora – um tele-evangelizador explorador ou um movimento crescente contra a vacinação -, mas também quem lucra mais tarde com a erosão gradual da crença institucional.
Grupos diferentes com motivações diferentes estão explorando a pandemia do COVID-19 de formas diferentes. Sou analista sênior da Graphika, uma empresa de análise de redes de mídia social, onde mapeamos o “terreno ciber-social” e as informações que fluem por eles. Até o momento, encontramos comunidades online que tratam de tópicos de saúde, grupos políticos e grupos de identidade social que passam informações erradas sobre a COVID-19: televangelistas vigaristas, Qanon [uma teoria da conspiração de extrema direita pró-Trump], MAGA no Twitter [MAGA é a palavra de ordem das campanhas trumpistas: Make America Great Again, ou, Façamos a América Grande Novamente], militantes antivacinação, políticos e bilionários conservadores e contra o Partido Comunista Chinês e partidos anti-imigração na França e na Itália. Esses grupos estruturam e deturpam a questão de modo a se ajustarem às suas metas ideológicas.
Os maus atores que pretendem espalhar conteúdo problemático podem facilmente ganhar, levando vantagem em um ecossistema informacional cheio de pessoas imersas numa crise de saúde, em pânico, em busca de informações. Por exemplo, o fluxo constante de notícias de última hora, durante as primeiras semanas, dessa pandemia criou novas pesquisas por palavras-chave e ausência (vazios) de dados nos mecanismos de busca que aguardavam o preenchimento de informações. Informações que podem demorar um pouco para serem confirmadas. Mas as informações verificadas podem levar mais tempo para preencher esse vazio do que a teoria da conspiração com armas biológicas, que já havia circulado fortemente nos mapas da Graphika.
E soluções definitivas, como uma vacina, podem demorar ainda mais para serem produzidas – mais devagar que a cura por uma “prata coloidal” mágica que, antes dessa crise, já estava sendo popularizada como uma “cura” para o câncer. Pessoas em pânico e sedentas por informações têm maior probabilidade de consumir essas informações problemáticas a uma taxa mais rápida e a um volume maior, em vez de ficar na incerteza esperando por confirmação. É assim que um ecossistema informacional online é construído para minar ainda mais nossa confiança coletiva em especialistas e instituições de saúde.
Legenda: Um mapa da Graphika que mostra a rede de desinformação sobre o coronavírus no Twitter.
No final, com bastante dúvida semeada nas instituições, as pessoas involuntariamente farão o trabalho de criar desinformação para maus atores. Links para ferramentas de “rastreamento” e mapas do coronavírus foram os quatro principais URLs compartilhados nos agrupamentos conspiratórios no mapa de coronavírus de fevereiro da Graphika – o serviço de alerta de notícias BNO News, sozinho, foi compartilhado 1.965 vezes. A popularidade de rastreadores e mapas produzidos em casa se vincula a conspirações em torno do número de mortos, desconfiança das estatísticas estabelecidas sobre o vírus e uma descrença maior na integridade dos dados de saúde.
Por exemplo, considere o usuário que tuitou sua investigação pessoal usando um site de rastreamento meteorológico windy.com e imagens de satélite da agora desmascarada taxa crescente de dióxido de enxofre em Wuhan. Embora a investigação tenha sido falha, o tópico do tuíte foi compartilhado mais de 800 vezes em um dia em nosso mapa de coronavírus, e pelo menos dois meios de comunicação cobriram a história. A investigação provavelmente foi inspirada por um artigo conspiratório do Epoch Times, escrito alguns dias antes com entrevistas “exclusivas” de médicos chineses sobre os supostos crematórios secretos.
Uma desestabilização maior das instituições científicas e de saúde está em ação. A crença em uma conspiração na saúde tem mais chances de levar a uma maior rejeição na ciência. Não deveria ser surpresa que houvesse um aumento de 80% nas contas antivacinação que a Graphika coletou participando da conversa sobre o coronavírus. Portanto, hipoteticamente, quando uma administração presidencial está sendo cada vez mais responsabilizada por permitir o pior surto de COVID-19 em todo o mundo, não é difícil imaginar que a mesma administração deflita essas acusações com desinformação – rumores de uma arma biológica de engenharia chinesa, por exemplo. Um público fragmentado demais para confiar coletivamente nos especialistas em saúde não consegue responsabilizar uma administração por suas mentiras. Os vigaristas e os vendedores de óleo de cobra estão lucrando agora, mas a incerteza plantada hoje abre caminho para que um poder opressivo tenha mais vantagens em uma sociedade fragmentada, muito mais vulnerável à desinformação no futuro.
Erin McAweeney é analista de pesquisa sênior da Graphika e afiliada da Data & Society, onde trabalhou anteriormente na equipe de pesquisa de Saúde e Dados.
*Publicado originalmente em ‘Points Data & Society‘ | Tradução de César Locatelli