Racismo e intolerância religiosa no ‘BBB 23’ escancaram realidade brasileira

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Eliminado da casa, o médico Fred Nicácio chora ao ver as cenas protagonizadas por colegas de confinamento; organização notifica Rede Globo

Por Ana Carolina Aguiar, compartilhado de Projeto Colabora




Fred Nicácio chora ao ver Key, Cristian e Gustavo com medo de sNa foto:ua religião: “Intolerância e racismo”. Reprodução/Gshow

Eliminado nesta terça (28/2) do “BBB 23”, Fred Nicácio chorou, na entrevista após o programa, ao ver os vídeos de seus colegas de quarto na casa dizendo estar com medo dele por conta da religião. “Três pessoas brancas falando sobre isso. É para além de intolerância religiosa, é racismo religioso”, desabafou o médico. Nas cenas ocorridas há mais de uma semana, Key, Gustavo e Cristian — estes dois também já eliminados — deixam evidente o preconceito e a ignorância a respeito das religiões de matriz africana, que chamaram de “os negócios dele”. Depois do episódio, o apresentador Tadeu Schmidt fez um discurso sobre  a importância da diversidade religiosa. 

Intolerância religiosa é algo muito sério. Isso machuca muito, isso mata pessoas no Brasil inteiro. É muito sério associar relgiões de matriz africana à maldade, à perversidade, a desejos ruins. É muito triste você ouvir isso, Falar que vai apertar o botão (para sair do programa), Key. Se fosse eu com um terço como o do Gustavo, não ia acontecer nada. Ia ser super bem-vindo”, lamentou Nicácio.

A intolerância religiosa e o racismo religioso escancarados no “Big Brother Brasil” refletem o que acontece em todo o país. Em pesquisa coordenada pela Rede Nacional de Religiões Afro-Brasileiras em 2022, foram ouvidos 255 terreiros do país inteiro. Cerca de 78% dos entrevistados relataram que indivíduos de suas comunidades já sofreram algum tipo de violência motivada por racismo religioso, e quase a metade dos entrevistados registrou até cinco ataques nos últimos dois anos. 

Intolerância religiosa vem do tempo colonial

Para Claudia Alexandre, jornalista e doutora em Ciência da Religião pela PUC-SP, a intolerância religiosa no Brasil tem ligação direta com o passado colonialista do país. “A nossa Constituição atual protege a liberdade de escolha e de expressão religiosa individual, em grupos e  até mesmo o direito de não ter religião. Porém nem sempre foi assim, vivemos no país com memórias de um passado que ignorou práticas tradicionais outras, que não fossem católica-cristãs”, afirma.

Quando falamos em demonização das tradições de matrizes africanas sabemos que é um enfrentamento a um sistema que ajudou a estruturar o pensamento e o imaginário dominante sobre as religiosidades de matrizes africanas que ainda não foi superado

Claudia AlexandreDoutora em Ciência da Religião

Em 1890, na teoria, o país se tornou laico com a separação da Igreja Católica do poder do Estado depois dos mais de 300 anos em que atuou, inclusive, nos crimes de escravização negra e indígena. “Quando falamos em demonização das tradições de matrizes africanas sabemos que é um enfrentamento a um sistema que ajudou a estruturar o pensamento e o imaginário dominante sobre as religiosidades de matrizes africanas que ainda não foi superado“, afirma Claudia. 

Diferença entre intolerância e racismo religioso

Há uma diferença substancial entre intolerância e racismo religioso. “A intolerância religiosa se relaciona a ataques e discriminação de qualquer grupo contra a religião do outro. Nos casos dos candomblés, umbandas e outras denominações de matrizes africanas ou de tradições indígenas, temos que apontar o processo histórico de escravização, dominação e opressão sobre esses corpos,  que está ligado às questões raciais”, explica. Ou seja, o racismo religioso é tratado como um agravante da intolerância religiosa.

Ao analisar o caso do Fred Nicácio, a jornalista caracteriza o Brasil como um país racista que não encontrou ainda um mecanismo eficiente para superar o passado escravista, principalmente no que se refere à revisão da sua própria história e as leis que regem as relações étnico-raciais. “O que os participantes do BBB expressaram em relação ao outro participante negro, que expressou sua ligação com o culto aos orixás, é intolerância religiosa, é racismo religioso, mas denuncia ignorância sobre a liberdade de crença. Pessoas racistas ignoram inclusive que estão cometendo crime de racismo, previsto na Constituição do país. Ali está o retrato do que somos hoje”, pontua. 

Ela acrescenta ainda que o caso do Fred denuncia como os sistemas — neste caso, a emissora do programa — contribuem para manter o racismo sistêmico e seguem alheias e incapazes de dar resposta efetiva. “É uma sociedade marcada por um passado escravista contra negros e indígenas, que esteve sob domínio de um poder que nos fez retroceder em relação aos direitos humanos conquistas, negando as lutas e os problemas das desigualdades e falta de oportunidades para grupos historicamente excluídos e por muito tempo desumanizados”.

A jornalista enxerga como complexo o caminho para combater a demonização de religiões de matrizes africanas. “É preciso recontar a história do Brasil e da formação da sociedade e valorizar a herança que vem dos povos africanos e dos povos indígenas, que inclui compreender como esses grupos que foram dominados e violentados viam e sentiam o mundo, com organizações complexas, mas que em nada podiam ser consideradas primitivas”. Por se tratar de uma estrutura social e práticas sistematizadas nas relações sociais desse país, negros e indígenas continuam sendo subestimados e não sendo vistos em espaços de poder. 

Para ela, é preciso, como sociedade, respeitar a liberdade do outro, denunciar e se indignar quando presenciar discursos de ódio ou qualquer outro tipo de violência que fira o direito de escolha de outras pessoas. O cumprimento da lei – que tipifica o racismo como crime, seja qual for a forma como se manifeste – é essencial para o avanço desse debate na sociedade. “Ao exigir o respeito ao outro estamos beneficiando a nós mesmos e tornando a sociedade mais justa e igualitária. Precisamos avançar. Não é aceitável que em pleno século 21, o Brasil continue se orgulhando dos seus índices de desigualdades sociais e de intolerância religiosa, que continuam denunciando que vivemos num país intolerante e racista”, pontua Claudia.

O caso de Fred Nicácio aos olhos da lei

Na última quinta-feira (23), o Instituto de Defesa dos Direitos das Religiões Afro-brasileiras (IDAFRO) entregou à Justiça uma notificação referente ao episódio de intolerância religiosa ocorrido no programa da Rede Globo. A ação movida contra a emissora tem representação do advogado Hédio Silva Júnior, doutor em Direito pela PUC-SP e também Coordenador-Executivo do IDAFRO. 

O advogado ressalta a reincidência existente nesse episódio. Apesar de reconhecer o esforço e empenho da Rede Globo no âmbito da diversidade, ele alega semelhança entre o caso de intolerância religiosa com Fred  e com a ex-BBB Lumena em 2021 fazendo com que a emissora seja reincidente. “É um caso perverso, pois o próprio Fred Nicácio não tem noção do contexto devido a diálogos aos quais ele não teve acesso. Sem dúvida alguma, ali tem um ilícito civil de racismo religioso. Há uma violência contra o sentimento religioso dele próprio porque é evidente que a conduta dele foi absolutamente inofensiva”, afirma. 

Diante do ocorrido, o IDAFRO está aguardando a resposta da emissora. Caso contrário, ocorrerá judicialização. “Nós vamos lamentar se isso acontecer, mas não vamos abrir mão porque é reincidente e significa que a Globo precisa se aprimorar. Ela cuida (do tema) sim, mas é evidente que as medidas tomadas não foram suficientes”, declara.

O papel do Estado no combate à intolerância religiosa

De acordo com o advogado, o foco desse combate se apresenta na dimensão penal, mas é necessário que o Estado também seja responsabilizado. Trazendo um caso concreto como exemplo, Hédio elucida essa realidade. “Centenas de sacerdotes e sacerdotisas foram expulsos da Baixada Fluminense. Eles são uma espécie de refugiados domésticos segundo o direito, deslocados compulsoriamente também do seu local de moradia. Temos que responsabilizar o Estado por isso”, conta.

Temos que sair do âmbito da repressão, da sanção penal e cível, e ingressarmos no campo do sistema de valores. Tolerância quer dizer mais respeito do ponto de vista jurídico, ao contrário do que muita gente pensa, porque tolerância quer dizer coexistência, convivência harmoniosa e cultura de paz

Hédio da Silva JúniorCoordenador-executivo da IDAFRO

Para Hédio, em um país rico de identidades culturais como o Brasil, o papel do Estado é assegurar que os descrentes e os crentes possam expressar publicamente a sua fé ou a sua descrença num âmbito de paz e de respeito recíproco. “Temos que sair do âmbito da repressão, da sanção penal e cível, e ingressarmos no campo do sistema de valores. Tolerância quer dizer mais respeito do ponto de vista jurídico, ao contrário do que muita gente pensa, porque tolerância quer dizer coexistência, convivência harmoniosa e cultura de paz”, pontua. A educação escolar e a indústria cultural também são fatores determinantes nesse processo de mudança social para o advogado. 

Como candomblecista, Hédio enfrenta uma hostilidade durante o seu cotidiano ao sair com as vestes brancas da religião. “Eu sou Ogã, eu sou do candomblé e eu sou preto. Eu não deixo de ir em lugares que eu vou quando estou de terno e é cotidiana essa hostilidade, as ofensas, os comentários. Isso é muito enraizado e, se não ingressarmos no sistema de valores, teremos muita dificuldade para ter uma mudança qualitativa e substantiva nesse tema tão caro para o povo de axé que é o racismo religioso”, afirma.

Com um passado estruturado na colonização, Hédio reconhece o cristianismo compulsório ao qual a sociedade brasileira é submetida há séculos. Durante o regime escravocrata, os escravizados apenas tinham “descanso” aos domingos durante algumas horas se fossem à missa. Além disso, a feitiçaria já foi crime punido com pena de morte e a capoeira era considerada crime até 1941. Hoje, o advogado observa uma ressignificação do discurso de ódio. “Você tem a mudança de um vetor totalitário, que é representado pela religião oficial do Estado,  e depois essa diretiva totalitária foi substituída por outra: a difusão do medo e a apresentação de uma solução mágica e bem remunerada para a salvação ou para a blindagem do mal”, conta ao se referir ao crescimento do neopentecostalismo.

Diante dessa expansão de igrejas neopentecostais, Hédio afirma ser mais fácil materializar a representação do demônio no Brasil com um terreiro de umbanda e candomblé em cada esquina. Usando como exemplo a importância do sangue, ele alega que os dogmas e ritos adotados pelas religiões de matrizes africanas não diferem tanto da maioria de outras confissões religiosas, como a presença do abate litúrgico no judaísmo e islamismo. “As religiões afro-brasileiras, na sua conformação doutrinária e dogmática, não se diferem substancialmente da maioria das outras, mas ela está associada ao legado civilizatório africano e ao tráfico transatlântico. Por isso, eu utilizo a expressão racismo religioso, porque a religiosidade é a face mais visível desse antagonismo entre o mal e o bem”.

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