Racismo em discussão na ONU: estruturas sociais, políticas e econômicas alimentam intolerância e exclusão

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O texto abaixo é uma adaptação do discurso do professor, doutor e babalawô Ivanir dos Santos, fundador do Centro de Articulação de Populações Marginalizadas (CEAP), na terceira sessão do Fórum Permanente de Pessoas Afrodescendentes da ONU. O evento foi realizado nesta quinta-feira, 18 de abril, no Palais de Nations, em Genebra, na Suíça:

Por Ivanir dos Santos, compartilhado de The Conversation




Ivanir dos Santos é Babalawô e professor no Programa de Pós-graduação em História Comparada, Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)

A intolerância religiosa e o racismo não são fenômenos recentes na história global e principalmente no Brasil, seja no campo político, social, espiritual e religioso.

A intolerância religiosa faz parte de um processo dicotômico da dominação social, política e religiosa entre a “boa” e a “má” religião, travado no Brasil desde o período colonial, a partir do encontro entre a religião cristã e as religiosidades africanas em solo brasileiro, onde os adeptos das religiões africanas, com suas culturas e suas representações, configuram um mal a ser combatido pelos não adeptos a estas religiosidades.

Em “Memórias da Plantação”, a escritora portuguesa Grada Kilomba afirma que “só quando se reconfiguram as estruturas de poder é que as muitas identidades marginalizadas podem também, finalmente, reconfigurar a noção de conhecimento”, tomando essa ideia como um ponto focal para a compreensão do racismo e da intolerância religiosa no Brasil.

Eu endosso o que diz a escritora. Destacando que, além de ajustar as estruturas sociais, políticas e econômicas, também precisamos reconfigurar as pessoas que as gerem. Pois são nesses e por meios desse meios que a intolerância religiosa e o racismo se fortalecem. E não podemos perder de vista que falar e escrever sobre estes últimos é pontuar os processos de glorificação de um passado escravista e a negação das realidades de violência cotidiana sobre as populações negras e os adeptos das religiões de matrizes africanas.

Segundo os dados dos II Relatório sobre Intolerância Religiosa: Brasil, América Latina e Caribe, publicado em 2023 pelo CEAP em parceria com a UNESCO, no ano 2021, dos 966 casos de intolerância religiosa no Brasil registrados pelo instrumento de denúncias do governo federal (Disque 100), 244 casos são contra adeptos religiosos da de matrizes africanas.

As fontes que alimentaram o II Relatório foram apresentados nos casos acolhidos e registrados pela Comissão de Combate à Intolerância Religiosa (CCIR), junto ao Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, ao ISP (Instituto de Segurança Pública da Cidade do Rio de Janeiro) e à Secretaria de Direitos Humanos da cidade do Rio de Janeiro.

Diante do crescimento dos casos de intolerância religiosa, dentro do presente cenário político e social brasileiro, realidade que não nos favorece em nada, um certo desejo teimoso de prosseguir na luta cotidiana pesquisando, analisando, escrevendo e denunciando todos esses que ainda existem em nossa sociedade. A intolerância religiosa e o racismo são reais e ameaçam boa parte dos grupos religiosos marginalizados no Brasil e promovem uma serie de exclusões.

E no momento em que me arrisco a escrever essas linhas, vários casos de intolerância religiosa e racismo estão acontecendo dentro e fora do Brasil. Como bem sabemos, durante muitas décadas as comunidades negras e suas religiões, que têm suas matrizes no continente africano, ficaram confinadas à objetificação de trabalhos no campo das ciências, ou quando muito como substrato estatístico para pesquisas de bancos de dados.

Retirá-las dessa marginalidade social a qual foram condicionadas e promover um estudo voltado para as resistências das religiões de matrizes africanas, enquanto sujeitos históricos, foi e ainda é um dos maiores desafios para a academia brasileira.

Por meio das interpretações dos dados apresentados no II Relatório, concluímos que o grupo que mais sofre intolerância religiosa no Brasil é de fato o dos adeptos das religiões de matrizes africanas.

Apesar de parecer algo “dado”, uma brevíssima análise sobre a formação social do Brasil e como a sociedade brasileira opera pela ótica da ideia da “democracia racial” se fez necessária para o entendimento de que a intolerância religiosa e o racismo têm as suas bases de fundamentação muito próximas.

Entretanto, preciso destacar que intolerância religiosa e racismo são ações criminosas diferentes e, por mais que tenham as mesmas raízes, precisam ser apontadas e compreendidas em suas fundamentações. Em suas obras, o filósofo afro-caribenho Frantz Fanon e a própria Grada Kilomba, já citada no início deste texto, destacam que, dentro da estruturação da supremacia branca, outros grupos raciais não podem ser racistas nem performar o racismo, pois não possuem… poder.

Assim, ao apontarmos “racismo religioso”, tal como é verificado no Brasil, estamos pontuando que existe uma identidade religiosa ligada à cor da pele das pessoas. E ao fazermos tal assimilação, estamos, possivelmente, “limando” a possibilidade de escolha e criando um condicionamento religioso com base na cor da pele dos indivíduos. Ou por assim dizer, ao fazer tais análises a sociedade cria pré condições e estabelece a identificação dos corpos negros a uma atribuição religiosa.

De certo, não podemos deixar de destacar que, durante muito tempo, as práticas espirituais de homens e mulheres negros, que chegaram ao Brasil na condição de escravos, eram vistas e tidas como “religiões negras”. Entretanto, essa determinação estava relacionada à identidade que o outro, cristão (branco) colonizador, atribuía à prática religiosa diferente de suas crenças e liturgias.

Contudo, tal assimilação não eximia, como não exime, a participação e iniciação religiosa de pessoas não negras a religiões de matrizes africanas. Daí então, podemos compreender que “racismo religioso” não tem uma estabilidade ontológica de interpretações sobre os casos de agressões físicas, psicológicas e patrimoniais motivadas pelo ódio religioso.

De fato, é óbvio que a intolerância religiosa contra adeptos das matrizes africanas está intimamente ligada ao racismo científico, que ainda perdura no imaginário social coletivo brasileiro. Se compreendemos que pessoas não negras não sofrem racismo, obviamente não podemos dizer que sofrem racismo religioso ao assumir tais identidades culturais e religiosas.

Porém, nos debates sobre as questões raciais no Brasil o racismo não pode ser o único vetor de identificação dos casos de ódio religioso. E ainda sou tentado a afirmar que a intolerância contra as religiões de matrizes africanas tem a ver com a cultura que elas representam e que está ligada às “africanidades”, as quais nos apresentam uma identidade religiosa destoante da vigente, a cristã.

Uma relação construída com base nas diferenças. Portanto, no Brasil, ao pontuarmos as ações de ódio religioso pelo viés da ideia do racismo religioso, precisamos conectar tais análises à noção de racismo cultural. E sobre essa identidade religiosa destoante, precisamos compreender que na África a pessoa existe em sua totalidade religiosa, ou seja, não é possível separar o ser social do ser religioso.

Passamos a entender também que, durante os períodos das diásporas forçadas dos negros africanos, estes últimos aportaram na América trajando suas religiosidades, pois o mundo em que viviam não era/é construído a partir de uma visão cartesiana em que é possível separar o indivíduo religioso do indivíduo social.

Assim, diante de tal cenário e bucando construir e promover estrategias de combate à intolerância religiosa e erradicação do racismo como uma ação formativa decolonial e proncipalmente no campo cultural, o CEAP, em parceria com a CCIR, realizam anualmente a Caminhada em Defesa da Liberdade Religiosa e o Festival Cultural Inter-religioso “Cantando a gente se Entende”. Sem bandeiras politicas partidaria a Caminhada, que em 2024 chegará à sua 17ª edição, acontece, anualmente, no terceiro domingo do mês de setembro na orla de Copacabana (RJ).

O evento vem reunindo, a cada edição, mais de 200 mil pessoas que juntas lutam em prol da defesa dos direito humanos, das liberdades, da equidade, da diversidade, pela democracia e direitos de culto. Já o Festival Cultural Inter-religioso “Cantando a gente se Entende”, que atualmente está na sua 10ª edição, reúne artistas cantores diversa denominações religiosas para o fortalecimento inter-religioso por meio as música, do conhecimento da cultura e da religiosidade.

Assim, para finalizar, cito um trecho do pensamento de Nelson Mandela, ex-presidente da África do Sul:

“Ninguém nasce odiando outra pessoa pela cor de sua pele, ou por sua origem, ou sua religião. Para odiar, as pessoas precisam aprender, e se elas aprendem a odiar, podem ser ensinadas a amar, pois o amor chega mais naturalmente ao coração humano do que o seu oposto. A bondade humana é uma chama que pode ser oculta, jamais extinta.”

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