Racismo mata: o caso do Carrefour e outros tantos Brasil adentro

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Por Vera Lúcia Santana Araújo, da Conjur, compartilhado de Geledes – 

20 de Novembro é Dia da Consciência Negra. Conquista arrancada pelo Movimento Negro para assinalar a persistência do racismo que estrutura e dá forma ao Brasil, a data segue sendo uma construção renovada pelas forças vivas da negritude e homenageia nosso líder quilombola, revolucionário, Zumbi dos Palmares.

20 de novembro de 2020. O Brasil é despertado com uma cena absolutamente bestial.

Com apenas uns cinco minutos, no estacionamento de uma unidade da rede de supermercados Carrefour, em Porto Alegre, agentes de segurança pública e privada atacam um homem negro numa sessão de espancamento até a morte. Simples assim. Com naturalidade, a cena bárbara foi gravada e depois ganhou o mundo pelas redes sociais.




O homem assassinado sob impassível câmara de celular e estupefação quiçá explicativa da inércia coletiva tinha a cor dos anônimos negros e pardos, condição determinante para ser encarcerado ou preferencialmente morto. Sequer gera custo público.

O homem das estatísticas da violência produzida exclusivamente pelo racismo tinha nome — JOÃO ALBERTO SILVEIRA FREITAS —, tinha companheira, filhas, pais e, como bom brasileiro, também tinha seu time de futebol, o Esporte Clube São José, tão distante das elites do grupo A quanto ele mesmo e família. Isso basta para a degola sob qualquer armamento ou braços fortalecidos pela parcimônia do sistema de justiça quando da apreciação e julgamento dos crimes cometidos contra a gente negra no país.

1987. O assassinato na véspera do Dia da Consciência Negra me fez voltar no tempo com  a profunda e incômoda sensação de nunca ter saído daquele ano de 1987, quando estive em Porto Alegre pela primeira vez, exatamente para atos e articulações nacionais de repúdio ao assassinato de Júlio César, um trabalhador negro, baleado pela Brigada Militar do Estado do Rio Grande do Sul, num supermercado… a semelhança é mera coincidência? Sabidamente, não!

A história do Brasil resiste à escrita de capítulos efetivamente novos, livres das amarras do preconceito que se expressa num racismo visceralmente entranhado e encampado pela sociedade brasileira a partir da supremacia ideológica da branquitude que produz arranjos institucionais mantenedores de benefícios e privilégios conferidos aos brancos, forjando um amálgama de naturalização da sobreposição racial gestada para o regime de escravização negra e ainda hoje até os assassinatos sistêmicos encontram amparo social e estatal.

Sim, a sofisticação engendrada pelas “elites brancas” do Brasil, qualificação cunhada pelo insuspeito Cláudio Lembo, fez do país um laboratório muito peculiar de reificação de práticas primitivas porque remontam à subjugação inerente ao regime do trabalho escravo, recusando sistematicamente a mera adequação ao capitalismo que aqui encontra singular modelo de concentração de renda, extraindo incalculável mais-valia da força do trabalho negro.

Sobre o recorte econômico, para ficar num único referencial, a Síntese de Indicadores Sociais do IBGE, divulgada no último 12 de novembro, dá conta de que no Distrito Federal a remuneração dos brancos é 61% superior à dos negros! Este é o cenário da radicalidade regente de um modelo econômico que ganha contornos devastadores, em face do ultraliberalismo predatório, gerador de um lumpesinato negro, massa pronta para o abate.

E é assim que banda toca!

A matança por atacado da juventude negra, do povo negro, não permite tergiversar sobre o caráter privativo para brancos e assim racista do funcionamento dos Poderes da “República” e instituições do país, compondo o ambiente perfeito para o Estado, as milícias e particulares em geral executarem os corpos negros com a anuência coletiva, cabendo aqui trazer a norte-americana Assata Shakur uma “revolucionária Preta”, como se autodeclara, e seus “Escritos” publicados pela organização Quilombo Xis (Ação Cultural Comunitária Reaja ou Será Morto/a), em 2016, pág 55:

“Eles nos chamam de ladrões e bandido. Eles dizem que nós roubamos. Mas não fomos nós que roubamos milhões de pessoas Pretas do continente africano. Nós fomos roubados da nossa língua, dos nossos Deuses, da nossa cultura, da nossa dignidade humana, do nosso trabalho e das nossas vidas. Eles nos chamam de ladrões, ainda que não sejamos nós que desviamos bilhões de dólares todo ano em evasões fiscais, fixação ilegal de preços, peculato, fraudes contra o consumidor, subornos, propinas e corrupção. Eles nos chamam de bandidos, ainda que toda vez que a maioria das pessoas Pretas pegam os seus salários estejam sendo roubadas. Toda vez que entramos numa loja na nossa vizinhança, nós estamos sendo extorquidos. E toda vez que nós pagamos nosso aluguel, locador enfia uma arma em nossas costelas”.

A realidade americana desnudada por Shakur não difere em nada do quadro brasileiro, onde a repulsa ao fim da escravidão, ao “trabalho livre”, fez do país o último a abolir o trabalho escravo, mas o fez de modo calculadamente perverso, sem promover qualquer medida apta a incluir nos novos modos de produção trabalhadores e trabalhadoras até ali sob escravização. Nenhuma ação relativa à reforma agrária que ainda preserva com uso das forças públicas e milicianas o latifúndio como modelo de propriedade privada improdutiva; nenhum ato relativo ao acesso à educação, mas, ao contrário, os governos da época se voltaram à edição de leis e políticas hostis à gente negra, e mais que isso, se lançaram no oferecimento de vantagens à imigração de europeus, precipuamente, para manter os negros à margem das novas relações de produção.

A construção do Brasil teve sempre a vontade política de rejeitar e excluir sua população negra da vivência da cidadania. Eis o fato absoluto que encontra na violência estatal “sua mais completa tradução”, aqui sem a poética de Caetano Veloso.

Elementos incontestáveis da violência racial como dado da verdade brasileira tem por exemplo no encarceramento, a colocação do país num alto pedestal de terceira população carcerária do mundo, encontrando nos corpos negros o objeto ideal para tratar como rebotalho a representação de 56% da sua população. Relativamente às condições penitenciárias onde são jogados corpos negros, não humanos, nunca é demais recordar que desde 2015 o Supremo Tribunal Federal reconheceu o estado inconstitucional de coisas do sistema carcerário. E daí? Nada. Apenas uma constatação.

Voltando à vida ceifada de João Alberto, ou Beto, ele tinha sim tratamento carinhoso em seu meio familiar e social, imperioso registrar imediata resposta social interna e mesmo internacional, pela voz potente e de largo alcance do super campeão Lewis Hamilton, fazendo se abrir alguma réstia de luz e esperança de que faça eco sobre as autoridades incumbidas das investigações e responsabilização penal e administrativa.

As manifestações coletivas Brasil afora trazem a expectativa de que a morte de João Alberto não recaia na vala dos frios números das estatísticas da impunidade, vez que já soma no banco de dados das vidas perdidas para a mortandade negra.

Notícias veiculadas pela grande mídia dão conta de que a empresa de segurança privada contratada pelo Carrefour Porto Alegre é de propriedade de dois policiais — uma militar e um civil, ambos dos quadros do estado de São Paulo. Aí incide averiguar e acompanhar a resposta do governo estadual.

No âmbito criminal, o Ministério Público e o Tribunal de Justiça do Estado Rio Grande do Sul estão com o papel constitucional de bem respeitar o direito à ampla defesa e contraditório dos acusados Magno Braz Borges e Geovane Gaspar da Silva, presos em flagrante pela bestialidade que não permite tergiversar sobre a autoria, mas igualmente carregam a missão da boa aplicação do Direito, sem clivagens negacionistas do racismo e como tais desconstitutivas da humanidade do corpo negro.

Relativamente à motivação racial, a filha mais velha de João Alberto, Thais Freitas, 22 anos, agora órfã de pai, disse ao jornal O Globo:

“Nossa sociedade é racista, e eu já sofri racismo, como apelidos por exemplo. As pessoas ficam nos olhando diferente no shopping. Só a cor da pele é diferente, mas somos todos iguais”.

De forma simples e objetiva, Thais nos provoca ao desafio da desconstrução das estruturas que dão forma ao racismo, sendo certo que tal tarefa não pode prosseguir sem o efetivo engajamento dos donos do poder — os brancos, construtores do ideário da branquitude que lhes beneficia e protege. Romper esse constructo exige tirar da invisibilidade os mais de cinquenta por cento da população do país e isso faz obrigatória a citação de Ralph Ellison no clássico Homem Invisível, onde o Prólogo já anuncia:

“Sou um homem invisível. Não, não sou um fantasma como os que assombravam Edgar Allan Poe; nem um desses ectoplasmas de filme de Hollywood. Sou um homem de substância, de carne e osso, fibras e líquidos  talvez se possa até dizer que possuo uma mente. Sou invisível, compreendam, simplesmente porque as pessoas se recusam a me ver. Tal como essas cabeças sem corpo que às vezes são exibidas nos mafuás de circo, estou, por assim dizer, cercado de espelhos de vidro duro e deformante. Quem se aproxima de mim vê apenas o que me cerca, a mim mesmo, ou os inventos de sua própria imaginação  na verdade, tudo e qualquer coisa, menos eu”.

A invisibilidade de que trata o escritor americano somente é quebrada aos olhos da exclusão seletiva na contratação para um mercado de trabalho que aufere os lucros do salário a menor, da colocação negra para as atividades insalubres e perigosas, mas acima de tudo aos olhos da repressão que quebra nossos ossos, esmaga nossas fibras, faz jorrar os líquidos e esfacela nossas almas, que no entanto se entronizam em novos e rebeldes corpos de resistência e luta!

É “Tempo de nos aquilombar”, convoca Conceição Evaristo!

“É tempo de caminhar em fingido silêncio,
e buscar o momento certo do grito,
aparentar fechar um olho evitando o cisco
e abrir escancaradamente o outro.
(…)
É tempo de ninguém se soltar de ninguém,
mas olhar fundo na palma aberta,
a alma de quem lhe oferece o gesto.
O laçar de mãos não pode ser algema,
e sim acertada tática, necessário esquema.
É tempo de formar novos quilombos,
em qualquer lugar que estejamos (…)”

A realidade de 2020 nos mostra o acerto da chamada que na mística quilombola invocada para encerrar a conclamação de nossa escritora e inspiradora, “a liberdade é uma luta constante!”

Seguimos em luta!

Vera Lúcia Santana Araújo é advogada, ativista da Frente de Mulheres Negras do DF e Entorno, integrante da Executiva Nacional da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia e do Grupo Prerrogativas.

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