Por Artênius Daniel –
Apenas pare. Olhe para esta foto. Leia este texto. Este é Rafael, 27 anos de São Paulo. Ele está preso há 103 dias.
Rafael trabalha como entregador para vendedores de alimentos no bairro do Ipiranga, na Zona Sul da cidade, No dia 17 de julho, às 14:25, ele chegou a um supermercado para comprar salsichas para um dos seus patrões. Às 14:29 ele está no caixa, pagando pelos produtos. O horário exato e as imagens são registrados pelas câmeras de segurança do local. Exatamente na mesma hora em que Rafael é filmado saindo do supermercado, uma menina branca, de 10 anos, é assaltada e perde o celular no Parque da Independência, que fica a 1,6 quilômetros de distância do local.
Rafael chega ao Parque depois do crime e, ao passar de bicicleta perto dos pais da criança, é acusado de ser o assaltante. O casal branco ofende, humilha e intimida Rafael. “Você é malandrão, agora você está com medo”, diz a mulher.
Rafael rebate e diz que não roubou nada. “Acabei de entrar no parque”. A mulher branca o ataca novamente: “Você entrou foi para fazer a próxima vítima”.
O casal chama a polícia. O patrão de Rafael, também negro, chega ao local para defendê-lo. “Ele acabou de chegar para entregar uma compra de salsicha para mim”. O homem branco insinua que o vendedor de cachorro quente também seria um criminoso. “Eu vi que ele entregou uma sacola com alguma coisa para você”, diz, suspeitando que não fossem salsichas.
Rafael, indignado, faz questão de esperar a polícia chegar para apurar a situação. Outras pessoas no parque se aproximam e argumentam em defesa de Rafael. Um amigo dele está filmando toda a situação. Quando os policiais chegam, só escutam o casal.
O homem branco chama Rafael e seu amigo que está filmando de “vagabundos” e “lixo”. Os policiais apenas prendem Rafael.
Na primeira audiência judicial do caso, apenas os policiais são ouvidos, e Rafael vai para cadeia, mesmo com provas materiais de vídeo de que ele estava a 1,6 quilômetro de distância exatamente na hora do crime.
Mesmo com diversas testemunhas dizendo que não foi ele. Mesmo com o absurdo de um vídeo em que o casal racista demonstra todo o seu ódio por jovens negros como ele.
Rafael está preso e ninguém saberia disso se não fosse a matéria investigativa – excelente, há que se dizer – da repórter Paloma Vasconcelos, publicada ontem na Ponte.
Rafael está preso em um país cujo sistema judicial foi feito para trata-lo como um animal, como um pedaço de inutilidade, a parte preta a ser apagada, encarcerada, escondida, destruída.
Rafael está preso há 103 dias e as lágrimas que descem ao conhecer essa história, que imita de forma brutal os acontecimentos de “Olhos que Condenam”, série recente de Ava Duvernay, transforma-se em raiva pela invisibilidade deste caso junto à nossa chamada grande imprensa.
São 103 dias e Rafael não está na Folha de S. Paulo, que prefere afagar o ministro da Economia de Jair Bolsonaro nas suas páginas do que denunciar o que está acontecendo com quem é pobre e preto neste país na ascensão desse desgraçado estado fascista.
São 103 dias e Rafael não está na tela da Rede Globo, que só fala nas maravilhas das reformas liberais pra enriquecer banqueiro sem se importar com o regime ditador policiar que tomou de assalto a República e que sangra de morte, primeiramente, jovens negros Rafaeis em todas as grandes cidades desse inferno chamado Brasil.
Rafael não é notícia e sua família é mais uma a chorar sozinha o peso de uma injustiça enquanto o celular de uma menina branca de 10 anos vale mais do que a vida de todos juntos.
Este caso, eivado de tantas irregularidades, apontadas pela reportagem da Ponte e por juristas consultados, deveria ser conhecido em todo o Brasil e mobilizar o noticiário. Mas não é isso que acontece.
Choramos por Rafael, que está preso de forma tão assustadora e absurda, porque choramos por nós mesmos.
Quem é negro nesse país sabe a corda nunca arrebentará para o lado de lá. Querem nos prender. Querem nos matar.
Vão continuar prendendo. Vão continuar matando.