Por Henrique Oliveira, em Justificando –
A história de Rafael Braga já é amplamente conhecida pela sucessão de prisões e condenações ilegais que ele sofreu dentro de 3 anos. A primeira prisão e condenação remontam às manifestações de junho de 2013, quando o Estado brasileiro estava focado na repressão aos movimentos sociais, principalmente à figura do “Black Bloc”. Mesmo sem ter nenhum vínculo com os protestos de 2013, Rafael Braga foi o único condenado nesse contexto, sob a acusação de porte de Pinho Sol e água sanitária, mesmo com o laudo técnico apontando para a impossibilidade dos materiais serem usado como elementos incendiários.
Em Janeiro do ano passado Rafael Braga foi preso por Policiais Militares da Unidade de Polícia Pacificadora da Vila Cruzeiro, por tráfico e associação ao tráfico de drogas, enquanto cumpria liberdade condicional utilizando uma tornozeleira eletrônica.
No dia 20 de Abril, o portal do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro publicou a sentença que condenou Rafael Braga a 11 anos de prisão, por tráfico de drogas e associação, baseado apenas na narrativa policial e um flagrante forjado de 0,6 gramas de Maconha e 9,6 gramas de Cocaína.
A sua condenação foi decretada mesmo havendo contradições nos depoimento dos policiais, com testemunhas contestando a narrativa policial e o próprio Rafael Braga afirmando que as drogas foram plantadas pelos policiais.
No começo de Agosto, o Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro por 2 votos a 1 negou o pedido de Habeas Corpus feito pela defesa de Rafael Braga, o qual alegou falta de fundamentação por parte do juiz em não retirar as algemas de Rafael durante o julgamento e a não realização das diligências para o esclarecimento do caso, como o acesso as imagens da câmera da viatura em que ele foi levado até a delegacia, além de outras questões apontadas pela defesa.
Essa decisão negativa é fruto de um Poder Judiciário que passa por cima da realidade e ignora a ampla prática policial de forjar flagrantes de drogas para criminalizar sujeitos politicamente vulneráveis em nossa sociedade, como jovens negros e pobres. Inclusive, tal prática foi demonstrada pelas investigações da Operação Calabar no próprio estado do Rio de Janeiro, em que Policiais Militares prendiam usuários como traficantes para bater meta de produtividade no batalhão.
E sem que a família ou a sua defesa soubessem, Rafael Braga foi internado na Unidade de Pronto Atendimento e Hospital Dr Hamilton Agostinho Vieira, no Complexo Penitenciário de Gerinicó com suspeita de tuberculose que se confirmou. A internação foi literalmente descoberta, quando Adriana Braga, Mãe de Rafael, foi visitá-lo no domingo.
Um Relatório feito pela Defensoria Pública do Rio de Janeiro apresentado em maio, demonstrou o nível de insalubridade dentro da Penitenciária de Bangu 2, onde Rafael Braga está preso. O resultado mostrado revela que a cadeia está com superlotação, com capacidade para 881 presos, hoje a instituição abriga 3087 presos, praticamente quatro vezes mais. Os presos convivem nas celas juntamente com insetos, baratas, ratos e percevejos.
Segundo os dados do Ministério da Saúde, as pessoas que se encontram presas tem 28 vezes mais a possibilidade de contraírem tuberculose do que a população em geral. A tuberculose, uma doença totalmente tratável, é uma das que mais mata no sistema prisional. No estado de São Paulo, entre Janeiro de 2014 e Junho de 2017, 1.278 presos morreram nas unidades prisionais, uma média de 41 mortes por mês nos últimos três anos e meio. E cerca de 90% dessas mortes, um total de 1.558, foram classificadas como “mortes naturais”, quer dizer, não são resultados de ações violentas. Vale dizer que a maioria dos mortos tinha entre 18 e 29 anos de vida.
Apesar disso, na quarta-feira (30 de agosto) o Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro negou novamente mais um pedido da defesa de Rafael Braga, cujo pedido de liminar era para garantir um habeas corpus para permitir que ele pudesse cumprir prisão domiciliar para tratar da tuberculose.
O pedido da defesa estava embasado na premissa lógica e racional de que o sistema penal adoece uma pessoa e não pode, de forma alguma, ser o mesmo que vai possibilitar a sua recuperação. Mas, mesmo assim, o pedido foi negado pela desembargadora Katya Monnerat, a mesma que já tinha votado contra o outro pedido de habeas corpus.
A desembargadora argumentou que os documentos apresentados pela defesa, como prontuário médico, fotos que demonstram a grande perda de peso, e uma entrevista concedida à Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados – documentos esses que comprovariam a fragilidade da saúde de Rafael Braga – eram insuficientes. Ela também alegou que o caso precisava ser avaliado por todos os membros do Colegiado da 1ª Câmara Criminal.
A segunda negativa de habeas corpus é mais um episódio neste caso. Como disse o teólogo Ronilson Pacheco no jornal The Intercept Brasil, Rafael Braga e os fatos em torno das suas condenações são amplamente conhecidos, com campanhas nas redes sociais, nas ruas e no meio artístico pela sua liberdade, mas para a nossa elite jurídica ele é um jovem negro e pobre, apenas mais um sujeito insignificante. Ironicamente, o Promotor Guilherme Soares Barbosa, que pediu a condenação de Rafael Braga por tráfico de drogas, reclamou da pressão que sofre nas redes sociais sobre o caso, se defendendo das acusações de racismo institucional e seletividade.
É um Poder Judiciário que se comporta como uma casta, servindo aos interesses dos seus membros, haja vista o caso da desembargadora Tânia Garcia Freitas, do Mato Grosso do Sul, que retirou seu filho pessoalmente da cadeia, onde se encontrava desde abril, após ser preso portando munições, 150 quilos de Maconha e uma arma. O perfil do jovem é daquele que está no topo da pirâmide social.
Tráfico de drogas e a defesa da saúde pública, mas será mesmo?
Rafael Braga é uma pessoa a cada três que se encontram presas no Brasil e respondem por tráfico de drogas; as prisões por tráfico são responsáveis pela superlotação no sistema carcerário. Entre 2005 e 2013, a população carcerária triplicou, saindo de 50 mil para 150 mil.
O que esses presos têm em comum, além da cor e classe social, é o fato de que são acusados e condenados por violarem o artigo 33 da Lei antidrogas 11.343/06, o qual elenca 18 verbos para tipificar uma conduta em crime cuja pena pode ser de até 15 anos: Importar, exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor á venda, oferecer, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar, preservar, ministrar, entregar a consumo ou fornecer drogas, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar.
A legislação brasileira considera que todas essas condutas descritas no artigo 33 são crimes que violam a saúde pública, o bem jurídico tutelado no Código Penal pela política criminal de drogas. A discussão fica ainda mais interessante quando se constata que o tráfico de drogas é um crime sem vítima. Vale lembrar que a missão tradicional do Direito Penal é proteger bens jurídicos contra ataques ou perigos – por exemplo, o crime de homicídio salvaguarda a vida como um bem; o crime roubo defende o patrimônio, e por aí vai. São bens reais e concretos.
Mas onde está no crime de tráfico de drogas a capacidade de uma pessoa causar dano a outrem? Todas as condutas descritas no artigo 33 são condutas pacíficas, onde não se localiza a existência de um agressor e a vítima. Porque tráfico de drogas é no fim e ao cabo uma relação comercial que está na ilegalidade.
Além disso, ao mesmo tempo em que diz proteger a saúde pública, o Estado estimula a produção e o consumo de várias outras drogas que se encontram legalizadas na sociedade, isso sem falar da ausência de coleta de esgoto para 50% da população brasileira. Ou seja, como podemos aceitar o discurso de que estamos defendendo a saúde pública, se o governo mata pessoas em lugares onde ele não realiza investimentos básicos em saúde preventiva?
No Rio de Janeiro aumentou nesse ano o número de pessoas atendidas baleadas em tiroteios. Foram 1.175 nos seis primeiros meses. Como assim se defende a saúde pública sobrecarregando os hospitais com pessoas vitimadas todos os dias?
E a contradição fundamental do caso Rafael Braga é: como o Estado encarcera uma pessoa porque no código penal ela ofendeu a saúde pública e, ao mesmo tempo, permite que ela adoeça na cadeia? Que defesa da saúde pública é essa?
A verdade é que Rafael Braga se tornou um grande símbolo da luta contra o racismo e a seletividade do sistema penal, porque infelizmente ele é mais um jovem, negro, preso por tráfico de drogas ou em flagrante forjado, que entra saudável e adoece no sistema prisional brasileiro, tudo isso em nome da saúde pública. Imagina se não fosse.
Henrique Oliveira é graduado em História, mestrando em História Social pela UFBA, colaborador da Revista Rever e militante do Coletivo Negro Minervino de Oliveira/Bahia.