Por Djefferson Amadeus, Justificando –
A data de ontem – 08 de agosto de 2017 – entrou para a história como o dia em que dois negros – símbolos da seletividade penal – tiveram a manutenção de suas prisões ratificadas pelo Poder Judiciário.
Rafael Braga é o símbolo das manifestações de 2013; já o filho da dona Jane é o símbolo da tentativa de redução da maioridade penal.
Em comum o fato de que ambos são negros. E pobres. Foram condenados de modo semelhante aos antigos hereges, isto é, como inimigos da ordem imposta. Qual? Qualquer uma; donde a heresia (ou crime) é(ra) não ser branco, dado ser este, naquele período, um dos padrões estabelecidos por quem detinha o poder.
O resultado, então, era esperado: “único adolescente que não confessou assassinato de médico na Lagoa tem último recurso negado”.
O porquê das aspas é simples. Foi assim que a Globo estampou, em seu jornal, que o filho da Dona Jane estava definitivamente condenado pela morte do Médico Jaime Gold, na Lagoa. Impossível não lembrar de Meursault, pelas letras de Camus. Sabem por quê? Porque – inocente ou culpado –, o que estava em jogo, mesmo, era o fato de que Meursault não chorou no enterro de sua mãe.[1]
E o que estava em jogo para a polícia no caso de H. A. da S – é a pergunta que, naturalmente, o leitor deve estar se fazendo. Sua cor? Seu passado? Sua pobreza? A resposta é: tudo isso! E o fato? Bem, para a polícia os fatos pouco (ou nada) importavam.
Por isso, aliás, a ex-deputada federal e inspetora da Polícia Civil, Marina Maggessi, em sua rede social, afirmou “que o jovem apreendido na semana passada era um “bucha” (no jargão policial, alguém que estaria pagando por um crime que não cometeu).”
Não entrarei nos detalhes dos autos. Tudo o que foi dito linhas acima está nas redes sociais, com o devido link da fonte.
A mim intrigou-me o título da reportagem: “único adolescente que não confessou assassinato de médico na Lagoa.” Pois é. A sua mãe, Dona Jane, explicou-me porque ele não confessou. E isso foi corroborado pela sua irmã, a Taci, como costumo chamá-la. Nada disso está nos autos. O que será dito a seguir é fruto de uma conversa que Jani, Taci e eu tivemos hoje.
Pois então, o filho da Dona Jane não confessou porque é alguém que, em que pese tenha errado muito no passado, tem hombridade, como se costuma dizer. Se bem que, a rigor, não se trata exatamente de hombridade, mas de alguém que sabe que é inocente e, por isso, preferiu a prisão à assunção de um crime que ele sabe que não cometeu.
Numa palavra: ele é sujeito homem, por assim dizer.
Tal como fora Sócrates, porque, mesmo podendo fugir, preferiu morrer. Nem sua esposa, Xantipa, que trouxe seus filhos para sua despedida, foi capaz de fazê-lo mudar de ideia. Críton muito menos. Suas últimas palavras, após beber a cicuta, teriam sido “um testemunho de dupla fidelidade: a si mesmo e aos compromissos assumidos.”[2]
Quanto a H. A da S., aliás, algumas vezes me detenho, perplexo, indagando a mim mesmo de onde adveio tanta coragem; a resposta é óbvia: Jane e Taci. Quem as conhece sabe do que estou falando. Jane me ensinou (e ensina) o que meus mestres (e estou falando de pessoas com pós-doutorado!) jamais poderão me ensinar.
Neste momento correm algumas lágrimas. Afasto-me, temporariamente (ou, quem sabe, definitivamente) da advocacia.
E à pergunta se H. A. da S. voltará a praticar aqueles crimes do passado, confesso que não sei. Até a presente data, ele é considerado o adolescente com um dos melhores comportamentos do educandário. Prova disso é que entrou lá na quinta série e, hoje, está no primeiro ano do ensino médio. Fez cursos de teatro, pet shop, dança, garçom, informática, empreendedorismo, além de participar de Oficinas de Leitura.
Só que existe uma dimensão do desejo, conforme me alertou um de meus mestres, Jacinto Coutinho. E o fato de ter sido condenado por algo que se sabe inocente pode retornar de modo imprevisível.
Parafraseando o maior filósofo do Brasil, Ernildo Stein: se nós fôssemos um cachorro, ao fazermos uma experiência negativa, esta cairia. Ocorre que, no ser humano, o sofrimento imposto por rejeição, frustração, não cai. Existe um fundo que o segura. Ou seja: “no animal ele cai, desaparece, mas para nós, pela memorização, da fixação, ele cai e se acumula. Isto é o inconsciente. O retorno do reprimido só é possível porque o reprimido não cai.”[3]
Encerro, por isso, com um trecho do Mercador de Veneza, de Shakespeare:
“Se nos picais, não sangramos? Se nos envenenais, não morremos? E se vós nos ultrajais, não nos vingamos? Se somos como vós quanto ao resto, somos semelhantes a vós também nisto. Então quando um cristão é ultrajado por um judeu, onde ele deve colocar a sua humildade? Ora essa, na vingança. A perfídia que me ensinais, eu a porei em prática e ficarei na desgraça, se não superar o ensino que me deste.”[4]
Djefferson Amadeus é mestre em Direito e Hermenêutica Filosófica (UNESA-RJ), bolsista Capes, pós-graduado em filosofia (PUC-RJ), Ciências Criminais (Uerj) e Processo Penal (ABDCONST).
[1]CAMUS, Albert. O Estrangeiro. Tradução de Valerie Rumjanek. 26. ed. Rio de Janeiro: Ed. Record, 2005, p. 11.
[2] Platão. Defesa de Sócrates / Platão. Ditos e feitos memoráveis de Sócrates ; Apologia de Sócrates / Xenofonte. As nuvens / Aristófanes ; seleção de textos de José Américo Motta Pessanha ; traduções de Jaime Bruna, Libero Rangel de Andrade, Gilda Maria Reale Strazynski. — 4. ed. — São Paulo : Nova Cultural, 1987, p. 15-16.
[3] STEIN, Ernildo. Racionalidade e Existência. O Ambiente hermenêutico e as Ciências Humanas. Ijuí: Unijuí, 2008, p. 19.
[4] SHAKESPEARE, Willian. O mercador de Veneza. Trad. F. Carlos de Almeida Cunha Medeiros e Oscar Mendes. São Paulo: Martin Claret, 2006, p. 63.