Randau Marques, o que me levava às gargalhadas (1949-2020)

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Enio Squeff, jornalista, escritor, artista plástico – 

É meio rebarbativo falar sobre a civilização helênica. Não fossem os homens o que são, talvez a pudéssemos saudar pelo universo cultural “eterno” que nos legou. Uma das melhores explicações dos gregos para a morte, por exemplo, seria a viagem na barca de Caronte até o Haades, um local difícil de definir, mas que estaria entre o céu, o purgatório e o inferno cristãos – um lugar, em suma, habitado por sombras. Não sou religioso, mas me agradaria saber que os amigos que perdi ultimamente, a pianista Terão Chebl, o escritor Carlos Moraes, o maestro Martinho Lutero, entre muitos mais que minha memória teima em apagar, estariam embarcados para algum lugar. Que para todos que eu citei, teria necessariamente que ser o paraíso, como gostaria de acreditar que acontecesse com o meu querido amigo, o jornalista Randau Marques, falecido ontem, não pelo Covid-19, mas por seu imenso coração que certamente, apesar de seu gigantismo de generosidade, não aguentou as centenas de baforadas aspiradas com que ele se havia com a vida.

Randau sempre foi um fumante inveterado. Pior para nós, seus amigos, mulher, filhos e netos.




Difícil falar dos mortos queridos. Rubem Braga numa de suas crônicas maravilhosas reclamava dos tempos que estavam levando muitos de seus amigos.

Nesses dias de peste, é natural que protestemos contra as mortes: deveríamos, entretanto, naturalizá-las, não propriamente como faz capitão presidente, que teima em se mostrar indiferente, principalmente com os idosos, vítimas mais ameaçadas do que ele chama de “gripezinha” – mas de a encará-la como os desastres de uma guerra invisível.

Randau que foi o pioneiro da defesa do meio ambiente, enquanto trabalhou no antigo Jornal da Tarde, sabia o que era esse nosso mundo, esse mundo também de Bolsonaros. E não cheguei a conversar com ele sobre a fobia dos tempos bolsonaristas contra a ciência. Tenho a certeza de que se sentia pessoalmente agredido.

Randau, foi o primeiro a nomear Cubatão pelo que era, “Vale da Morte”, o que lhe angariou uma má fama que ele já tinha entre os militares da ditadura, de ser um agente subversivo a serviço do imperialismo soviético, contra a industrialização brasileira.

No entanto, contra tudo e contra todos ¬ e ponham-se aí muitos empresários que sempre se recusaram a ver a poluição como antecâmara da morte ¬ persistiu em seu labor de denúncias.

Quando a Vila Socó explodiu por causa do vazamento de um dos dutos da Petrobrás, as noventa mortes tinham sido para lá de anunciadas por Randau Marques. Assim como os agrotóxicos, a contaminação das águas, as mazelas dos rios que rodeiam São Paulo e que se transformaram em esgotos a céu aberto.

Não sei, aliás, de causas ambientais ou de defesa da ciência que não envolvesse diretamente Randau Marques. Tenho comigo que a SBPC – Sociedade Brasileira Para o Progresso da Ciência – só saiu como uma espécie de última instância da ciência brasileira, graças aos esforços do Randau. Era temido, mas acima de tudo respeitado.

Nos tempos em que trabalhamos juntos na Cetesb, Companhia de Tecnologia de Saneamento Ambiental, de São Paulo, não foram poucas as vezes em que ele me  surpreendeu discutindo com alguns dos melhores técnicos ambientais do Brasil, com pleno conhecimento de causa, não raro, com severidade, embora nunca agressivo.

Tinha muita condescendência comigo, um ignorantão desavergonhado em assuntos científicos. Era, contudo, um frasista impagável. Dizia a propósito das seguidas dragagens do rio Tietê – uma espécie de negócio eterno que explica o pouco caso que temos com nossos rios, que poderiam ser paragens maravilhosas – que os cursos d’água da paulicéia, eram um caso único na história geológica do mundo: neles nasciam pedras. Era das muitas formas com que ele ironizava os grandes negócios em cima da poluição da nossa cidade.

Nos últimos tempos, apesar dos protestos veementes e meio caretas dos amigos, compensou a bebida pelo cigarro da mesma forma – assombrosa.

Explico. De todos os amigos que tive (e conheço pouca gente que bebe tanto quanto os jornalistas), ninguém jamais superou o Randau na bebida, qualquer bebida. S

ob este aspecto, tínhamos o hábito nada saudável de rirmos quando alguém se dizia grande bebedor. Diante do estupor do interlocutor que se gabava, eu me adiantava e lhe dizia, para a sua surpresa, que ninguém que eu conhecesse chegava sequer perto do Randau.

E quando parou de beber – e isso faz muitos anos – nunca o vi sequer molhar os lábios fosse num inocente copo de cerveja. Mas foi um amigo inesquecível por um pormenor: era o único que me levava às gargalhadas, mesmo quando me ironizava, o que não era raro e que deixava os eventuais assistentes intrigados. Como é que esses dois se debocham de forma tão escancarada e são inseparáveis? Pois é.

Na foto, Enio Squeff e Randa Marques,  por Washington Luiz de Araújo

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