Por Ulisses Capozzoli, jornalista –
Fiquei sabendo por uma postagem no Face que Randau Marques atravessou o rio que confina a Terra como um mundo de ilusões, em meio à infinidade de mundos em que outras realidades podem ser possíveis.
Digo isso como hipótese, não como crença, porque, a crença, cada um tem a sua e uma não é, necessariamente, melhor que a outra. Minha hipótese está calcada na primeira lei da termodinâmica: matéria e energia (que são a mesmíssima coisa) não podem ser nem criadas nem destruídas. Só podem ser transformadas.
Se a consciência é uma forma de energia, enquanto o corpo é matéria, como de fato é, então a consciência não pode ser destruída, só pode ser transformada, como o corpo, que retorna à condição da poeira estelar de que somos feito.
Randau Marques foi uma pessoa notável, em sua bizarrice que poucos puderam compreender. Fomos, em períodos diferentes, presidentes da Associação Brasileira de Jornalismo Científico (ABJC), que ruiu há alguns anos nas mãos de gente competentíssima. Capaz de feitos como esse.
Há alguns anos alguém sugeriu um encontro, entre todos os ex-presidentes da ABJC. José Reis não compareceu. Já havia antecedido Randau na decisão de atravessar o rio. Mas Randau, mesmo na margem em que ainda estávamos, também não deu as caras. Por que? Ninguém soube explicar e essa era a essência do Randau, primeiro repórter dedicado a questões ambientais no adorável Jornal da Tarde. O novo jornalismo de Norman Mailer, Trumam Capote e outros que, mesmo sob ditadura militar, existiu por aqui.
Fundindo técnicas de jornalismo e literatura. O jornalismo por excelência onde comecei a trabalhar e convivi, entre outros, com Randau Marques e Marcos Faerman. Outro tipo de gente, outro estilo de escrita, outro comportamento que deixou de existir. Como o jornal que, um dia também fechou as portas.
Randau foi torturado, barbarizado na ditadura militar. Os militares sádicos que por uma pequena eternidade tiveram as rédeas do poder da mão como se montassem uma cavalgadura e estão de volta, com o estilo de sempre.
Na Grécia Antiga, onde nasceu a Política na acepção original e promissora de postura civilizatória, militares sempre foram subordinados a civis. Aqui, por engenho e arte da ironia histórica, frequentemente ocorre o contrário. Claro, Deus é brasileiro, e isso não deve ser esquecido.
Um ataque cardíaco, tecnicamente levou Randau Marques daqui. Mas essa é uma explicação, digamos, mecânica. Sem conteúdo emocional, intelectual, afetivo, espiritual que faz de nós uma pessoa, um humano. Não um brutamontes, uma besta fera, um torturador insano. Uma repugnância.
Randau, penso com meus botões, chegou ao seu limite e decidiu que não iria continuar. Seu coração sensível se encarregou de concluir a história que, cada um que tem algo de Randau carrega com dificuldade. Então, partiu como as estrelas que se apagam, quando o Sol sobe como moeda incandescente a cada uma das manhãs da Terra.
A última vez que nos encontramos foi num local improvável: uma casa lotérica. Eu caminhava pela avenida e decidi entrar atrás de uma dessas fortunas ocasionais que pendem na ponta da sorte. Com ela eu materializaria um pequeno conjunto de sonhos que inclui um pequeno observatório astronômico, um auditório para conversas sobre literatura, uma biblioteca pública, o que vale a pena, enquanto andamos por aqui.
A sorte passou longe de mim, não sei onde pousou, mas Randau estava ali, bem à minha frente na fila e essa foi uma surpresa para nós dois. Conversamos animadamente, relembramos alguma história e nos comprometemos a um encontro de verdade, que nenhum de nós dois cumpriu.
Ele, certamente, porque era o Randau, doce, adorável, mas ferido na alma pelos golpes da ditadura militar de que nunca se recuperou. Eu, pela ideia estúpida de que voltaríamos a nos ver, por uma razão idiota que carregamos no bolso, como um canivete sem corte.
Mais um amigo que se foi, enquanto eu continuo por aqui, com meu imprestável canivete sem corte no bolso traseiro da calça de brim…
Imagem de Jacek Yerka, pintor surrealista polonês