Woody Allen tem uma das filmografias mais curiosas do cinema norte-americano. Começou fazendo comédias rasgadas, formalmente um tanto toscas, depurou-as numa espécie de versão moderna, psicanalisada, da comédia romântica (Annie Hall, Manhattan), flertou com o drama existencial à maneira de Bergman (Interiores, Setembro), fez turismo cultural na Europa (Vicky Christina Barcelona, À meia-noite em Paris, Para Roma, com amor), mas acertou mesmo a mão, a meu ver, com seus dramas morais temperados de humor: Crimes e pecados, Maridos e esposas, Match point. Seu novo filme, Homem irracional, pertence, evidentemente, a este último filão, que ele nunca deixou de alternar com os outros.
Trata-se, aqui, da crise de meia-idade de um professor de filosofia (Joaquin Phoenix) cético e iconoclasta, que já não encontra autenticidade nas ideias e nem intensidade nas emoções. Seu charme consiste na postura um tanto blasé de quem experimentou de tudo na vida (amores, drogas, guerras, filosofias) e não se entusiasma mais por coisa alguma. Entrega-se ao álcool e cultiva uma barriguinha. Claro que uma aluna brilhante e imaginativa (Emma Stone) vai se apaixonar por ele.
A sagacidade de Allen (e de Phoenix) está em situar o protagonista na linha tênue entre o autêntico e o fake, entre a genuína busca intelectual e a mistificação. É esse personagem ambíguo e oscilante, acossado pelo desânimo e pela impotência sexual, que terá de enfrentar um dos dilemas morais mais antigos da humanidade, aquele que gira em torno do assassinato e de suas possíveis justificativas.
Crime e castigo
Matar alguém, em suma, pode ser justificável em certas circunstâncias? Ou o bíblico “Não matarás” segue sendo o norte essencial da conduta humana? Com extremo engenho narrativo, o diretor conduz o espectador a se posicionar ora de um lado, ora de outro da questão, pondo em choque eventualmente o intelecto e a emoção de cada um.
A referência recorrente a Crime e castigo não é casual e muito menos afetada. Sempre que se quer, modernamente, discutir a moralidade do homicídio, o fantasma de Raskolnikov volta a rondar.
O projeto estético de Woody Allen, nessa sua vertente, parece ser a ambição, obviamente inalcançável, de conciliar a densidade de Dostoiévski com a leveza (enganosa, claro) de Tchekov. São parábolas sem corolário ou sentença, tragédias sem páthos, em que a catarse foi substituída pela derrisão ou pela ironia.
Mise-en-scène simplificada
Mais escritor do que propriamente um criador de imagens (como foram, por exemplo, Murnau, Hitchcock, Kubrick), Allen parece ter simplificado ao máximo sua mise-en-scène de modo a alcançar uma clareza quase transparente de exposição. Esse processo de depuração é facilitado aqui pela ambientação da história num campus universitário protegido da dispersão (e da feiura) do mundo urbano contemporâneo.
Tudo é muito simples e objetivo no modo de filmar, o que não significa desleixo ou falta de inspiração. Pelo contrário: uma cena crucial, junto ao poço vazio de um elevador, mostra a habilidade do cineasta em construir – no ritmo, nos diálogos, na direção de atores – um momento ao mesmo tempo trágico e cômico. Dostoiévski e Tchekov enfim reunidos, ainda que na morte.