Mais um capítulo da coluna “A César o que é de Cícero”, do doutor em Literatura Cícero César Sotero Batista. Nesta edição, o problema de consciência, sobre um fato acontecido na infância, de um cidadão que escreve suas memórias.
Tivesse lido e se inspirado em Manoel de Barros, talvez superasse o problema que você lerá abaixo: “Sou hoje um caçador de achadouros da infância. Vou meio dementado e enxada às costas cavar no meu quintal vestígios dos meninos que fomos.”
Vamos ao texto:
“Com a vida nos trilhos, era chegada a hora do livro de memórias do Dr. Cappelli. Mais do que na hora, aliás, para os amigos bajuladores, que já imaginavam um livro de capa dura, ideal para transmitir solidez, respeito às leis, bom gosto e sobriedade, tudo conforme manda o figurino do doutor, que ao longo da vida tem se dedicado à causa da justiça.
Oduovaldo Cappelli jamais teve problemas com as palavras. De um bilhete a uma petição, tudo lhe saía cristalinamente da mente para os dedos ágeis de sua secretária. Com o advento dessas máquinas modernas, praticamente não havia necessidade de secretária: ele poderia fazer todo o serviço sozinho, se assim o quisesse. Se não o faz é porque ele é deveras afeiçoado às tradições de seu ofício: o de ditar. Ditar, para ele, é como transcrever uma emoção. Quem chamá-lo-ia de antiquado?
Entretanto, não lhe foi fácil ditar esta passagem: havia um tipo de dificuldade da qual ele parecia não saber se desvencilhar, que lhe interrompia a fluidez do pensamento. Por mais que ele evitasse, vinha à tona um episódio de sua infância no qual um colega seu se machucou. Ainda que sem gravidade, é certo, uma vez que uma fratura no metatarso leva pouco tempo para calcificar quando se é criança.
Incomodava ao Cappelli o fato de não ter ajudado corretamente o colega. “Mas esta hesitação na hora de prestar socorro não era como a ponta de um iceberg?”, refletia o nosso doutor enquanto pedia para que a secretaria interrompesse a digitação. Ele teria que jurar dizer a verdade, somente a verdade, como se estivesse em um tribunal com sua consciência? Sim, claro. Teria que dizer que dois colegas e ele cabularam uma aula, embarcaram em um coletivo sem pagar pela passagem e se mandaram para uma floresta urbana onde havia um curso de alpinismo sem o consentimento, sequer o conhecimento dos pais?
Ele deveria dizer que, burlando as leis proibitivas expressas pelas placas indicativas, os três se aproveitaram da distração do guarda do local e subiram por uma trilha que os levou, por intermédio do sistema de escoamento de água, bem próximo ao pé do morro, onde de fato se deu o ocorrido?
No fundo, pelo andar da carruagem, ele chegaria a roçar o ditado segundo o qual o menino é o pai do homem. O que ele não queria.
A cena foi se repetindo em flashback na cabeça do doutor: foi durante a descida de uma pedra que o colega escorregou. Por um momento, ele pareceu deslizar em um tobogã, causando inclusive risos nos dois jovens que testemunharam a sua queda. Foi só no fim do tombo, quando o pé enganchou em um vão, que perceberam que o colega não tinha machucado apenas a cabeça, mas também o dedinho do pé. Por isso ele não conseguia colocar o pé no chão sem expressar no rosto uma espécie de dor incomensurável.
Foi feito o possível para socorrê-lo. Cada um emprestou o ombro amigo para aliviar a descida do colega ferido. Levaram um bom tempo nesta caminhada até chegar a uma praça onde ficava o ponto final de ônibus. Cappelli ficou em silêncio. Foi o colega que implorou ao motorista de ônibus que desse carona ao menino ferido. O motorista, compadecido, assim o fez. Cappelli e o colega retornaram a pé sem trocar uma palavra e mal se despediram.
Depois do ocorrido, os três colegas que só viviam juntos começaram a se desenganchar. Cappelli não escreveu sua assinatura que já ia se tornando caprichada na perna engessada do Edgard. Este não deve ter contado as minúcias do episódio para a mãe, que também não procurou saber mais de nada sobre o que houve para não se aborrecer com o filho, que vinha lhe dando trabalho com notas e com comportamento – segundo a professora, fruto de más companhias.
Cappelli também não procurou mais pelo PC, o outro menino que estava com ele no incidente. PC, logo se fez público, era adepto da cleptomania. Cappelli sempre o soube, mas também não quis se envolver, escolhendo o caminho correto do afastamento, seguido no espírito os passos e os pensamentos de seu pai.
Enfim, daquele infeliz e fortuito incidente em diante, se PC tocasse a campainha, o mordomo do interfone diria com voz firme que Cappelli estava concentrado em seus estudos, não podendo ser incomodado naquele momento. PC percebeu que dificilmente conseguiria adentrar aquela fortaleza para roubar os pneus da Caloi Cross do Cappelli. Sem ajuda não dava.
Vieram as provas, os pelos e as espinhas, as revistas de sacanagem. Edgard quase reprovou: passou boa parte da adolescência cuidando da mãe, que tinha adoecido. Só depois da morte dela é que ele fez a mudança de sexo, a tal transição. Agora, para todos os efeitos, chamava-se Edna e, aos risos, dizia para quem quisesse ouvir que ela era agora de cair na gandaia.
PC, tendo sido convidado a sair da escola por baixo desempenho, sumiu por um tempo, a ponto de ser quase esquecido. Foi esquisito quando certa vez ele surgiu do nada, de cabelos compridos, com uma bicicleta muito estranha, que parecia ter sido montada a partir de peças de outras bicicletas. Os garotos acharam que ele estava com cara e jeito de maconheiro.
Enquanto isso, na residência dos Cappelli era como se os muros da casa tivessem ficado cada vez mais intransponíveis. Não valia a pena mais cumprir o desafio de pulá-los em brincadeira de gatunos. Cappelli, em virtude da tradição familiar em torno do nome de sua família, foi iniciado na arte de municiar armas desde menino e atirava com a segurança de um profissional.
Houve uma história confusa de um tiro dado no escuro, por não sei quem na rua dos Cappelli. Alguns disseram que o tiro veio do morro; outros à boca pequena disseram que o tiro foi dado de muito mais perto. Ainda bem que a pessoa se feriu sem gravidade.
Um tempo depois, a família de Cappelli resolveu se desfazer daquela propriedade antes que ela se desvalorizasse por completo: o local já não era como antigamente. O crescimento desordenado da cidade, aquela horrível favelização, retirava da localidade os ares bucólicos de quem vive rodeado pela natureza e por empregados.
Cappelli estava prestes a ser empossado quando recebeu a notícia da morte do PC por intermédio de uma ligação de Edgard – que ainda não era para todos os efeitos Edna. A conversa não foi longa, apesar de amistosa. Cappelli ignorou os apelos de Edgar/Edna para ir ao enterro: apenas disse que lamentava profundamente a perda do amigo de infância com um frase em latim. Quando acabou a ligação, deu um suspiro curto e se voltou para as futuras atribuições de seu cargo.
Tudo isso ia e vinha na cabeça de Cappelli, o impedindo de escrever os pormenores de suas memórias. Pode parecer exagero da parte dele, pois, lendo assim, a não havia nada de tão incômodo em sua narrativa. Havia alguns pontos soltos, mas não é assim a vida?
Por isso, Cappelli, depois de algumas ponderações, abriu seu livro de memórias assim:
“Tive uma infância feliz e sem sobressaltos, com meu pai e minha mãe como confidentes. Desde pequeno pesava-me sobre o espírito a incumbência de seguir os passos de meu pai e de corresponder às expectativas que minha família nutria sobre meu futuro. Foi com esse intuito que me vi obrigado a recusar as inúmeras experiências próprias da infância para me tornar desde cedo um homem comprometido com a justiça deste nosso país.”
O livro foi um sucesso entre os amigos, que elogiaram o bom gosto da capa de couro. A secretária em segredo se emocionou com o elogio que recebeu no autógrafo de seu exemplar. Ele finalmente a reconhecia, suspirou. Edna, recém-operada, não pode ir ao evento, e recebeu o seu exemplar, sem custo adicional, pelos Correios. Nada foi dito de PC a fim de que não se evocasse a memória dos mortos.”
*Cappelli – família de classe média alta, personagem da coluna
Sobre o autor
Radicado em Nilópolis, município do Rio de Janeiro, Cícero César Sotero Batista é doutor, mestre e especialista na área da literatura. É casado com Layla Warrak, com quem tem dois filhos, o Francisco e a Cecília, a quem se dedica em tempo integral e um pouco mais, se algum dos dois cair da/e cama.
Ou seja, Cícero César é professor, escritor e pai de dois, não exatamente nessa ordem. É autor do petisco Cartas para Francisco: uma cartografia dos afetos (Kazuá, 2019) e está preparando um livro sobre as letras e as crônicas que Aldir Blanc produziu na década de 1970.