Ratos e urubus, larguem nossas fantasia

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Por Fernando Brito, publicado em O tijolaço – 

reveillon

Não há nada mais importante para destruir um povo do que lhe  tirar aquilo que o define: sua identidade , a capacidade de sonhar coletivamente e fazer juntos.

E esta identidade, desde os primórdios da civilização, encontra – próprias ou “importadas e adaptadas” –  as festas como expressão deste sentir coletivo.




Tão intenso que Leonardo Boff, ao defini-las, disse que são “o tempo forte da vida, onde os homens dizem sim a todas as coisas”.

Os mecanismos de dominação, com todo o seu poder, se apropriam das representações simbólicas desta identidade, esvaziam seu significado, empresariam-nas, comercializam-nas e as tentam moldar aquilo que é da própria natureza da dominação: a exploração econômica.

E, no entanto, aquele sentido permanece.

Talvez seja a coisa mais importante a se aprender em política, em economia, na vida.

Que os ratos e urubus, como delirou genialmente o Joãosinho Trinta, querem sempre rasgar as nossas fantasias coletivas.

Os nossos sonhos e desejos.

Vivemos – ou viveram vocês, porque minha vocação de eremita vem de longe – nestes últimos dias, um destes momentos, o Ano Novo.

Aliás, até o “Réveillon” é outra destas magníficas provas de que o povão recebe, digere e sintetiza, porque não é palavra de uso corrente nem no francês, onde designava uma ceia tardia, própria do Natal. No meu tempo de guri, só os metidos a besta usavam a palavra e eu, na tolice própria dos pretensiosos, custei a ver este macunaímico processo de fagia de sentido.

Sobre isso, recebo e partilho duas reflexões.

A de meu velho mestre Nílson Lage e a do meu ex-calouro (que hoje tem mais cabelos brancos e mais talento do que eu) Fernando Mollica, colunista de O Dia.

É minha maneira, furtada, de desejar a todos que possamos, apesar dos que nos acenam com o inferno e a danação do desastre nacional, um feliz 2015.

 

A festa resiste

 Nílson Lage

O importante, no carnaval e no reveillon de Copacabana, é que são invenções e realizações magníficas do nosso povo que, a princípio, tentaram excluir e sabotar e, agora, fingem promover.
Lembro-me bem das medidas “profiláticas” tomadas para impedir que as praias fossem “emporcalhadas” pelos despachos a Iemanjá e os moradores das vizinhanças “perturbados” pela gritaria dos festeiros; das ameaças de repressão policial e das pressões da Arquidiocese sobre a redação do Jornal do Brasil.
Ainda no final da década de 1970, a Rede Globo, empenhada em eliminar da programação resíduos do que os militares consideravam inoportuno ou grotesco, reduziu ao máximo a cobertura dos desfiles de escolas de samba, com o slogan “A programação normal e o melhor do carnaval”.
Foi quando Fernando Pamplona, superintendente da Fundação TV Educativa do Rio de Janeiro, com meu modesto apoio (era gerente de jornalismo), mobilizou os recursos modestíssimos da emissora e pôs no ar a transmissão completa dos desfiles.
Eu estava no controle mestre e recebia, sem parar, telefonemas de todos os estados e do exterior pedindo que abrisse o sinal para inclusão na rede.
Foi aí que a Globo decidiu negociar com os bicheiros das escolas de samba, pagou uma nota, segurou a exclusividade e até hoje reduz a cobertura o quanto pode, com chamadinhas ridículas das músicas, a indefectível novela cobrindo o início do desfile, a narração desinformada e palpiteira, tudo enfeitado com as curvas da Globeleza, invenção romântica do Hans Donner.
Mas a festa resiste. Aos palanques, aos bicheiros, aos carolas, aos Marinho, às vedetes. Foi nela que primeiro se ouviu falar de Chica da Silva, que Delmiro Gouveia foi, enfim, lembrado, que o Cristo Trabalhador coberto em um manto negro mostrou que a fé do povo vai muito além dos ditames seculares da hierarquia da Igreja.
É o DNA, a origem, o que diferencia o carnaval e o reveillon do Rio de quantos o copiaram.

A nossa bela insanidade

Fernando Mollica

O Réveillon de Copacabana é, de longe, campeão em matéria de insanidade carioca que dá certo. A festa tinha tudo para dar errado numa cidade imensa, marcada pela beleza mas também pela violência e exclusão. É inacreditável que o evento se repita há décadas sem que jamais tenha sido registrado um tumulto de grandes proporções — até os de pequena monta são raros. Nem na época em que o Rio era associado a frequentes tiroteios, a passagem de ano na Avenida Atlântica deixou de ser pacífica.

E olha que somos bons em desafiar a lógica. A apresentação das escolas de samba é outro exemplo da nossa capacidade de driblar o impossível. Comecei a frequentar a Sapucaí dois anos antes da construção do Sambódromo, e até hoje não entendo como pode funcionar um espetáculo com 50 mil artistas, quase todos amadores e que se apresentam sem ter participado de um ensaio geral digno desse nome. Conduzir os imensos carros alegóricos pelas ruas e obrigá-los a fazer uma curva de noventa graus para entrar na pista de desfile são atividades que desafiam as leis da física.

Mas nada se compara ao nosso Réveillon, festa que acabou copiada por muitas cidades brasileiras. Aposto que nem no pra lá de organizado e seguro Japão as autoridades teriam coragem de estimular uma confraternização que reunisse tanta gente, a maioria com elevadas doses de álcool no organismo. Estima-se em dois milhões o número de pessoas presentes na praia — um terço da população carioca. A maior parte do público mora longe de Copacabana, passa sufoco para entrar e, principalmente, sair do bairro, enfrenta filas para ir ao banheiro, gasta uma grana para comer e beber por lá. Tudo isso para acompanhar um espetáculo que dura 16 minutos — as atrações musicais são apenas coadjuvantes e não justificariam o deslocamento de tanta gente.

Nem mesmo a beleza dos fogos explica tamanho sucesso de público, o mesmo espetáculo seria incapaz de reunir tantas pessoas se realizado em outra época do ano. A esperança é que justifica a aglomeração e seu caráter pacífico, ninguém ali parece preocupado em atrapalhar os sonhos e os desejos dos outros. Na passagem do dia 31 para o dia 1º saudamos a vida, comemoramos tudo que correu bem e nos damos outra chance de resolver o que ainda está complicado. Tudo isso merece os fogos e a barulheira. O Réveillon de Copa e o desfile das escolas renovam também a nossa fé no país. Não pode dar errado uma sociedade que reúne pessoas capazes de promover as melhores e loucas festas do mundo.

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