E a coluna “A César o que é de Cícero”, do doutor em Literatura Cícero César Sotero Batista, nos leva ao cinema, aos bons tempos do cinema de rua, cinema de rua que hoje virou igreja evangélica ou supermercado, mas que é um filme que está dentro da gente. Infelizmente, o cinema de rua não teve final feliz. Aliás, não era nem para ter final.
Mas há cinema de rua de resistência. Minha companheira Carmen Addário (Carmola) trabalha para o talvez maior cinema de rua de São Paulo e, quem sabe, do Brasil; Belas Artes, um remanescente de uma época em que cinema de rua era coisa de paraíso, de “Cinema Paradiso”.
Tudo isso para o Cícero César viajar nas telas do novo filme de Kleber Mendonça Filho (“Bacurau”, “Aquarius” e “Som ao Redor”), “Retratos Fantasmas”. Pegue a pipoca (Washington Araújo).
“(Para Kleber Mendonça Filho)
Em vez de escrever um texto de opinião, decidi escrever um texto como se fosse uma colagem de lembranças sobre os cinemas que freqüentei. Um texto que fosse como um pequeno caleidoscópio das emoções que o cinema é capaz de suscitar. É que o filme “Retratos Fantasmas”, de Kleber Mendonça Filho, nos faz falar de cinema, da cidade, e da vida. Aliás, gosto de falar assim: “Vou à cidade”, querendo dizer que vou ao centro da cidade.
Vamos aos cantos:
1) O semiólogo francês R. Barthes admirava o centro da cidade das cidades. Apenas o centro era alvo de sua indagação, de seu interesse. Entendo: o centro é o que sustenta ou sustentava o todo. Só que Barthes faleceu em 1980. O que ele sentiria ao ver sua Paris transformada pelo progresso depois de quarenta anos? Mais um terrível palimpsesto? Onde ele encontraria seus amores fugazes de inferninho senão na poeira dos cines? E haveria sinais de cines neste mundo descentrado de deus? A saber.
2) Eu gosto da marra de KMF, do orgulho que ele tem de ser de Recife. Na minha infância, eu via na tevê em Maceió o seguinte anúncio: “Se em Recife tem, na casa Fulana de Tal também tem.”
3) O filme de KMF é em grande parte sobre os cinemas de rua de Recife. Trata-se de um exercício de memória de quem freqüenta e de quem fez do freqüentar seu ganha-pão, portanto. Mas não é um filme só para entendidos.
4) A importância de duas personagens do filme: da mãe de KMF; do projetista Alexandre. Chorei com os dois. Especulei. Talvez a protagonista de “Aquarius” tenha muito da mãe de KMF, mulher forte que morreu aos 54 anos. Já Alexandre é a cara do Brasil quando o Brasil é um país profundo.
5) Nico, o cão de uma casa vizinha, elemento central de uma trama de “Som ao Redor” também é uma personagem. Nico foi abandonado à própria sorte, fica-se sabendo no decorrer do filme. “à mercê da sorte, a exemplo dos cinemas”, resmungo para mim mesmo. Não adianta dizer que não.
6) Resumo da ópera: as coisas deixam de fazer sentido. São deixadas para trás. Dão cupim. O que fazer?
7) Que história aquela do cinema que seria um braço de propaganda nazista no Brasil. Aliás, que arquitetura bonita a daquele cinema.
8) A casa que se transforma. A casa ao lado da de KMF se transforma em Bunker. São as metamorfoses geradas pela força da grana, que ergue e destrói coisas belas. O cinema dá lugar a lojas de eletrodomésticos, a templos da Universal. Tudo muito triste. Quem não conheceu tal realidade nos grandes centros urbanos? Eu a conheci na grande Tijuca, lugar de muitos cinemas. Deixei os beijos, as balas Boneco, os amassos, as mãos dadas, a p* toda, em uma daquelas poltronas vermelhas. Oremos.
9) Em um cinema de subúrbio, o Cine Baronesa, vi “Marcelino, Pão e Vinho” com a minha mãe. Um cinema enorme que virou igreja em um bairro que oferece tão pouco de cultura a seus habitantes. Uma lástima.
10) Um cinema fica de pé. É abraçado. Fica feito Highlander. Os Estações, os Odeons, falando daqui no Rio de Janeiro, tropicam, ficam de pé. Aí é preciso dizer: um Cine Baronesa jamais faria parte da lista dos cinemas a preservar, apesar de lindo que é. Ele não faz parte dos planos de revitalização do bairro. Ele não brotou na Zona Sul.
11) O tempo do cinema de casa cheia ficou irremediavelmente para trás. Não volta. The end.
12) KMF fez um filme de tese: o Estado precisa implementar uma política pública para fortalecer as salas de cinema de rua.
13) Meu irmão aplaudiu de pé o filme “Buena Vista Social Club” no Cine Odeon. Ele parecia até o bonequinho do Globo. Meu irmão é o freqüentador ideal de cinema. A ele deveria ser erguida uma estátua, a do freqüentador desconhecido.
14) O filme tende para o melancólico. É muita coisa que não volta mais que se acaba um tanto triste na hora do remate dos males. A cena do Uber, talvez para compensar, devolve a graça do filme e da vida. A piada visual do motorista que aparece/desaparece nos faz rir. Entretanto, enquanto sorrio amarelo, dou uma de aluno de semiologia de Barthes e reparo a enorme quantidade de entradas de farmácias, todas muito parecidas em sua arquitetura. É onde estão os letreiros, para onde foram os letreiros. Eles anunciam a nossa nova doença. Acabo por pensar que a noite de Boa Viagem e da Barra da Tijuca, ambas tocadas pelo progresso, estão muito parecidas.
15) Tem jovem que nunca foi ao centro da cidade. É uma pena, porque um passeio de VLT equivale a um curta de cinema mudo. Se enxugar, cabe em um reels.