O alimento é elemento indispensável à sobrevivência humana e o acesso à alimentação é um direito constitucional fundamental, portanto, um dever do Estado nacional consagrado na Constituição de 1988. No governo Jair Bolsonaro (PL), esse direito fundamental e humano foi desregulamentado. A forma que o ex-presidente da República encontrou para retirar do Estado a obrigação de garantir a soberania alimentar do País foi extinguindo, no dia 1º de janeiro de 2019, o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea) por meio da Medida Provisória 870/2019.
Por Carla Lisboa, compartilhado do Jornal Brasil Popular/DF
O resultado disso foi que no fim do seu governo, o Brasil estava de volta ao Mapa da Fome da Organização das Nações Unidas (ONU) com mais de 33 milhões de pessoas em situação de insegurança alimentar grave, ou seja, passando fome literalmente, e mais 126 milhões vivendo com algum nível de insegurança alimentar.
A advogada Clarissa de Souza Guerra, em sua dissertação de mestrado intitulada “Soberania Alimentar no Brasil: limites econômicos (geo)políticos e jurídicos nos marcos do capitalismo periférico”, explica que “o capitalismo, que é o sistema econômico, político e social dominante, transformou tal relação em um vínculo exploratório (trata-se da falha metabólica), movido pela busca incessante do lucro. Sob essa perspectiva, o alimento teve seu sentido original deturpado, tornando-se mercadoria”.
Ela informa que, nesse contexto capitalista em que o alimento é transformado em mercadoria, o conceito de Soberania Alimentar, formalizado, em 1996, pela Via Campesina Internacional, “pode ser entendido como um conceito multidimensional e, enquanto um direito, que se caracteriza, substancialmente, como proposta contra-hegemônica, questionando o sistema do ‘alimento-mercadoria’, é uma resposta dos movimentos sociais do campo às imposições do capitalismo, pautada, especialmente, na consideração da fome como uma questão social”.
Entre 2016 e 2022, o Brasil vivenciou uma trajetória econômica ultraneoliberal que não só buscou mercantilizar tudo que significava soberania nacional, mas também ignorou todo e qualquer artigo da Constituição, incluindo aí esse que diz que é dever do Estado assegurar comida aos brasileiros. O governo Bolsonaro mostrou ao mundo que o direito constitucional à alimentação era fácil de ignorar. Mas, para materializar o seu desdém pela vida, claramente ilustrado na não gestão da pandemia da covid-19, e para humilhar a nação inteira, decidiu eliminar o Consea.
A MP 870 que extinguiu o conselho também desconfigurou a Losan – lei de 2006 que instituiu o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Sisan). Bolsonaro ignorou as mobilizações da sociedade civil brasileira e internacional e as mais de 30 mil assinaturas a uma petição internacional contra o fim do Consea. Manteve a MP e desarticulou todos os programas voltados à erradicação da fome e ampliação da produção e acesso da população aos alimentos saudáveis.
O Consea foi criado no governo do Itamar Franco e extinto no primeiro mandato do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB). Em 2003, o conselho retornou, no primeiro mandato do presidente Lula. Sua atuação foi fundamental para colaborar com os governos petistas na garantia da segurança alimentar e nutricional a todo e qualquer brasileiro. O resultado é que, em 13 anos dos governos Lula e Dilma Rousseff (PT), o Brasil saiu do Mapa da Fome. Agora, no Governo Lula 3, uma das primeiras ações do presidente Lula foi a recriação do conselho e de todas as políticas públicas capazes de assegurar a soberania alimentar aos brasileiros destruídas no governo anterior. Juntamente com o conselho, o brasileiro já pode comemorar a recriação do Bolsa Família, do Minha Casa, Minha Vida, e de várias outras políticas de reconstrução da soberania do Brasil não só no campo da alimentação e da moradia, mas também em todos os setores da economia, dos direitos sociais e da vida.
Nesta entrevista exclusiva ao Jornal Brasil Popular, Elisabetta Recine, recém-nomeada presidenta do Consea, fala de como o conselho é importante para o povo e o País e para garantir segurança alimentar. Nutricionista, ela é especialista em segurança alimentar e nutricional e professora da Faculdade de Ciências da Saúde (FS) da Universidade de Brasília (UnB), pesquisadora e integrante do Grupo Temático de Alimentação e Nutrição em Saúde Coletiva, da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco).
ENTREVISTA | ELISABETTA RECINE
Qual o significado e a importância da volta do Consea para o Brasil?
Elisabetta Recine – O Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea) é um espaço institucional, formal, do Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, responsável pela interlocução entre diferentes setores do governo com diferentes sujeitos e coletivos da sociedade civil organizada brasileira. Esse espaço proporciona que essas diferentes vivências, realidades, práticas, propostas e desafios da sociedade civil cheguem diretamente ao governo, no caso do Conselho Nacional, ao governo federal, para que ele possa planejar e implementar suas políticas públicas muito mais sincronizado com a realidade e com as necessidades dos diferentes setores da sociedade. Tem um potencial de qualificar a política pública e fazer com que ela seja muito mais efetiva nos resultados que ela precisa alcançar.
Quantas pessoas caíram na insegurança alimentar e também na fome literalmente após Jair Bolsonaro extinguir o Consea?
Elisabetta Recine– Os dados mais atuais que dispomos são de um inquérito nacional da Rede Brasileira de Pesquisa e Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional. Na ausência de pesquisas do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), desde 2018, a Rede Brasileira de Pesquisa realizou um levantamento nos anos 2020-2021 e, depois, 2021-2022. Os últimos resultados mostram que o Brasil tem, atualmente, um pouco mais de 33 milhões de pessoas em situação de insegurança alimentar grave. São pessoas que estão passando fome. Não bastasse esse número altíssimo e gravíssimo, temos mais da metade da população brasileira, cerca de 126 milhões de pessoas com algum grau de insegurança alimentar: são famílias que, cotidianamente, precisam de estratégias distintas para garantir algum tipo de alimentação, quer seja diminuindo a quantidade, reduzindo alguma refeição, sabendo que o recurso que ela tem não vai dar para garantir a alimentação para o mês. As famílias que estão em pior situação são as que têm como pessoa de referência uma mulher. Se essa mulher for negra, o risco de insegurança alimentar grave é ainda maior. E, as famílias com crianças menores de 10 anos também estão em piores condições. Isso, confirma a intersecção entre diferentes expressões da desigualdade, como gênero, raça, renda e, ainda, a questão geracional. Em termos relativos, a fome é maior no ambiente rural e, em termos absolutos, é em ambiente urbano porque o Brasil é um país urbano, mas é uma situação muito grave para o conjunto de nossa sociedade. O Norte e o Nordeste, também em termos relativos, concentram o maior número de famílias em insegurança alimentar grave.
No seu discurso, no dia da posse, a senhora diz que é muito justo e legítimo a realização da cerimônia de recriação do Consea e do próprio conselho. Explica para nós por que é justo e legítimo e como a população pode se apropriar desse projeto para que nenhum governo volte a aniquilá-lo como o fez Bolsonaro?
Elisabetta Recine – Anunciei que é justo e legítimo a volta do Consea justamente por causa da gravidade da situação que estamos vivendo: pelo número de pessoas em situação de fome ou insegurança alimentar leve e moderada; pela inflação, em geral, e pela inflação de alimentos, em particular, porque ela é sempre maior do que a inflação geral; pelos enormes desafios que a nossa população tem para acessar alimentos adequados e saudáveis; pelo uso indiscriminado e danoso de agrotóxicos; pelo papel que a produção agroindustrial tem na emissão de gases de efeito estufa e pelas consequências que a gente sofre, tanto individual quanto coletivamente, tanto pela fome como também pelo consumo de alimentos não saudáveis. Convivemos com situações aparentemente paradoxais que é o aumento na prevalência de obesidade e estes níveis alarmantes de insegurança alimentar. Apesar de não parecer estes dois problemas se relacionam. O Consea se configura como um espaço em que todos esses desafios podem ser abordados de uma maneira muito real, muito objetiva, a partir de quem sofre o problema e tem propostas de como solucioná-lo. É legítima e necessária a volta do Consea para que ele contribua com a retomada de políticas públicas que tenham como objetivo a realização do direito a alimentação adequada para que todas as pessoas estejam livres da fome com acesso a uma alimentação saudável.
Estamos no mês do Dia Internacional da Mulher. Qual a importância do Consea para as mulheres e para as políticas de inclusão social?
Elisabetta Recine– O Consea tem, no conjunto de representantes, conselheiras nacionais que são, por exemplo, representantes do movimento de mulheres camponesas, extrativistas, indígenas, negras, urbanas, e elas trazem olhares diferenciados para todos os desafios. Temos desafios gerais, mas eles se expressam de maneira diferenciada nos distintos grupos e, certamente, de forma diferenciada entre as mulheres. Como mencionei antes, os dados da insegurança alimentar grave (a fome) mostram que as famílias que têm como referência mulheres e, em especial, mulheres negras, com baixa escolaridade, tem maior risco. Isso revela que precisamos de estratégias específicas e prioritárias para esse grupo. As mulheres estão presentes e, em muitas situações, de maneira prevalente, nos variados contextos que envolvem o alimento e a alimentação, seja na produção de alimentos, no cuidado alimentar das famílias, entre outros. Somos importantes, mas, ao mesmo tempo, invisibilizadas. Isso acontece na mulher rural, na urbana, entre as mulheres indígenas, extrativistas. Assim, a representação das mulheres no Consea é uma representação diversa e necessária para que tenhamos políticas públicas ajustadas às especificidades das desigualdades de gênero.
Qual a relação do Consea com a soberania nacional e a felicidade da população?
Elisabetta Recine– Todo país que pretende ser livre e soberano precisa, necessariamente, ter capacidade de produzir alimentos para a sua população e que eles sejam saudáveis e sustentáveis. Essa é uma questão estratégica. É só a gente olhar, por exemplo, os momentos em que tivemos crises globais em que os preços dos alimentos disparam. Se o país não tem capacidade de produzir alimentos suficientes para alimentar sua população, ele fica completamente à mercê do que acontece nos mercados internacionais. Em crises dessa natureza, o número de pessoas em situação de fome aumenta rapidamente porque muitos países dependem de importação e, a partir do momento em que os preços dos alimentos aumentam, esses países ficam reféns dessa situação e, muitas vezes, não conseguem importar a quantidade necessária. E, quando conseguem importar, o preço interno dispara. Por isso, é fundamental que o Brasil tenha não só capacidade de produção suficiente de alimentos para a nossa população, e que esses alimentos sejam adequados e saudáveis, mas que a gente tenha uma política de abastecimento, que entre outros aspectos restabelecá os estoques reguladores para que, em situações de crises mundiais ou de quebra de safra, dentre outros problemas, o País possa utilizar esses estoques reguladores para regular o preço e, com isso, proteger a capacidade da população a ter acesso aos alimentos.
Quantos brasileiros são beneficiados pelo Consea e quais classes sociais?
Elisabetta Recine– Essa é uma pergunta difícil de responder porque o Consea não atua diretamente em contato com indivíduos e sim em políticas públicas que atendam a população, em especial, os grupos em situação de maior vulnerabilidade. Mas, se você pensar que o Consea atua nas políticas públicas, como a valorização e a proteção do Programa Nacional da Alimentação Escolar, na atualização do per capita do PNAE, defende a retomada de compras públicas da agricultura familiar, o controle de agrotóxicos, o Guia Alimentar da População Brasileira que tem diretrizes para proteger e promover a saúde, o Programa 1 Milhão de Cisternas, que garante água à região semiárida brasileira, enfim, são políticas que estão entre muitas outras, você verá que o Consea têm o potencial de incidir na sociedade brasileira como um todo. O que define o Conselho é ele ser um espaço de interlocução para promover, proteger, propor políticas públicas que tenham alcance amplo na nossa sociedade.
Nesta última pergunta, que não é uma pergunta, mas sim um espaço para que a senhora fique à vontade para nos falar sobre a importância do seu nome para presidir o conselho e para acrescentar alguma mensagem para nossos leitores.
Elisabetta Recine– Assim como eu, todos os conselheiros e as conselheiras da sociedade civil que estavam no Consea no momento de sua extinção, no dia 1º de janeiro de 2019, foram reconduzidos. Isso tem um significado muito importante de recompor e restaurar uma situação de extinção completamente arbitrária e que contribuiu para que o Brasil chegasse a um momento dão desafiador como o que nós vivemos hoje. O trabalho que estava sendo realizado foi interrompido institucionalmente, mas a sociedade civil, ao longo desses 4 anos, manteve diferentes processos de mobilização. Um coletivo de organizações e movimentos da sociedade civil convocou, em meados de 2019, uma Conferência Popular por Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional que atuou em todo esse período. E a composição da Conferência Popular contou com a participação de organizações que estavam no Consea no momento da extinção e também com outras organizações que, em algum momento, passaram pelo conselho ou atuam nesta agenda. Assim como a Conferência Popular muitas outras iniciativas se mantiveram ativas apesar dos desafios. Assim a reinstalação com a composição de 2018 tem um significado e um simbolismo importantes no sentido de que a sociedade civil retorna para atuar na melhoria das políticas públicas que, atualmente, são prioridades.