Rede de proteção a invasores de terra indígena tem bagre e peixe grande da política

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Colaboradores de Bruno Pereira denunciam ligação entre a atividade ilegal na região e o poder público local

Por Sergio Ramalho, compartilhado de Projeto Colabora




Na foto: Posto abandonado da Força Nacional de Segurança na fronteira do Brasil com o Perú e a Colômbia. Foto Pedro Prado/Abraji

Na manhã de oito de maio de 2022, o indigenista Bruno Pereira telefonou para um antigo aliado em Atalaia do Norte (AM). Ele tinha uma lista de nomes e apelidos de suspeitos de integrar a rede política de proteção ao grupo envolvido na caça e na pesca predatórias na Terra Indígena (TI) do Vale do Javari. Ex-coordenador da Funai na região, Bruno investigava os elos de invasores da TI dentro da prefeitura da cidade, como revelou em 28 de junho de 2022, a reportagem do Programa Tim Lopes, da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji).

Do outro lado da linha, o aliado de Bruno identificou os supostos elos entre a atividade ilegal e o poder público municipal. Foi a última vez em que eles conversaram. Entre os suspeitos indicados na lista do indigenista figuram os servidores Jânio Souza e Laurimar Alves, conhecido como Caboclo. Ambos foram nomeados para cargos de confiança pelo prefeito Denis Paiva (UB). Caboclo é casado com uma das irmãs de Amarildo da Costa Oliveira, o Pelado, preso por suspeita de ter participado das execuções de Bruno e do jornalista inglês Dom Phillips, em cinco de junho de 2022.

Um mês depois dos assassinatos do indigenista e do jornalista, a Abraji traz detalhes da investigação conduzida por Bruno Pereira a partir dos relatos de dois de seus principais colaboradores. Em entrevistas exclusivas, eles denunciam as relações suspeitas entre narcotráfico, caça e pesca predatórias e políticos que defendem a invasão do território indígena. Segundo os entrevistados, cujas identidades serão mantidas em sigilo por questão de segurança, é uma extensa rede com ramificações na prefeitura, na Câmara Municipal e no Congresso Nacional.

Em Atalaia do Norte, famílias se reúnem na entrada das casas. Foto Pedro Prado
Em Atalaia do Norte, famílias se reúnem na entrada das casas. Foto Pedro Prado

Para preservar os entrevistados, que apesar do temor decidiram dar prosseguimento à investigação iniciada por Bruno Pereira, eles serão identificados apenas como colaboradores de Bruno. De acordo com um desses colaboradores, Bruno planejava entregar cópias do relatório com os nomes dos suspeitos e os cargos ocupados na administração municipal ao Ministério Público Federal, à Polícia Federal e ao jornalista Dom Phillips, que preparava um livro sobre a TI do Vale do Javari.

Bruno percebeu que o grupo envolvido nas invasões para caça e pesca predatórias na TI tinha mudado de perfil. Não eram mais pescadores ribeirinhos em canoas. “O Pelado tinha um barco com motor potente e capacidade para transportar até duas toneladas. Antes de ir morar em Benjamin Constant, ele vivia de forma precária, como a maior parte dos ribeirinhos”, conta ele.

A ascensão financeira de Pelado coincide com o período em que ele foi morar na cidade vizinha a Atalaia do Norte, Benjamin Constant, no início de 2019. Pelado, então, passa a organizar expedições ilegais para invadir a terra indígena com financiamento do narcotraficante peruano Rubens Villar Coelho, dizem as testemunhas. Colômbia, como é conhecido na região, centraliza suas atividades criminosas em Benjamin Constant, na margem brasileira do rio Javari, e Islândia, uma península no lado peruano, onde mantém domicílio.

Ao se aliar a Colômbia, Pelado passa a exercer papel de liderança nas vilas ribeirinhas de São Gabriel e São Rafael, onde vivem diversos membros de sua família às margens do rio Itacoaí, a cerca de 30 quilômetros da entrada do território demarcado. A posição estratégica transforma a localidade em ponto de apoio às expedições clandestinas. De lá, os peixes pirarucus e os tracajás, uma espécie de quelônio, são levados até Benjamin Constant e revendidos em Letícia, na Colômbia, e Santa Rosa de Yavari, no Peru.

Crianças brincam na cerca de uma das casas de Atalaia do Norte. Foto Pedro Prado/Abraji
Crianças brincam na cerca de uma das casas de Atalaia do Norte. Foto Pedro Prado/Abraji

Tracajás vendidos pelo WhatsApp 

Considerada uma iguaria na região amazônica, essa espécie de quelônio é muito valorizada e seu consumo representa status. Mesmo com a captura e a venda proibidas é comum encontrar esses animais sendo assados na lenha em churrasqueiras à frente das casas, em Atalaia do Norte. Seus ovos também são comercializados livremente.

“A gente sabe quando tem tracajás e ovos sendo vendidos na cidade. Há grupos de WhatsApp com funcionários da prefeitura. O Bruno sabia e me pediu ajuda para identificar os envolvidos. Na última vez em que falamos, ele me pediu para levantar os nomes completos e os cargos do Caboclo, do Jânio e do Clóvis. Caboclo é cunhado do Pelado e foi nomeado na Saúde. Jânio de Souza é da Secretaria de Interior. Ele foi morar em São Rafael e sempre anunciava mercadoria nos grupos”, diz um dos colaboradores.

O entrevistado cita ainda um terceiro nome levantado por Bruno naquela ligação: “O Clóvis, agente de saúde. Ele veio do interior e teve um aumento de patrimônio que não dá para explicar. Bruno sabia que Clóvis tinha duas casas de alvenaria alugadas para a prefeitura. Numa delas funciona uma creche e, na outra, a Vigilância Sanitária”.

O colaborador tentava confirmar a identidade do suspeito quando soube do desaparecimento de Bruno e Dom. A notícia do sumiço se espalhou por Atalaia do Norte, na manhã de domingo, cinco de junho de 2022. Os dois colaboradores sabiam que o desaparecimento prenunciava o pior: “Bruno mexeu com gente poderosa. Eu imaginei que estivessem mortos, mas nunca pensei que seriam capazes de cometer um crime tão bárbaro. Por aqui, isso não é comum. Eles foram esquartejados e queimados”, lembrou.

Crime encomendado  

Para o outro colaborador do indigenista, a morte de Bruno Pereira foi encomendada por poderosos da região. “O Bruno fazia o trabalho dele com excelência e coragem. Foi sempre assim desde que passou a coordenar a Funai na região. Ele mexeu com os poderosos. Foi o Bruno que mapeou as dragas de garimpo no rio, com as localizações de cada uma por georreferenciamento. Ele fazia isso com o próprio telefone celular. Ele fez o relatório e entregou às autoridades. Logo depois aconteceu uma grande operação, com os militares e a Polícia Federal. Explodiram 60 balsas. Cada uma não sai por menos de R$ 500 mil. Um milhão se contar logística, pessoal, combustível. Isso foi em 2019. Logo depois o Bruno foi exonerado do comando da Funai”.

Esse segundo colaborador ressalta que a explosão das balsas foi um golpe duro no garimpo. “Mas aquela não tinha sido a primeira investigação feita pelo indigenista a partir de relatos dos povos originários que vivem no Vale do Javari: “O Bruno tinha mapeado os empresários de Atalaia do Norte que ficavam com os cartões do Bolsa Família e de aposentadoria dos parentes (expressão usada por indígenas para designar membros de outras etnias). Eles passavam meses na aldeia e, quando vinham à cidade, não havia dinheiro nos cartões. Muitos descobriram que tinham dívidas impagáveis. Os comerciantes ainda faziam empréstimos em nome dos parentes”.

As queixas foram se avolumando até que Bruno Pereira passou a investigar os comerciantes para denunciar às autoridades. “A Polícia Federal fez uma operação e encontrou centenas de cartões com os comerciantes. O Denis (Linder Rojas de Paiva, atual prefeito de Atalaia do Norte) tinha mais de 100 cartões. Por que não aconteceu nada com eles? Tem que perguntar para a Polícia Federal. A gente sabe que ninguém foi preso, nem condenado”, desabafa.

A equipe do Programa Tim Lopes, da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), tentou ouvir o prefeito Denis Paiva (UB) no período em que esteve no município acompanhando o trabalho da Polícia Federal, mas ele havia ido para Manaus. Segundo sua assessoria, a viagem tinha o objetivo de obter recursos para Atalaia do Norte. Na mesma época acontecia o Festival Folclórico de Parintins. A Abraji também enviou mensagens para o e-mail institucional do gabinete, mas não obteve respostas.

À Abraji, o aliado de Bruno disse acreditar que a relação do prefeito Denis Paiva com Pelado não era de político com eleitor ou de amizade à família: “Ele tinha uma cumplicidade com Amarildo”. A versão apresentada pelo indígena explicaria a visita do prefeito à casa de Pelado no dia de sua prisão e o motivo de um procurador da prefeitura ter se apresentado para a fazer a defesa do suspeito. Na ocasião, o prefeito, em entrevista ao programa Estúdio I, da GloboNews, negou ter defendido o pescador.

Pelado teria atirado em indígena

Na entrevista à Abraji, o primeiro colaborador ouvido pela reportagem relatou um episódio de violência envolvendo Amarildo de Oliveira, o Pelado, e um indígena durante uma invasão à TI do Vale do Javari. “Ficamos sabendo que atiraram em um indígena que abordou uma expedição ilegal de caçadores e pescadores na Terra Indígena. Por sorte, ele escapou sem ferimentos. O autor do disparo, com uma espingarda de caça calibre 16, teria sido o Pelado”. A arma é do mesmo modelo usado nas execuções de Bruno e Dom.

O episódio descrito por ele aconteceu em fevereiro de 2019. Logo em seguida, policiais militares do Posto de Patrulhamento de Benjamin Constant encontraram 200 cartuchos de espingarda calibre 16 na casa de Pelado. A descoberta da munição foi revelada pela Agência Pública, em 29 de junho de 2022. A reportagem mostra que, apesar das circunstâncias, Pelado não permaneceu preso, tampouco foi denunciado à Justiça.

Sete meses depois da descoberta das 200 munições na casa mantida por Pelado em Benjamin Constant, o ex-prestador de serviços à Funai Maxciel Pereira dos Santos foi executado com dois tiros de pistola na nuca quando passava de moto pela Avenida da Amizade, que liga a cidade brasileira de Tabatinga a Letícia, na Colômbia. O assassinato aconteceu em seis de setembro de 2019, duas semanas depois de Maxciel ter participado da apreensão de uma embarcação carregada com pirarucus, tracajás e carne de caça, avaliada em R$ 100 mil.

O material apreendido tinha como procedência a TI do Vale do Javari. Após participar da operação, Maxciel dos Santos foi exonerado do cargo na Funai. “Maxciel e Bruno foram afastados de suas funções, porque o trabalho deles estava prejudicando a ação dos invasores da TI. Eles foram mortos por isso. Não tenho dúvida de que muita gente poderosa está envolvida. Se investigar, vai aparecer deputado estadual, governos e senadores”, disse o segundo aliado de Bruno ouvido pela Abraji.

O grupo político do prefeito

O entrevistado acrescenta que o prefeito Denis Paiva é filho de um madeireiro aliado histórico da família Galate. Patriarca do clã, Rosário Conte Galate foi vereador e prefeito de Atalaia do Norte por dois mandatos. “Ele explora há décadas a extração de madeira nobre no Vale do Javari. É dono de serralheria até hoje. Seu filho é Giuliano Galate, vice-prefeito de Denis. O Galate e o pai do prefeito, que também era madeireiro, mas morreu, tiravam mais de 2 mil toras de madeira nobre por mês. Agora as árvores são enviadas para serralherias no Peru, onde a madeira é preparada e enviada para o exterior”.

Ele conta que Galate pai não mora mais em Atalaia do Norte, trocou a cidade por Manaus, mas que, no período em que foi vereador, era o maior incentivador das invasões à TI. “Ele e o pai do prefeito nunca aceitaram a demarcação do território indígena. Agora seus filhos mandam na política local. Esse grupo mantém ligação com deputados federais e senadores”, afirma. A versão apresentada na entrevista à Abraji é reforçada por reportagem do site De Olho nos Ruralistas, que mostra os Galate com um senador da região.

Os dois colaboradores acreditam que o grupo político de Galate, que ficou conhecido na região por defender a política do “índio bom é índio morto”, vai seguir tentando invadir a TI do Vale do Javari. Segundo o ativista, 90% da população de Atalaia do Norte não gosta de indígenas: “É comum ouvir por aqui gente dizendo que tem muita terra para pouco índio. E o que eles vêm fazer na cidade, se a gente não pode entrar nas terras deles”, lamenta um dos colaboradores.

Para os dois entrevistados, o desmonte da estrutura de fiscalização da Funai incentiva a ação dos invasores. “Essa é uma política de governo. A FNS (Força Nacional de Segurança) enviou tropas para atuar no entorno da TI, mas os policiais não abordavam os caçadores e pescadores ilegais. Eles diziam que não era atribuição deles. Só comiam e dormiam. Tava lá por tá (sic)”. Atualmente, a FNS não mantém efetivo na tríplice fronteira entre o Brasil, o Peru e a Colômbia. A imagem do posto que servia de abrigo aos homens da Força Nacional é prova do abandono da região pelo poder público. Sem portas e janelas, o local virou ponto de encontro de dependentes de crack e outras drogas.

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