Por Edda Ribeiro, compartilhado de Projeto Colabora –
No Rio de Janeiro, alunos e professores se empenham, com pouco sucesso, para cumprir os dias letivos dentro do isolamento trazido pela covid-19
No dia 24 de março, o governo do Rio de Janeiro determinou a suspensão das aulas em escolas públicas e privadas por 90 dias, por conta da crise provocada pela pandemia da covid-19. As aulas à distância, que começaram no dia 30, serão contabilizadas como dias letivos e como horas de trabalho dos profissionais nas escolas, segundo o documento do Conselho Estadual de Educação n° 376/2020. Alunos e alunas da rede pública ficaram diante de um tremendo desafio: manter aulas em dia, para que não sejam prejudicados e não percam ano letivo, com as dificuldades de acesso á internet que muitos enfrentam.
Na semana seguinte, foi divulgado o calendário do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) com as datas das inscrições, em maio, e das provas, em novembro – praticamente como previsto no fim do ano passado; a única alteração ficou por conta do Enem Digital, que passou de outubro para novembro. Com isso, o coronavírus somou-se a outros problemas dos alunos do terceiro ano para garantir uma vaga na universidade pública: saúde mental na quarentena, ausência de aulas presenciais, exclusão digital e as dificuldades de estudar em casa.
Entidades estudantis e entidades de profissionais de ensino calculam que metade dos alunos da rede estadual não têm acesso regular à internet. A mesma preocupação tem o Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro (MPRJ), que, por meio da 2ª Promotoria de Justiça de Tutela Coletiva de Proteção à Educação, recomendou a suspensão do início das aulas virtuais até que seja garantida a segurança da comunidade escolar e esclarecido como se dará o cumprimento integral da carga horária mínima anual prevista na Lei de Diretrizes e Bases da Educação. A Secretaria Estadual de Educação não suspendeu o início das aulas virtuais e começou a usar, ainda em fase de testes, a plataforma Google For Education e da ferramenta Google Classroom.
No dia 20 de abril, o Ministério Público ajuizou ação civil pública para que o Estado do Rio de Janeiro se abstenha de computar como dias e horas letivos as atividades educacionais realizadas através da plataforma Google For Education e da ferramenta Google Classroom ou qualquer plataforma educacional similar. O MP lembra que, de acordo com levantamento da própria secretaria, pelo menos 20% dos estudantes – 150 mil alunos – não têm acesso à internet. “O gestor não pode admitir como natural que alguns alunos tenham acesso à educação, e outros não tenham, ou seja, que alguns alunos sejam deixados para trás. Não pode admitir, em suma, que se formem castas de estudantes na rede estadual de ensino: a casta dos ‘tecnológicos’ e a dos ‘excluídos digitais’”, afirma a ação da promotoria.
O MP requer ainda à Justiça que o “Estado se abstenha de reprovar qualquer aluno de sua rede” e garanta o cumprimento integral do calendário letivo dos alunos que, por qualquer razão, não cumprirem os requisitos de frequência e aproveitamento, em razão das dificuldades de aceso ou utilização das plataformas virtuais. A Promotoria de Justiça de Tutela Coletiva de Proteção à Educação lembra ainda que, a Uerj e a Faetec, também estaduais, “adotaram uma postura mais cautelosa, suspendendo a contagem dos dias e horas letivos e optando pela futura retomada das atividades presenciais”.
A Secretaria Estadual de Educação informou, em nota, que implementação da sala virtual é voltada para que os estudantes percam o mínimo de conteúdo possível e continuem mantendo contato com os seus professores. “Nos próximos dias, será feita a entrega de chips com dados de internet para os mais de 700 mil estudantes da rede. Os professores, diretores e demais profissionais, que estão trabalhando na plataforma, também serão contemplados com o benefício. Como forma de complemento ao ensino, a TV Band e TV Alerj transmitirão duas horas diárias de vídeos-aulas. Além disso, os estudantes com dificuldades, receberão material impresso em sua residência”, acrescentou a secretaria.
Enquanto o projeto de ensino à distância por meio digital avança devagar e sob críticas, famílias residentes em áreas periféricas do Rio de Janeiro enfrentam esse desafio ainda maior de manter a educação formal ativa diante da pandemia.
‘É muito doida a não rotina’
Luciana* (nome fictício) mora com a mãe, o padrasto, a irmã, o irmão e a cunhada na mesma casa – no Jardim Catarina, bairro da periferia de São Gonçalo, na Região Metropolitana do Rio – e hoje tenta estudar à distância para o Enem, com o objetivo de conseguir uma vaga em Ciências Sociais. Aos 17 anos, ela é ex-usuária de Dual e Clonazepam – antidepressivo e ansiolítico, respectivamente. Não poder sair de casa a faz lembrar do período do seu quadro de depressão, que só começou a superar em 2019. Ao retornar para os estudos, viu tudo mudar com o início da pandemia. “Estudava de 7h às 19h e, aos sábados, fazia o curso pré-vestibular. Hoje, não poder sair de casa, não saber se vou terminar o Ensino Médio, tudo isso soma para desmotivar. É muito doida a não rotina”, declara.
Antes de iniciar o período de quarentena, a adolescente recebeu um questionário da escola, também no Jardim Catarina, sobre o acesso à internet no domicílio. A promessa de conteúdos periódicos só se tornou real na terceira semana de confinamento, quando Luciana recebeu o conteúdo prometido. “Estudo com o horário do pré-vestibular que faço. Eles enviam e-mail, e aí vou abrindo e fazendo e toda sexta temos um simulado. Na primeira semana, fiz o simulado, mas na segunda já não estava me sentindo bem, acabei não fazendo”, conta.
Luciana, na verdade, ainda não se adaptou e nem sabe dizer o que anda estudando. “Na quarentena? Ou antes? Porque na quarentena estou só ladeira abaixo”. Segundo a estudante, não houve nada que tenha estudado e entendido com clareza durante o isolamento.
Aluna do curso de Formação de Professores, ela lembra um vídeo em que uma antiga funcionária do Ministério da Educação, durante a gestão Fernando Haddad, conversa sobre modelo de ensino. “Ela dizia que escola não consegue acompanhar o ritmo das pessoas, porque a sociedade vai mudando, e a escola não: fica naquela mesma tecla de ser lugar para se passar conhecimento. Tem até uma questão, da palavra “aluno”, que significa “os sem luz”, como se o professor fosse a pessoa que transmitisse esse conhecimento. E não é isso. Escola é troca”.
‘Em casa, se torna impossível seguir um horário certo de aula’
Enquanto envia fotos e vídeo estudando com sua filha Yasmin, Maria Luiza Silva organiza mentalmente a situação financeira da família. Desde o início da quarentena, não pode abrir seu comércio na Rua Uruguaiana, no Centro do Rio, e tenta encontrar maneiras de imprimir o material escolar da filha. “No Carnaval, vendemos camisas no Sambódromo, assim como fazíamos na barraca da Uruguaiana. Março costuma ser um mês fraco, mas não imaginava que ia acontecer, o que estamos vivendo agora”, diz.
Entre rezar e buscar meios de conseguir dinheiro, a autônoma de 27 anos senta, de segunda a sexta, com Yasmin para fazer os exercícios do 5º ano. “”A professora fez um grupo no Whatsapp, onde nos ajuda nas tarefas e nos dá um suporte muito bacana. Mando fotos da Yasmin estudando, mas, em casa. se torna impossível seguir um horário certo de aula. É muita coisa, não lembro mais, pois estou há tempos sem estudar”, conta Maria Luiza, que mora na favela Parque Rubens Vaz, no Complexo da Maré, na Zona Norte do Rio.
Mallu, como a ambulante é conhecida, explica as dificuldades para a filha acompanhar os estudos à distância. “Disseram que não precisava imprimir, mas tem muitas atividades com jogos, coisas de montar, recortar. Consegui uma parceria com uma senhora aqui perto de casa. Ela imprime as apostilas enormes, com 17, 20, 30 folhas, e cobra R$ 6 por cada uma”.
Antes da pandemia, a vendedora recebia 20% do valor das roupas que vendia. “O valor que peguei do Carnaval, paguei tudo: contas, cartão, aluguel, telefone meu e do meu esposo. E fizemos compras. Guardei R$ 40, um trocado que estou segurando se estiver algo faltando. Não sabemos quanto tempo vai durar. Não sei como vou pagar meu aluguel, não sei como será com comida”.
A família de Maria Luiza procurou auxílio em coletivos locais. Enviou mensagem ao perfil da rede social da ONG Redes da Maré. Uma semana depois do pedido, ela ainda aguardava a ajuda. “Ah, meu sonho! Entregaram aqui do lado da minha casa ontem, mas a minha ainda não”, contou.
‘Não sabemos quando as aulas presenciais vão voltar. Isso preocupa demais’
“Para estudar? Hum, eu precisaria de apoio maior da escola, incentivo, que eles mandassem material. Por mais que tenha a coordenação pedagógica em contato com alunos, falta abraçar esses alunos. É nítido que os alunos da Escola Técnica Estadual Adolpho Bloch estão em casa parados”, comenta o estudante William do Nascimento de Oliveira, 17 anos, do terceiro ano do Ensino Médio.
A ETE Adolfo Bloch oferece cursos técnicos na área de comunicação – produção audiovisual, publicidade e propaganda, produção cultural e eventos, entre outros. “Também precisamos ter as aulas do curso técnico, mas isso não tem como acontecer na educação à distância. Temos um TCC (trabalho de conclusão de curso) para desenvolver, e sem as aulas, não conseguimos. Não sabemos quando as aulas presenciais vão voltar. Isso preocupa demais, não temos como fazer de casa. Precisamos de orientador, de reuniões em grupo”, acrescenta William.
O TCC de Publicidade, por exemplo, exige que os alunos desenvolvam uma campanha ao longo do ano, como proposta a uma empresa escolhida pelos próprios estudantes. “Queríamos desenvolver algo voltado para adolescentes. Procuramos empresas de formatura, por exemplo. Antes da primeira reunião, aconteceu toda a situação do coronavírus e do isolamento. As empresas que estávamos procurando, todas pararam”, lamenta o estudante, que mora com a família em Bonsucesso, na Zona Norte do Rio.
De olho no vestibular para Comunicação Social, a dificuldade maior de estudante é em Exatas. Em casa, William tira dúvidas com a mãe, professora, e a irmã, biomédica, mas admite não estar estudando. “Para o curso que quero, tenho que estudar 4h por dia. Tento manter, mas se não estivesse parado em casa, estaria mais acelerado. Estudava de manhã, pré-vestibular à noite. Fazia estágio de tarde, tinha mais contatos, escrevia bastante. Bate ansiedade de querer voltar pra rotina. Tenho Internet, muita gente não tem. Tenho ainda o curso pré-vestibular e ajuda em casa. Se eu, que tenho tudo, não consigo estudar direito, imagina que não tem? Isso é uma forma de excluir no acesso para universidade”, acredita William.
‘Dos 30 vestibulandos inscritos, a adesão atual é de apenas 11’
O documento, compartilhado entre 12 professores e 30 estudantes após o isolamento, dizia: “Seguir conteúdo programático do 1° exame de qualificação da UERJ. Na semana 1, disciplinas específicas. Simulados semanais. Dias de revisão”. Coordenadora do Pré-Vestibular Comunitário Nós Por Nós, em São Gonçalo, Marcyllene Maria da Silva Santos pensou em como seria a dinâmica das aulas do projeto, que, habitualmente, aconteciam aos sábados, com a pandemia. Já utilizavam a Google Sala de Aula, e assim a decisão foi usar a plataforma permanentemente.
O planejamento com cada estudante foi feito na aula inaugural de 2020, antes do início do isolamento social. Em reuniões com professores e coordenadores pedagógicos e administrativos, o Pré-Vestibular Nós por Nós definiu o planejamento semanal. “Toda a organização ficou mais intensa com a pausa das aulas presenciais. A orientação geral é continuar os estudos, mas, dos 30 vestibulandos inscritos, a adesão atual é de apenas 11”, revela Marcylenne, que concilia as aulas para os alunos do Nós Por Nós com a preocupação de se formar em Ciências Ambientais ainda este ano.
A coordenadora explica o desafio enfrentado com o avanço da covid-19. “Agora tentamos mantê-los ativos, pela saúde mental e física do momento, tanto alunos quanto professores, todas as pessoas envolvidas”, conta. O maior problema para quem quer ingressar na faculdade este ano, para a coordenadora, é a falta de acesso a materiais de estudos. Com o ENEM mantido, segundo ela, os alunos de escolas particulares, com acesso à internet de qualidade, saem ainda mais na frente no preparo para a prova. “Quem é de escola pública só começa a se tocar disso no ensino médio, a partir do 2° ano. Saber como se inscrever, o que é a prova, o conteúdo programático. Nas particulares, esse preparo é da vida toda”.
Em 2016, o Pré-Vestibular Comunitário Nós Por Nós abriu a primeira turma. No mesmo ano, Marcyllene ingressou na Universidade Federal Fluminense para cursar de Ciências Ambientais. Além das dificuldades dos seus alunos, ela lamenta também que não se formará no fim deste ano, como previsto, “por causa do coronavírus”. As aulas do Nós por Nós acontecem no Colégio Estadual Trasilbo Filgueiras, no Jardim Catarina, em São Gonçalo. Para garantir as aulas presenciais, eram cobrados R$ 30 de cada estudante, convertidos em passagem (transporte) dos professores, lanche dos alunos e professores e a impressão de material didático, inclusive dos simulados. “Tem alunos isentos: os que não conseguem pagar. Eles contribuem com material: folha, recarga de piloto. Às vezes, alguém leva uma banana, um suco, e assim vai”, conta Marcyllene.
A coordenador do Pré-Vestibular Comunitário acha que a decisão de suspender as aulas era inevitável, mas teme pelo aprendizado de estudantes que não têm acesso fácil à internet. “A decisão da Secretaria de Educação do Rio de Janeiro foi a mais adequada diante da situação do vírus. Era necessária para professores, alunos, pessoas que coordenam a escola. Mas não acredito que contemple bem todas as regiões sociais do estado”.
‘Assisto as aulas à noite na casa do meu tio, pois onde moro não tem internet’
“Não uso máscara na rua, só aqui na clínica, que patrão o deu”. De segunda a sexta, das 8h às 16h; e sábado, de 8h às 12h, Jéssica* (nome fictício), 17 anos, liga para pacientes antigos e faltosos na clínica especializada em Medicina e Odontologia, em Bonsucesso. Aos problemas no trabalho com a pandemia, somam-se as dificuldades nos estudos. “O pessoal da escola me passou um site pra acessar. De início, foi uma dificuldade porque ninguém conseguia entrar. Assisto as aulas à noite na casa do meu tio, pois onde moro não tem internet. Quando chego em casa, tenho que fazer várias coisas porque também sou mãe. Mas fazer o que né? Só tem essa forma”, lamenta;
Jéssica* está no 1° ano do Ensino Médio, além de fazer curso profissionalizante de Administração. Entre as horas ocupadas com a família e trabalho, ela tenta organizar os novos métodos de estudos, todos virtuais. “Lá em casa, a internet não pega. Chego do trabalho cansada, tomo banho e, depois, não quero ficar mexendo no celular. Assim, ficam várias matérias acumuladas. Ontem tentei estudar, vi um monte de texto, mas não entendi quase nada. Na escola, temos os professores, interajo com os outros colegas. É horrível esse negócio de online”, explica.
Ela segue as orientações para evitar a contaminação pelo coronavírus. “Eu e minha família tomamos cuidado. Ninguém lá de casa está saindo à toa. Quando chego vou direto pro banho”, conta, admitindo não se sentir protegida. “Bem protegida não, todo mundo corre risco, né? Mas a gente faz o possível pra se livrar disso. Medo, tenho sim. Meu medo maior é levar o vírus pra casa e contagiar minha mãe, de 40 anos, e minha filha, de 2 anos, além do meu irmão, que tem 6 anos”.
A mãe de Jéssica, cozinheira em restaurante, teve contrato de trabalho suspenso até o fim da quarentena. Além do seguro desemprego, a única renda da casa, pelo menos durante a crise da covid-19, será a da jovem de 17 anos. “Agora estou ajudando na recepção. Ainda bem que a clínica tem a autorização de continuar aberta”, comenta. Em casa, ela diz, é uma bagunça. A filha e o irmão pedindo atenção. Jéssica sobe para laje de casa, onde consegue silêncio para estudar um pouco.
‘A tentativa de normalidade é ilusória’
A professora Ísis Natureza, 34 anos, também ainda não se adaptou a nova rotina com a suspensão das aulas. “Estou fora da sala de aula, apenas acompanhando as professoras que estão postando no grupo de whatsapp. Acho que é um desgaste e uma perda de sentido da função real da escola”, comenta Isís, que teve uma crise de rinite assim que as aulas foram suspensas. “Agora estou bem de saúde, mas psicologicamente dando tilt”.
Professora da Educação Infantil na rede municipal do Rio, ela se preocupa com as aulas virtuais do filho Luã, de 11 anos, e seu próprio papel como educadora em meio à pandemia de covid-19. “As professoras têm família, tem seus filhos também, suas demandas domésticas, e tem que dar conta da produção dos vídeos, das aulas em EAD. Não existe um espaço só para isso, para esse home office. As pessoas ficam ansiosas, preocupadas, tensas”, desabafa.
Para Ísis Natureza, as redes públicas estão, em plena quarentena, cobrando produtividade num cenário onde não há lugar para isso. “Só provoca maior adoecimento e tensão. Ninguém repensa o formato, os paradigmas pedagógicos, os currículos, as experiências”, critica a professora. “Estamos vivendo algo singular, e não consigo transformar isso em apostila, em aula”.
Ela enfatiza que o cenário de isolamento coloca em xeque o modelo de ensino, “O aprendizado, a bagagem que podemos trazer para o modelo pedagógico, está na rotina, no mundo real. Não tenho como pegar a instituição ‘escola’ e simplesmente trazer para dentro da minha casa. Ao mesmo tempo, esse cenário de isolamento e o que isso traz como recurso material ajudam a pensar o modelo de educação institucional que temos. Sem que a prioridade desse modelo sejam as tarefas, o dever de casa. A tentativa de normalidade é ilusória”, afirma.