Publicado em Carta Capital –
O relatório final da Comissão da Verdade “Rubens Paiva” afirma que a segurança pública militarizada e a educação precária, heranças da ditadura, mantêm a sociedade desigual
Às vésperas do aniversário de 30 anos da redemocratização brasileira, a Comissão da Verdade Estadual “Rubens Paiva” apresenta, nesta quinta-feira 12, um relatório crítico no qual une-se à Comissão Nacional da Verdade ao pedir a revisão da Lei da Anistia, a incorporação do relatório nos currículos escolares, reformas de Segurança Pública e maiores investigações sobre os mortos e desaparecidos políticos da ditadura.
De acordo com o relatório, a precarização da educação pública e o formato atual da segurança pública são instrumentos de reprodução de desigualdades. “É notório que a Polícia Militar não se adaptou ao regime democrático. Trata-se de uma corporação policial militar historicamente concebida mais como força de ocupação territorial e controle político violento contra a população pobre do que voltada para a prevenção da violência e criminalidade”, afirma o documento. Em relação à educação, o relatório conclui que “as ações feitas à época mostram que a visão militarista, somada aos acordos com os Estados Unidos, empobreceram as escolas brasileiras, além de abortarem os projetos que tinham sido incentivados durante o período das reformas de base”, diz.
Ao todo, o documento é formado por 26 capítulos, que sistematizam a organização política repressiva e as violações dos direitos humanos durante o regime civil-militar. No relatório constam 18 recomendações gerais e outras 150 temáticas com o objetivo de expor que, mesmo após três décadas, a redemocratização brasileira ainda carrega instrumentos ditatoriais e táticas repressivas de perpetuação das desigualdades sociais.
Fruto de três anos de investigação e da coleta de mais de uma centena de depoimentos, o relatório afirma que as violências da ditadura atingiram cifras muito elevadas no Brasil: “mais de 50 mil presos nos primeiros meses depois do golpe, 436 mortos e desaparecidos políticos no Dossiê de Familiares, no mínimo, 8350 índios mortos e desaparecidos, 10.034 pessoas submetidas a inquérito e 7.376 indiciadas por crimes políticos, 130 banidos, 4.862 cassados, 6.952 militares atingidos, 1.188 camponeses e apoiadores assassinados, 4 condenados à pena de morte (que foi comutada; a ditadura executou vários, mas sempre fora da lei) e milhares de exilados”. Segundo o documento, esses dados eram subnotificados até poucos anos atrás e a atuação da Comissão da Verdade foi decisiva para revelar os crimes do período.
Apresentado de maneira didática e multimídia no site da comissão, o relatório revela documentos e relatos de vítimas e partícipes da repressão que sistematizam a violência contra minorias e a criação de políticas repressivas em vigor ainda hoje, como a criação de grupos de extermínio, o uso da tortura pela polícia e a degradação do ensino público. Também é preocupação da comissão que o relatório não seja apenas um documento de registro sobre o período, mas que ele também seja incorporado pelas instituições de ensino para que as novas gerações conheçam a verdade sobre a repressão no Estado brasileiro.
Em nota, a Secretaria de Direitos Humanos da Prefeitura de São Paulo informou que já é distribuído um kit multimídia sobre a questão do direito à memória e à verdade e que o relatório final da Comissão “Rubens Paiva” será avaliado e possivelmente incluído no material. No entanto, este kit é distribuído apenas para educadores que aceitam o convite da prefeitura e ainda não é uma política que abrange a totalidade da rede pública municipal de ensino, afirmou a secretaria.
A Secretaria de Justiça do Estado de São Paulo, responsável pela área de Direitos Humanos no estado, não respondeu à tempo a reportagem.
Os 26 capítulos também podem estão disponíveis para download ano quadro ao lado.
As recomendações gerais do documento são:
1. Criação de Memoriais (ou outro elemento simbólico análogo) para as vítimas da ditadura e em homenagem aos que morreram ao combatê-la;
2. Criação da Comissão Permanente de Investigação dos Crimes da ditadura militar e suas consequências nas políticas atuais do Estado e na vida social;
3. Pedido oficial de desculpas pelo Estado brasileiro à Organização das Nações Unidas, à Organização dos Estados Americanos, à Organização Internacional do Trabalho e à Anistia Internacional pela violação do princípio da boa fé nas relações internacionais e daprevalência dos direitos humanos, em razão das informações falsas sistematicamente prestadas pelo Estado brasileiro nas denúncias contra os crimes da ditadura militar;
4. Implementação de políticas públicas voltadas a impulsionar a difusão da história do Brasil na Ditadura Militar sob a perspectiva de gênero, raça/etnia, orientação sexual, identidade de gênero e classe social, de modo que a população possa ter acesso e conhecimento desse passado recente das mulheres, crianças afetadas, do genocídio dos povos indígenas e dos crimes praticados contra outros setores da sociedade;
5. Cumprimento integral pelo Estado brasileiro da Sentença da Corte Interamericana no Caso Gomes Lund e Outros – Guerrilha do Araguaia (Caso 11.552);
6. Descriminalização dos movimentos sociais, suas ações e ativistas;
7. Encaminhamento ao Ministério Público Federal das informações coletadas acerca da prática de tortura por agentes do Estado, com vistas à apuração e, responsabilização criminal e civil dos perpetradores dessas gravíssimas violações de direitos humanos;
8. Localização, identificação e entrega aos familiares, para sepultamento digno, dos restos mortais dos mortos e desaparecidos que foram assassinados pelos órgãos de repressão política e cujos corpos foram ocultados;
9. Responsabilização penal, civil e administrativa, inclusive com perda de cargo, de todos os agentes públicos que, por ação ou omissão, contribuíram para as violações perpetradas pela Ditadura Militar, como juízes, promotores de justiça, agentes policiais eoutros, que apesar de cientes das denúncias não se empenharam em garantir a segurança e a vida dos presos, ao não tomar as devidas providências, não solicitando investigação das denúncias;
10. Ratificação da Convenção Sobre a Imprescritibilidade dos Crimes de Guerra e dos Crimes Contra a Humanidade, adotada pela Resolução nº 2391 da Assembléia Geral da Organização das Nações Unidas, em 26 de novembro de 1968;
11. Revogação da Lei de Segurança Nacional (Lei nº 7170 de 14 de dezembro de 1983);
12. Aprovação de novo Estatuto de Estrangeiro, que revogue a Lei nº 6815 de 19 de agosto de 1980;
13. Revogação da Lei nº 667/1969 e do Decreto 88.777/1983 (R.200), que regem a organização, o efetivo, o emprego e o funcionamento das Polícias Militares no Brasil;
14. Instituição e/ou fortalecimento da educação e da formação contínua em Direitos Humanos das polícias e forças militares e de segurança pública do país, incluindo o estudo da sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso Gomes Lund e Outros – Guerrilha do Araguaia, bem como aos juízes, serventuários da justiça, advogados, defensores públicos e membros do Ministério Público;
15. Criação de um programa de capacitação de juízes, serventuários da justiça, advogados, defensores públicos e membros do Ministério Público sobre o sistema regional e os internacionais dos direitos humanos, bem como sobre os tratados e convenções assinados e/ou ratificados pelo Estado Brasileiro para atuação nas demandas que se referem ao período da Ditadura Militar;
16. Extinção da Justiça Militar;
17. Fim dos autos de resistência ou de “resistência seguida de morte”;
18. Desmilitarização da Segurança Pública, desvinculação da Polícia Militar do Exército e sua submissão à coordenação do Ministério da Justiça.