“O quadro das escolas em São Paulo é desesperador”
Professor da rede pública prevê perda de docentes para a iniciativa privada com a reestruturação e fechamento de unidades de ensino no estado
O cientista social Douglas Oliveira, professor da rede estadual em São Paulo, tem acompanhado de perto a a mobilização dos estudantes contra a chamada “reestruturação das escolas” anunciada pelo governo Alckmin no fim de setembro.
Em um grupo de debates sobre o tema, ele fez a seguinte leitura sobre o levante que começa a tomar força pelo Estado. Reproduzo, com autorização do autor, aos leitores deCartaCapital:
É preciso contextualizar as condições que permitem a Geraldo Alckmin promover uma ataque tão severo contra a Educação. O governador foi reeleito com cerca de 60% dos votos válidos e com um declarado apoio dos principais órgãos de comunicação do nosso estado.
Nem a iminência de uma crise hídrica sem proporções, ou mesmo um escândalo internacional envolvendo as reformas no metrô, foram capazes de abalar a blindagem que a mídia lhe confere.
Ainda assim, é necessário entender que, por si só, nem isto lhe dava condições para apresentar em sua plataforma de campanha uma proposta tão impopular como a extinção de unidades escolares.
Nós, que somos diretamente envolvidos com as lutas em torno da defesa da educação pública, jamais tivemos dúvidas em relação à perversidade de seu projeto, mas essa é uma outra questão.
O caldo político cultural no qual ele está assentado não pode ser compreendido se perdermos de vista dois elementos centrais.
O primeiro é a capitulação do Executivo federal ao pragmatismo político mais tacanho, algo capaz de transformar áreas estratégicas, como Saúde e Educação, em moedas de troca para se sustentar no governo.
A incompetência em enfrentar, nestes últimos 13 anos, os grandes conglomerados da mídia, assim como os reais responsáveis pela vergonhosa desigualdade social do país, acabou por naturalizar a ideia de “ajuste fiscal” como única saída para imbróglio no qual nos encontramos.
A crise é do Capital, e de um modelo de civilização que já se mostra incapaz de renovar-se num sentido que valorize o ser humano, mas o PT preferiu tratá-la exclusivamente como uma crise do governo.
Estamos há anos apontando tal erro.
O segundo elemento é mais contingente e conjuntural.
A Apeoesp convocou, no início do ano, uma greve de professores que durou 92 dias e acabou por ser a mais longa da história das lutas da categoria por aqui.
O eixo da greve se concentrou numa agenda econômica e se caracterizou pela cobrança ao governo pelo respeito à data base para nos conferir o dissídio salarial, um direito inegociável, e também a aplicação da Meta 17 do Plano Nacional de Educação, que prevê a equiparação salarial do professorado às demais categorias profissionais com formação universitária (odeio a expressão “nível superior”) até o ano de 2020.
Em linhas gerais, trata-se de um aumento de cerca de 70% nos rendimentos (parece um absurdo, mas a verdade é que ganhamos muito mal mesmo).
O governo não recuou em um ponto sequer e nos impôs uma derrota acachapante.
Vale dizer que o sindicato conduziu a greve de maneira amadora durante o tempo todo.
O apoio midiático, somado à legitimidade das urnas, à indiferenciação programática entre petistas e tucanos quando no poder, e à derrota imposta à greve acabaram por formar a “tempestade perfeita” para que o governador tirasse da gaveta um dos mais perversos projetos de todo o receituário neoliberal.
Vale lembrar que isso já foi tentado entre 1995 e 96, quando o governo, ainda que tenha conseguido extinguir cerca de 20 mil empregos, enfrentou uma gigantesca reação da categoria.
A primeira etapa seria o desmembramento dos ciclos e municipalização do Fundamental II.
Como consequências imediatas teremos o fechamento de cerca de 450 escolas públicas (sim, fechamento de escolas), a transferência compulsória de estudantes e professores para outras unidades, uma redução significativa no quadro de profissionais do magistério, a superlotação de salas de aula, a quebra de toda uma experiência cotidiana que temos com o “lugar escola” (entendida como espaço de vivência e convivência coletiva e também como terreno de compartilhamento de experiências intersubjetivas).
O governo alega que a taxa de natalidade do estado diminuiu significativamente nas ultimas décadas, e também que a “clientela” de estudantes atendida pela rede diminuiu em cerca de 30% entre 1998 e 2015.
Ele está dando um verniz pedagógico quando diz que escolas com ciclos separados, desde que contem com salas adaptadas às faixas etárias dos atendidos, favorecem o rendimento dos alunos.
A verdade é que ele deve impor um corte de cerca de 30% no quadro do professorado nos próximos anos.
A reforma é orientada por matizes exclusivamente econômicos e tecnocráticos.
Agora podemos passar para uma leitura da segunda etapa do projeto.
Baseado em diretrizes sugeridas/impostas pelo Banco Mundial, o governo dará início a um processo de “flexibilização curricular”. Traduzindo, conteúdos hoje garantidos em disciplinas específicas e calcados num quadro que reconhece a Educação como um direito social não atendem às demandas do mercado. Por consequência, serão extintos e distribuídos em disciplinas genéricas. Filosofia, Sociologia, Química e Física estão com seus dias contados no estado de São Paulo.
Muito me atormenta que os sindicatos de cada uma das áreas ainda permaneçam em silêncio. Na verdade, não me assusto: Educação não é levada a sério por quase ninguém no Brasil.
As escolas de tempo integral, outra falácia do governo, muito em breve serão submetidas ao regime de terceirização de gestão.
O que isto, de fato, significa?
Que em dois ou três anos estaremos submetidos às pressões da iniciativa privada, mas trabalhando numa estrutura que sequer nos aproxima daquelas encontradas na rede particular.
Continuaremos ganhando dez reais por aula, mas submetidos a um regime de pressão distinto daquele vivenciado nas escolas privadas, onde paga-se pelo menos quatro vezes mais. Fosse apenas isso, até que daria para suportar, já que a gente permanece aqui única e exclusivamente por militância mesmo.
A questão é que a terceirização da gestão abre o terreno para as aves de rapina que entendem a Educação como mercadoria privilegiada no contexto da tal “sociedade da informação”.
A Educação não gera, mas valoriza o Capital. Aqui está a questão.
Grupos como o Escola Sem Partido têm trânsito livre no governo do estado, e em breve devem assumir, como ensaio geral, as gestões de algumas unidades de tempo integral.
A pressão que eles não conseguem impor na rede privada, que ainda valoriza o ensino tradicional e propedêutico (até porque, se assim não o fizer, não consegue colocar alunos na USP), será imposta aqui.
O impacto imediato será a migração dos melhores quadros da rede, e somos muitos, para a iniciativa privada. O rebaixamento salarial e a intensificação das pressões logo chegarão a todos, daí a necessidade de entender que o problema não se inicia nem se esgota na Escola Pública.
O governo, muito em breve, deve apresentar propostas semelhantes aos Programas de Demissão Voluntária impostos aos bancários e profissionais de outras áreas privatizadas.
A Educação não será privatizada, mas sim a gestão. Aí está o “busílis” da coisa, como diria um genial sociólogo brasileiro.
O grosso da categoria é absolutamente despolitizado e incapaz de realizar uma leitura global do problema.
Ainda bem que temos esses alunos guerreiros para se lançarem à vanguarda da luta – mas, sozinhos, eles também não alcançarão a vitória.
O quadro que temos colocado em São Paulo neste momento é desesperador. Quando lembro que, por algo que sequer se aproximava disso, um intelectual como o Florestan Fernandes se lançou numa cruzada pelo país, tenho calafrios.
Individualmente, ando procurando alertar jornalistas e intelectuais para a gravidade da questão, mas o silêncio ainda permanece como padrão.
São egocêntricos e ensimesmados.
A academia também está se posicionando vergonhosamente.
Não há uma declaração de estudioso da educação ou moção de repúdio de congregações universitárias até aqui. Tivemos apenas uma nota do MTST.
A aprovação desta reestruturação será a morte da escola pública no nosso estado. Em pouquíssimo tempo, veremos escolas fechadas se tornando unidades da Fundação Casa.
Geraldo Alckmin é o exemplo mais bem acabado do gestor do “Estado Penal”, para lembrar um conceito sociológico fundamental para entender o nosso tempo.
Escolas, presídios e unidades socioeducativas terceirizadas valorizarão o Capital numa razão ainda não conhecida entre nós.
Acreditem, trata-se de um ponto de virada, mesmo para os padrões do capitalismo predatório que temos no Brasil.
É preciso entender que a reestruturação não é uma simples reforma, mas uma verdadeira revolução que rasga a Constituição de 1988.
Não se trata de uma simples mudança de grau, mas de uma alteração qualitativa de proporções imprevisíveis e talvez irreversíveis. É causa cívica mesmo, pessoal.
Não deixem de dar a devida atenção.