Refúgio do patriarca: casa de José Bonifácio vira museu, organizado por Fichel Davit Chargel

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Por Ludmilla de Lima, em O Globo, compartilhado do Site da ABI

 Fotos: Custódio Coimbra/O Globo

Há pelo menos 200 anos a propriedade à beira-mar em Paquetá preserva o mesmo ar sossegado — e, ao longo desse tempo, tornou-se patrimônio do Brasil. De frente para a paisagem da Baía de Guanabara, a casa branca de janelas verdes, situada no meio do terreno, é cercada por jardins onde destaca-se uma velha jaqueira, cuja sombra traz o frescor necessário nos dias mais quentes na ilha. Pois ali, na primeira metade do século XIX, o Patriarca da Independência, José Bonifácio de Andrada e Silva, intelectual que muito influenciou D. Pedro I, encontrava a paz num dos momentos mais turbulentos da história do país. Não à toa, ele chamava a residência, que adquiriu antes de transformá-la no seu exílio domiciliar, de “refúgio filosófico”.




A casa, na Praia José Bonifácio (antiga Praia da Guarda), provavelmente construída na virada entre os séculos XVIII e XIX, é um dos locais que, hoje, ajudam a contar a trajetória do grande articulador da Independência no ano do bicentenário. O imóvel, tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) desde 1938, continua de pé por sorte. Durante pelo menos cinco anos, a casa andou abandonada, em estado precário. Em 2015, no entanto, foi adquirida, e depois restaurada, por um colecionador do Rio, o jornalista Fichel Davit Chargel. Ele agora abre suas portas ao público às sextas, com visitações (sempre gratuitas) às 9h, às 10h30 e às 12h, dentro do projeto Sextou Paquetá!.

Casa já teve 6 mil livros

O processo de reforma, longo, só foi concluído agora. O casarão virou um museu dedicado à comunicação e aos costumes, mas não deixa o visitante esquecer seu mais ilustre morador, representado por uma estátua em tamanho natural: José Bonifácio, filósofo, poeta, naturalista e político que viveu três décadas na Europa e, na volta, marcou o país com ideias à frente do pensamento vigente. Entre elas, a libertação de escravizados e a incorporação dos índios à sociedade, além da defesa da reforma agrária e da preservação de rios e florestas.

Na casa, onde viveu seus últimos anos de vida, Bonifácio chegou a guardar seis mil livros. Hoje, o espaço abriga mais de 20 mil itens de Davit Chargel que revelam como era a vida em tempos passados.

— Compramos a casa em 2015, e no final do ano começamos as obras. Precisei trocar 1.200 telhas. Acreditava que ela comportaria o meu acervo, que comecei aos 17 anos, quando fui empregado na Companhia Telefônica com carteira assinada — explica Davit, de 88 anos, ao lado da mulher, Beatriz Santacruz Chargel, e da museóloga Jussara Cestari.

— O primeiro item que comprei foi um gramofone, para mim um tesouro. Aí, comecei a frequentar a feira da Praça Quinze. Com o tempo, passei a comprar antiguidades também lá fora, como na França e na Argentina. O meu interesse herdei do meu pai: embora tenha morrido quando eu tinha 10 anos, era dono de antiquário no Rio, aonde chegou da Polônia em 1917, fugindo da Primeira Guerra.

A coleção do jornalista vai de máquinas fotográficas, telefones e fonógrafos a documentos com a assinatura de José Bonifácio, passando por milhares de objetos curiosos da vida privada (de vidros de lança-perfume a um chocalho que pertenceu a Pedro I bebê).

O interessante é que muitas das tecnologias ali apresentadas ao público ainda funcionam. É possível ouvir o som perfeito de uma caixa de música de cilindros do século XVIII e de um gramofone do tipo carrossel alemão da primeira década do século XX. Um rádio da primeira geração, invenção do italiano Guglielmo Marconi, também está em exposição, assim como uma máquina de escrever Hammond, americana, do século XIX.

Há dezenas de lanternas mágicas — para projeção de imagens sobre vidro —, antecessoras do cinema. Antes dos irmãos Lumière, também foram usadas técnicas como o zoetrope — onde imagens desenhadas ou impressas são vistas através de um tambor rotativo — e o praxinoscópio — mais popular, pela suavidade do movimento refletido em espelhos. Esses equipamentos fazem parte da área dedicada à sétima arte. Lá, o público ainda ficará por dentro do mutoscope — sucesso nos bares em meados do XIX com imagens de strip-tease.

Documentos preservados também chamam atenção. Nessa ala estão o original do primeiro jornal brasileiro — edição de junho de 1808 do Correio Braziliense — e registros do próprio Bonifácio.

— É um acervo variado. Mas o público não se perde no museu. Em todas as salas, cada uma dedicada a uma personalidade de Paquetá, há itens sobre comunicação e costumes — conta Jussara Cestari.

Ilhado em seu exílio

José Bonifácio, paulista de Santos, teve uma trajetória de muitos percalços. Ele e Dom Pedro I viviam às turras. Em 1823, um ano após a Independência, acabou deportado para a França, e viveu quase seis anos no exílio. O escritor Vivaldo Coaracy, que morou em Paquetá, conta no seu livro sobre a ilha que por volta de 1830 Bonifácio adquiriu, em regime de arrendamento, por 6 mil e 400 réis anuais, a chácara, com então quatro mil metros quadrados. A casa era menor que a de hoje, com apenas duas janelas dianteiras, mas tinha dois torreões que sumiram com o tempo.

Naquele endereço o político recebeu a mensagem de Pedro I, pelas mãos do vice-cônsul da França, pedindo que aceitasse ser tutor de seus filhos, incluindo o futuro imperador. A missão lhe rendeu conflitos e inimigos, e, em 1833, ele foi preso novamente — desta vez em seu refúgio particular. O endereço ganhou o nome de Praia da Guarda porque um destacamento o vigiava dia e noite. Coaracy relata que, mesmo libertado em 1835, Bonifácio preferiu continuar na chácara. Doente, acabou convencido a trocar a Praia da Guarda pela Praia do Ingá, em Niterói, em 1838, para receber tratamento médico adequado. Morreria 12 dias depois.

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