Empresários patrocinam a mídia que os apoia.
Por Juremir Machado da Silva, compartilhado de Matinal
Ilustração: DALL-E / OpenAI
Dito de outra maneira: empresas patrocinam jornalistas de veículos que as apoiam. Para ter patrocínio, a mídia precisa estar em sintonia com o patrocinador. Para ter espaço, o jornalista necessita estar em sinergia com o veículo e seus patrocinadores. Resultado: patrocinador conservador, mídia conservadora, jornalista conservador, público conservador. Como a ciência não se rende ao patrocinador e sua lógica, enfrenta o negacionismo. A mídia conservadora tem replicado, mesmo que não o admita, o negacionismo climático de quem a patrocina para ter defendidos os seus ideais de exploração ilimitada da natureza.
É sempre assim? Não. Como em tudo, há brechas. Empresários que apoiam jornalismo e ciência. Ou seja, a busca da verdade. É raro. Mas tem. O fenômeno extremo, como as enchentes no Rio Grande do Sul, desarruma essa lógica conveniente (patrocinador conservador – mídia conservadora – jornalista conservador – público conservador). Como dizem os próprios jornalistas em mesa de bar, não se pode brigar com os fatos. Em tempos normais, claro, pode-se omitir o fato ou distorcê-lo em nome do bom resultado para a equação proposta. Não se vê essa operação como ideológica, pois ideológico é sempre o pensamento do outro, não o do emissor do enunciado ou do operador da ação.
Em tempos disruptivos ocorre uma onda de dissonância cognitiva. Jornalista não totalmente conservador de veículo conservador, com patrocinador e público conservadores, desperta do seu sono estratégico ou inercial e começa a questionar parte do sistema que ajudou a construir. Em abstrato, nos programas de remplissage (termo francês par encher linguiça), jornalistas concordam com o papel do ser humano nas mudanças climáticas. No concreto, em nome da empregabilidade, da modernização e do futuro, reproduzem as ideias dos patrocinadores e dos seus veículos para satisfação do público cativo. Assim, falam sem parar da emergência climática, mas não veem problemas na impermeabilização dos solos, na destruição das matas ciliares, no esgotamento dos banhados, na ocupação de áreas alagadiças e outras reduções da natureza ao domínio do humano moderno e predador.
Aí predomina o “bom senso” dos criadores de empregos e dos homens de responsabilidade. As vozes contrárias são rotuladas de radicais e extremistas. Nada mais extremista do que a sensatez do lucro a qualquer custo dissimulado em segurança social. A modernidade criou o pesadelo atual cavalgando três mitos mobilizadores: progresso, racionalismo e autonomia. O indivíduo racional (o racionalismo é a doença da racionalidade) dominaria completamente a natureza e assim alcançaria a sua plena autonomia em relação ao meio. O homem moderno – masculino, branco e mestre da razão – toma-se por senhor da natureza, capaz de subjugá-la, domesticá-la e usá-la como um repositório infinito de matérias primas para o seu consumo voraz e insaciável.
A imprensa, agora chamada pejorativamente de mídia, tem sido o intelectual mais orgânico e eficaz da ideologia moderna da dominação da natureza como expressão da ilusão do homem como medida de todas as coisas. Essa adesão ao culto do antropoceno se dá na maior da parte das vezes por falta de informação. Vaidoso do seu espaço, confortável no seu status, sentindo-se parte do poder local ou nacional, o jornalista imagina estar do “lado certo” e com as informações certas, afinal, ele fala como “todo mundo”, com todo o mundo que interessa, que lhe interessa, que interessa ao seu veículo. O jornalismo opera como bolha: o convidado admitido confirma o pensamento aceito no ponto de partida. Por isso, será convidado indefinidamente. Se as fake news corroem o tecido social e ameaçam o futuro das democracias, as ilusionews podem ser tão ou mais perigosas, pois se apresentam como positivas, incontestáveis, legítimas e respeitáveis. Tudo aquilo que se opõe a elas é imediatamente suspeito de ideologismo e mistificação.
Alguns veículos mais mercadologicamente ousados, na luta por nichos de audiência promissores, toleram alguns pontos fora da curva para se dar ares de independência e de vanguardismo. É o que explica o caso do jornalista André Trigueiro na Rede Globo. Quanto mais a relação da mídia com setores empresariais se estreita, especialmente no plano local, menor é a margem de independência jornalística. Na ponta final, a cadeia fica assim: patrocinador conservador – mídia conservadora – jornalista conservador – público conservador – eleitor conservador – eleitos conservadores – governos conservadores.
Felizmente, em democracias, há sempre frestas nos modelos.
O radiojornalismo do Rio Grande do Sul já foi mais permeável. Hoje, patina no mais estrito conservadorismo. Não deixa de ser irônico que a RBS, grupo mais entusiasta do modelo de exploração ambiental do Estado, tenha de ser atualmente o mais duro crítico das ações e inações dos gestores públicos em meio às grandes enchentes de 2024. Ao final, restarão jornalistas no divã ou irrecuperáveis para o sistema antigo. Como, porém, sabe-se que um acontecimento expulsa o outro, o esquecimento será o principal aliado para a retomada dos “bons” valores e o restabelecimento da cadeia básica patrocinador– veículo – jornalista – público (eleitor) – governantes. Esse tecido tem alto poder regenerativo e não tarde a apagar as feridas mais embaraçosas.
Alguns veículos tentaram se manter incólumes durante a cobertura da tragédia, apostando na fórmula do bolsonarismo neoliberal: o povo salvou o povo. Essa foi a mais nefasta politização ocorrida. Talvez seja uma crítica às falhas constrangedoras dos aliados na velha cadeia colaborativa dominante. Como em geral acontece neste tipo de situação, de fato, o povo precisou agir diante do grau de urgência imposta pelas águas. O papel do Estado, contudo, não foi anulado. O rol de medidas tomadas e ajudas liberadas está aí para provar que houve, no mínimo, parceria entre a solidariedade popular e a obrigação estatal. Dizer isso não impede de reconhecer que, em todos os níveis, houve tentativa de obter alguma vantagem eleitoral no enfrentamento da catástrofe.
Sem constrangimento, os prováveis culpados trataram de considerar inconveniente apontar culpados, no que foram prontamente apoiados por alguns dos seus aliados midiáticos mais fiéis e devedores. Afinal, entre os réus sempre confessos, por deixar rastros gravados, está a mídia. A força do acontecimento, porém, atropelou qualquer manobra dessa ordem. Por toda parte perambulam jornalistas dilacerados, carregando o passado em cantos do cérebro e do coração e a violência das chuvas na claridade dos olhos. Como será o amanhã?