Por Ulisses Capozzoli, jornalista que fala com sensibilidade à flor da pele sobre semelhantes e escreve com profundidade sobre astros e estrelas.
Na madrugada gélida como sorvete levo chá, dois sanduiches e uma pequena porção de bolachas recheadas com goiabada para duas pessoas queridas que esperam ser vacinadas. Certamente serão. São a décima e décima-primeira numa fila que se desenrola como uma grande serpente humana envolvendo quarteirões. Quantas doses estão disponíveis? 60, mas, provavelmente, apenas 30 serão utilizadas. É preciso aplicar a segunda dose, em poucas semanas, e ninguém sabe se elas estarão disponíveis.
O número provável de vacinação nesta madrugada enregelante (as 30), é mil vezes inferior ao necessário para imunizar toda a população da cidadezinha mineira assentada na topografia irregular da Mantiqueira.
As pessoas estão encolhidas de frio e posso acrescentar: de humilhação. Não sabem se terão acesso à imunização e, certamente, cada uma delas reflete sobre essa situação de negação da cidadania elementar na fila-serpente que envolve quarteirões.
A maioria voltará para casa com o gosto amargo da frustração. Entregues a uma loteria perversa que já sacrificou meio milhão de outros brasileiros e continua campeando como um demônio descontrolado. Alguém que ocupa uma posição supostamente responsável disse que a peste que se desloca nas asas do vento seria “apenas uma gripezinha”.
Essa pessoa, que ocupa uma cadeira de poder, mas é uma criatura cheia de ódio, agressividade e fala/atos descontrolados, continua sua cruzada perversa, negando o uso de máscaras protetoras, isolamento sanitário mínimo e boicota a imunização.
Por que esse homem assentado na cadeira do poder age dessa maneira? Porque ele é um fascista, um demônio a quem uma população, por ignorância ou falta de noção elementar de realidade, chamou de “mito”. O “mito” tem apoio militar, na verdade é um militar de baixa patente, ainda que tenha sido expulso do exército por insubordinação, pregação de rebelião e atos de terrorismo.
Militares, no Brasil, historicamente por trás de golpes, manobras indecentes e crimes bárbaros como a pura degola, como ocorreu ao final da Guerra de Canudos (1896/97), comunidade que buscou solução para os próprios problemas. Mas, com isso, atraiu a ira de uma igreja reacionária, mentalidade arcaica e escravista de fazendeiros bem nascidos e a aquiescência, em seus propósitos, por um governo insensível a um mínimo de civilidade.
Canudos que encerrou sua luta em um banho de sangue e, posteriormente, foi encoberta pelas águas de um açude, na tentativa dos militares de apagar uma tragédia histórica. Quem duvidar do que está sendo narrado aqui que leia talvez o maior clássico brasileiro, “Os Sertões” de Euclides da Cunha, ele também um militar. Mas um homem, como muitos outros militares antes e depois dele, sensível às condições humanas.
Não um bruto, um truculento que faria inveja a Tomás de Torquemada (1420-1498), o monstro que gerenciou a Inquisição na Espanha, um dos atos de brutalidade indescritível que integra a dramática história da humanidade nesta terceira pedra do Sol.
Estamos em meio a um impasse. Mais uma vez um impasse neste país que abrigou a mais longeva experiência de escravidão em todo o Ocidente. A escravidão que está nos alicerces da história nacional como uma chaga em decomposição infinita, contaminando o organismo social sem que nenhum medicamento, além da cultura/educação/reflexão, possa pôr fim.
A cultura/educação/reflexão são o tripé de uma democracia estável, indispensável à construção de um futuro promissor. Sem ela, o único à vista, no horizonte e abaixo dele, é a barbárie, a violência e um sofrimento sem fim, o aceno de uma orfandade cósmica, como se os deuses tivessem abandonado para sempre um agrupamento de miseráveis sob as estrelas.
Fico constrangido em não poder oferecer aos demais o chá e o pequeno pacote de lanche que levo para as duas pessoas queridas na fila de uma suposta vacinação, onde um milésimo, exatamente um milésimo das necessidades será atendido. Com frustração dos dois lados. Os que tiveram acesso à imunização levarão para casa um sentimento de culpa, consciente ou não, de que tiveram sorte em meio a uma multidão que não teve.
O que posso fazer para amenizar a dor que trago no corpo quando volto para a casa, com as xícaras rescendendo o chá, o lanche que não foi todo consumido (sei que por um certo constrangimento pelo que pode ter parecido privilégio, não um ato de afeto indispensável).
Tudo que posso fazer é compartilhar minha experiência nesta madrugada fria como sorvete que remete à história para dizer: todo fascismo emerge em meio à glorificação indevida e o entusiasmo sem consistência, para terminar em lágrimas, perdas e dor profunda. E, desta vez, não será diferente.
Imagem: Representação de Canudos, norte da Bahia, onde o sangue humano encharcou a terra ao final de 1897.