Renata Souza, deputada: ‘A revolução será feminista e negra, ou não será’

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Reeleita com 170 mil votos, Renata Souza foi a mulher mais votada para a Alerj: ‘Nossas demandas são urgentes, reais e dizem respeito à sobrevivência e à dignidade humanas’

Por Edu Carvalho, compartilhado de Projeto Colabora




Na foto: Renata Souza: “A violência no nosso estado é dirigida, de modo arbitrário e seletivo, para o povo preto e favelado, que vive em territórios onde a liberdade e a democracia nunca chegaram de fato”(Foto: André Borges/AFP )

Reeleita com mais de 170 mil votos, o que a transforma na mulher preta mais votada, Renata Souza, do PSOL, volta à Assembleia Legislativa do Rio com mais força, conhecimento e vontade de transformar: “Embora não seja fácil, sabemos que a nossa atuação consegue fazer a diferença. E isso acontece porque a luta é coletiva, é construída para muito além dos limites da institucionalidade, em articulação com os movimentos sociais organizados”. Seus temas de trabalho (combate ao racismo, enfrentamento das violências e criação de políticas voltadas às mulheres) vão na contramão da maioria, apesar de a oposição ter aumentado sua presença na Casa: “A Alerj seguirá majoritariamente machista, racista, LGBTIfóbica e elitista”

Em entrevista ao #Colabora, Renata – 40 anos, formada em Jornalismo, com doutorado em Comunicação e Cultura, e chefe de gabinete da vereadora Marielle Franco  na Câmara – fala com franqueza sobre violência, feminismo, racismo estrutural e representatividade: “Nossas demandas são urgentes, reais e dizem respeito à sobrevivência e à dignidade humana”.

#Colabora – Em 2018, você foi eleita com 64 mil votos. Agora, conquista a vitória com mais de 170 mil eleitores. Você vê um amadurecimento da sua trajetória política, e por sua vez, um conhecimento ainda maior da população?

Renata Souza – Sim, certamente. Em 2018, a decisão pela candidatura foi tomada em um contexto emergencial, de trauma mesmo. A candidatura foi uma resposta necessária ao feminicídio político de Marielle Franco, minha amiga e companheira de lutas desde muito jovem. Marielle havia sido eleita vereadora em 2016 com 46 mil votos no contexto de um fenômeno nacional de ascenso do movimento feminista negro na ocupação do espaço da política. A eleição das sementes de Marielle foi uma forma de dizer que ela não seria interrompida, que não seríamos interrompidas nesse processo histórico. Novamente assumi uma tarefa não planejada em 2020, quando fui candidata à prefeita, no lugar de Marcelo Freixo, que havia então desistido de concorrer. Apesar dos fatores adversos, foi uma experiência de crescimento e de amadurecimento. Saí dessa campanha mais conhecida e mais votada do que quando entrei, inclusive na Zona Norte e não somente nos redutos eleitorais tradicionais da esquerda, localizados na Zona Sul. A nossa candidatura traz um elemento central na popularização das pautas e do perfil do PSOL.

#Colabora – Qual é o sentimento de ter sido escolhida por 5.249 pessoas diretamente de onde você nasceu, a Maré?

Renata Souza – Como cria da Maré, o meu sentimento é de amor imenso e de gratidão à vida por esse significativo reconhecimento de um trabalho que é a minha luta da vida inteira, em defesa das vidas negras e faveladas, em especial das mulheres pretas, das crianças, da juventude, das pessoas LGBTQIA+, do povo de axé. Ter sido a mais votada na Maré é um resultado muito expressivo em um território com cerca de 140 mil habitantes, dos quais 55% são mulheres e 62% são autodeclarados negros, segundo o Censo da Maré de 2011.

A violência policial é a realidade cotidiana para quem vive na maior favela do estado. Costumo dizer que essa violência é – assim como a fome, o desemprego, o déficit de moradia e a falta de saneamento – expressão cruel da pobreza. Porque essa violência não se manifesta do mesmo modo em regiões onde vive a população de melhor condição financeira.

Renata SouzaDeputada estadual reeleita

Precisamos levar em consideração que essa votação representa a superação de muitas dificuldades relacionadas a uma campanha feita numa favela atravessada por violência, inclusive do próprio Estado, por clientelismo e fisiologismo políticos, e por outras práticas de disputa nada éticas da velha direita e da extrema direita bolsonarista. Apesar disso tudo, tivemos esse resultado maravilhoso. Meu coração explode de alegria por ver essa votação como indicadora de um importante crescimento da consciência política do eleitor mareense. Essa nossa votação é um recado de que a nossa luta vai ser maior e que não vamos recuar.

Renata Souza caminha na Favela da Maré: "Ter sido a mais votada na Maré é um resultado muito expressivo em um território com cerca de 140 mil habitantes, dos quais 55% são mulheres e 62% são autodeclarados negros". Foto André Borges/AFP
Renata Souza caminha na Favela da Maré: “Ter sido a mais votada na Maré é um resultado muito expressivo em um território com cerca de 140 mil habitantes, dos quais 55% são mulheres e 62% são autodeclarados negros”. (Foto: André Borges/AFP)

#Colabora – Nesse sentido, quais são as pautas a serem trabalhadas e voltadas ao seu território? Dias antes da eleição, o conjunto de favelas chegou a ter uma operação policial que durou horas….

Renata Souza – Sim, nem mesmo às vésperas de uma eleição houve um cessar fogo do Estado na Maré. A violência policial é a realidade cotidiana para quem vive na maior favela do estado. Costumo dizer que essa violência é – assim como a fome, o desemprego, o déficit de moradia e a falta de saneamento – expressão cruel da pobreza. Porque essa violência não se manifesta do mesmo modo em regiões onde vive a população de melhor condição financeira. Podemos também afirmar que essa violência é dirigida, de modo arbitrário e seletivo, para o povo preto e favelado, que vive em territórios onde a liberdade e a democracia nunca chegaram de fato. Por tudo isso, a nossa prioridade é o combate ao racismo estrutural, em suas diversas expressões, numa lógica interseccional, em articulação fundamental com o enfrentamento às violências e violações de direitos de classe, de gênero, de orientação sexual, das liberdades religiosa e de manifestação cultural. Uma bandeira prioritária tem que ser pela aprovação de uma renda básica digna e suficiente para o combate à fome. Já apresentei inclusive um projeto de lei nesse sentido na Alerj. Outra é pelo fim ao genocídio da juventude negra. E compreendemos ainda como pauta cara a nossa luta a própria ocupação do espaço da política pelas mulheres pretas, e o combate à violência política de gênero. Nestas eleições, dos 70 deputados estaduais eleitos, há apenas 5 mulheres pretas. Representatividade importa, em especial com pautas que não negociam o corpo das mulheres e do povo preto.

#Colabora – Para um estado que reelege Cláudio Castro, candidato que aposta numa outra interpretação de segurança pública, como tratar do tema sem que seja vista como “defensora de bandido”?Há um movimento contínuo de crescimento e fortalecimento do feminismo negro de classe. Embora lento e construído na dor de tantas perdas violentas, esse avanço ocorre porque não temos para onde recuar. É por nossas vidas, pelas vidas das nossas crianças, companheiros e companheirasRenata SouzaDeputada estadual reeleita

Renata Souza – Não podemos recuar de nosso programa de defesa intransigente da vida. O desafio é encontrar as melhores formas de expressão sem cair na armadilha da desinformação, que é posta a serviço do racismo estrutural. O bolsonarista campeão de chacinas Cláudio Castro foi eleito depois de reivindicar publicamente a violência do Estado como suposta política de segurança pública. Ora, a história e a ciência já demonstraram o quanto esse discurso é falacioso. A escalada da violência progride na proporção do derramamento do sangue jovem e negro em nosso país. No Rio, depois de mais de três décadas de massacre policial da população favelada, temos o território dominado cada vez mais pelo crime organizado por dentro do próprio Estado. O combate ao crime deveria envolver investigação profunda das teias de poder que não se localizam nas favelas. A ciência, por sua vez, já comprovou que o enfrentamento ao consumo abusivo de drogas não tem nada a ver com polícia, mas com política, com qualidade de vida. Passa pela oferta de perspectivas de futuro para a nossa juventude, do direito de sonhar e de acreditar na possibilidade de realizar os sonhos, de políticas públicas de educação, de saúde, de cultura, lazer, de geração de emprego e renda. Enfim, defendo a política da igualdade na valorização de toda e qualquer vida humana.

#Colabora – O perfil da Alerj pós-eleições apresenta pouca renovação (46% dos 70 deputados). Como prevê o trânsito e o debate de ideias com o parlamento?

Renata Souza – Não considero tão baixo um índice de 46,7% de renovação. O problema não está no índice propriamente dito; está, sim, na qualidade dessa renovação. Infelizmente, o que vimos foi apenas uma substituição de quadros no campo da extrema direita e no da velha direita. A Alerj seguirá majoritariamente machista, racista, LGBTIfóbica e elitista. Lamentavelmente, nos 21% de deputadas mulheres, nem todas estarão comprometidas com as causas do feminismo de raça e classe que reivindicamos. Dos 70 parlamentares estaduais, teremos apenas 15 deputados localizados na esquerda ou centro-esquerda. Portanto, nunca foi fácil e ainda não será defender as nossas causas nessa Alerj. Vamos seguir no desafio de fazer acontecerem os debates que consideramos necessários e urgentes para uma transformação concreta da realidade do nosso povo, que não aguenta mais essa política que produz a riqueza infame de meia dúzia às custas de tanta miséria e violência contra a maioria da nossa população. Embora não seja fácil, sabemos que a nossa atuação consegue fazer a diferença. E isso acontece porque a luta é coletiva, é construída para muito além dos limites da institucionalidade, em articulação com os movimentos sociais organizados. As nossas demandas são urgentes, reais e dizem respeito à sobrevivência e à dignidade humanas.

#Colabora – A sua eleição, assim como a de Dani Balbi, Verônica Lima e Dani Monteiro mostram que a onda de mulheres pretas na política pode aumentar?

Renata Souza – Acredito que não se trate de uma onda, mas sim de uma demanda historicamente reprimida diante de uma política machista, racista e classista.  Há um movimento contínuo de crescimento e fortalecimento do feminismo negro de classe. Embora lento e construído na dor de tantas perdas violentas, esse avanço ocorre porque não temos para onde recuar. É por nossas vidas, pelas vidas das nossas crianças, companheiros e companheiras. Ocupamos o espaço da política e fazemos dele o nosso quilombismo, nos termos defendidos por Abdias Nascimento, com uma estética e uma ética negra pautada na nossa ancestralidade africana. Não vamos voltar para a senzala. Somos mulheres na luta, em resistência e no enfrentamento a esse modelo de sociedade adoecido, violento, racista, machista e desigual. Construímos hoje as bases de uma futura revolução que será feminista e negra, ou não será.

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