Texto de Renato Janine Ribeiro, filósofo, ex-ministro da Educação no governo Dilma Rouseff
“Algumas pessoas protestando contra os abaixo-assinados e notas de repúdio:
1) Porque são assinadas por pessoas que contribuíram, apoiando o golpe de 2016, para a situação em que hoje estamos;
2) Porque são meras palavras e precisamos de ações.
Bem, eu respondo:
Provavelmente, essas pessoas não viveram a ditadura de 1964, e sobretudo o período de 1968 a 1977.
Somente foi possível pôr fim à ditadura mediante uma ampla aliança, que integrou inclusive pessoas que tinham apoiado o golpe de 1964.
Um dos tribunos mais admirados da luta pela democracia foi o senador Paulo Brossard (RS), que sim apoiou o golpe de 64. Ele falava – e pensava – divinamente.
Se a esquerda ficasse sozinha, com devaneios de pureza, o regime militar teria vivido mais tempo. E mesmo que acabasse caindo de podre, não teríamos a Constituição de 1988, mas provavelmente uma Carta muito conservadora, como a que Pinochet legou ao Chile, e que é um horror, travando até mesmo a possibilidade de ser emendada em pontos fortemente antidemocráticos.
Isso, quanto ao primeiro ponto, acima.
Quanto ao segundo:
Palavras mudam as mentes. É verdade que muita gente está surda, mas se todos os que votaram em Bolsonaro ou repudiaram Dilma estivessem surdos a argumentos e à realidade, então Bolsonaro continuaria com o apoio que teve na eleição. E esse apoio está se esvaziando.
Está-se esvaziando não por causa de palavras apenas, e sim porque a realidade está provando o quanto as pessoas foram enganadas. Mas são as palavras que permitem dar forma aos sentimentos. Uma sensação de desconforto pode ser, pelas palavras, convertida em conhecimento e, depois, em ação.
Além disso, que ações podemos tomar? Não será com batalhas campais que derrubaremos a semiditadura em que vivemos. Não será pela força que restauraremos os direitos humanos e os valores que estão nos artigos iniciais da Constituição.
Lembro dom Helder Câmara, na ditadura, falando na TV francesa o que dizia àqueles que pretendiam lutar com armas na mão contra a ditadura:
– Armas eles têm, de armas eles entendem. Onde nós somos bons é nas ideias e nos argumentos.
Não vamos minimizar o poder do pensamento. Mas lembrando que as palavras e as ideias só funcionam na prática quando dão nome à percepção da realidade, Ou seja, palavras descoladas da realidade ou de sua percepção não vão convencer ninguém.
Por isso, falar somente para quem concorda conosco não adianta nada.
Para cair a ditadura, houve milhares de abaixo-assinados, notas de repúdio, protestos.
Vou contar uma história: eu era um professor recém-contratado na USP, em 1977 ou 78, e estava num debate ao lado da Marilena Chaui, que foi minha professora (no colegial e na faculdade). Alguém me passou um texto para eu entregar a ela, entreguei e ela assinou sem nem ler… Avisei: “Marilena, é um texto para você”. Ela riu: “Renato, pensei que era um abaixo-assinado”.
E ela tinha razão (além de eu ficar satisfeito de ver que confiava em mim a ponto de assinar sem ler o que eu lhe passei…)”