A renúncia de Pezão

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Por Beatriz Vargas Ramos em Brasil 247 – 

O governador Pezão pediu intervenção federal na segurança pública do Rio de Janeiro. Em outra versão, ele teria solicitado uma interferência menos drástica, mas acabou concordando com a proposta de intervenção. Numa terceira versão, a ideia nem sequer teria partido dele, porém, foi convencido a aceitá-la. Certo é que o decreto de intervenção foi assinado. O acordo deixou de fora o Conselho da República e vai passar pela apreciação do Congresso Nacional.

Alan Santos/PR

Pezão falou à imprensa que vem pedindo apoio do governo federal desde abril de 2014. Argumentou, de público, que “não foi trivial” o que a polícia teve de enfrentar. Não, não foi o roubo, a violência, o tiroteio. Foi urina no metrô e “invasão” de bloco de foliões na área pública do aeroporto Santos Dumont – o que, vale lembrar, aconteceu sem dano material e sem afetação da rotina de operações locais. Foi também “a desordem urbana”, as barracas nas praias de Ipanema e do Leblon, uma “grande ocupação de pessoas ali acampadas”, segundo o governador ausente – estava em Piraí/RJ, com “todo direito, em sua casa, a uma hora e meia da capital”. Disse que foram mais de 200 blocos que saíram sem autorização. “Isso fugiu mesmo ao nosso controle”, admitiu. E arrematou: “não me diminui nada o fato de ficar sujeito, na área de segurança, ao general Braga Netto”. O governador esconde o verdadeiro motivo da intervenção.




Michel Temer decretou a medida com base no inciso III, do art. 34, da Constituição da República, e já advertiu, “farei cessar a intervenção, no instante em que se verifique, segundo os critérios das Casas Legislativas, que há condições para votação” – trata-se da votação de sua proposta, já reformada, de reforma da Previdência. Pura demonstração de poder. Um recado ao Congresso Nacional, aos governadores todos e ao próprio judiciário. Estabelece vinculação – desnecessária? – entre “condições para votação da reforma” e continuidade ou cessação da intervenção. Se a intervenção pode cessar por motivos distintos ao que lhe deu causa, onde está, afinal, o alegado “grave comprometimento da ordem pública” que a fundamenta? O “grave comprometimento da ordem pública” termina quando houver maioria para aprovação das mudanças nas regras da Previdência Social.

Para completar o quadro, o prefeito Crivella, ainda em férias na Europa, limitou-se a agradecer e a parabenizar Michel Temer pela “ajuda ao Rio”, lamentando que a intervenção não tivesse sido decretada antes, quando ele já havia pedido – em setembro do ano passado, na ocasião do Rock in Rio.

Entre o desafio de compreender o que deve ser considerado “não trivial” durante o reinado de Momo (ou o que pode ser considerado aceitável no quotidiano da guerra em que se transformou a segurança pública no Rio) e o exercício analítico para decifrar o que serviu de motivo para o governo federal decretar a medida e, enfim, a perplexidade diante do “asilo europeu” do prefeito, em momento ultrassensível para qualquer teste de segurança pública, fica a certeza de que os governos do MDB (até ontem, PMDB) fracassaram completamente na gestão da segurança pública do estado. Neste carnaval, governador e prefeito fora da cidade. Ausência que, a rigor, não é novidade. “Falha (da segurança) nos dois primeiros dias (do carnaval)”, segundo o próprio Pezão, reforço de policiamento na sequência, admissão de erros e despreparo.

Os argumentos do governador se comunicam com o medo da classe média alta, algo simbolizado por “acampamentos” na zona sul, “invasão” no aeroporto ou pela intensa vazão do fluido excretório sobre vagões do transporte privatizado, caro e ineficiente que o trabalhador tem de suportar no dia-a-dia da batalha pela sobrevivência. Alguma coisa está fora do lugar, mas não é a bala perdida de um fuzil que atinge a criança no ventre da mãe. Para o tenente-coronel do Exército, Durval Lourenço Pereira, o fundamento da intervenção é bem outro: “neste mês de fevereiro, a escalada da violência no Rio de Janeiro atingiu níveis inauditos”, quando três das principais linhas de transporte da capital tiveram de ser fechadas por causa de tiroteios entre polícia e traficantes (Folha de S.Paulo, 17/02/2018 – “O Haiti não é aqui”).

A violência no Rio de Janeiro é real e assombrosa, mas não é maior do que a registrada em outros estados brasileiros. Em 2016, a taxa por 100 mil habitantes de mortes violentas intencionais (MVI), categoria que abarca homicídio doloso, roubo com morte, lesão corporal seguida de morte e mortes decorrentes de intervenções policiais, em serviço ou fora dele, foi de 64 em Sergipe, 56,9 no Rio Grande do Norte, 55,9 em Alagoas e de 50,9 no Pará. Para o Rio de Janeiro, a taxa foi de 37,6, ainda menor que a do estado de Pernambuco, Acre, Goiás e Ceará (dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2017, Fórum Brasileiro de Segurança Pública – FBSP). É disso que fala Arthur Trindade, coordenador do Núcleo de Estudos sobre Violência e Segurança da Universidade de Brasília – NEVIS/UnB, ao lembrar que “o Rio de Janeiro não tem a pior situação de homicídios no Brasil”. Por isso, segundo ele, “não foram critérios relacionados a crimes e homicídios” que podem ter determinado a medida de intervenção. Para o professor da UnB, “o que dá notícia é dizer que morreu gente no carnaval do Rio e não no carnaval de Juazeiro” (Deutsche Welle Brasil, entrevista, 16/02/2018). Sim. O Rio é a “cobaia na vitrine” para os experimentos eleitoreiros do desgoverno federal e do MDB.

Sem dúvida alguma, em tempos de pós-verdade, o sucesso das operações de intervenção no palco da cidade do Rio vai depender, em boa medida, da cobertura e dos holofotes da mídia dominante. Ao menos até o mês de outubro. Finda a intervenção ou passadas as eleições, tudo voltará ao statu quo ante. O Exército não é órgão gestor da política de segurança interna e não tem legitimidade democrática para colocar em execução um projeto de administração pública nessa área. E o Exército, óbvio, é o primeiro que não aceita esse papel. Sabe que sua presença é provisória, temporária, de curto prazo. Uma intervenção federal dessa natureza vai, por exemplo, reduzir confrontos entre facções do tráfico, diminuir o tiroteio, apreender fuzis. “Vai espalhar as baratas” – disse a professora Jaqueline Muniz, da Universidade Federal Fluminense. Pode representar uma trégua e melhorar a percepção de segurança da população, mas não é gestão de segurança, não substitui o governo eleito para o cumprimento dessa função. Por isso é importante chamar atenção para o fato de que o acordo democrático foi gravemente rompido pelo governador do estado do Rio. O povo não o elegeu para recusar as responsabilidades do cargo. É grave a situação do Rio, mas não é verdade que está além da possibilidade de governo, da capacidade de controle da administração pública. Pezão já renunciou, de fato, ao mandato de governador do Rio de Janeiro.

Um projeto de governo para a segurança, desde que houvesse vontade política e lealdade ao compromisso assumido com o povo fluminense, deveria contar com a atuação conjunta de especialistas, inteligência policial, gestores e movimento social. Deveria articular ações do sistema de justiça (juízes, promotores e defensores públicos) e da administração da cidade. Incorporar o sistema educacional, o sistema de saúde, transporte, moradia, saneamento. Nenhum projeto, entretanto, terá êxito, se não envolver mudanças na estrutura policial, com enfretamento direto da corrupção e do tráfico de armas e drogas no interior das corporações policiais. O que define o crime organizado é exatamente a participação de agentes do Estado – se há crime organizado no Rio é porque há envolvimento desses agentes. No Rio, como na maioria dos demais estados brasileiros, o Ministério Público não tem exercido de forma adequada o seu papel de controle externo da atividade policial. O “combate à corrupção”, foco preferencial de atuação do MP, não chegou às polícias.

Há muito que não se pensa a segurança pública fora da lógica da troca de tiros. Nas prisões – superlotadas – estão os jovens pobres, quase todos pretos, atraídos pelo negócio lucrativo do tráfico de drogas, enquanto que o homicídio e o estupro não são sequer investigados de forma razoável. A guerra entre facções do tráfico, a criminalidade e a violência policial são apresentadas como algo que está fora do alcance de uma gestão típica de segurança pública – essa é a desculpa de Pezão. Daí o apelo constante e generalizado ao emprego do Exército em questões de ordem pública. O general Villas Bôas, no final do ano passado, manifestou preocupação com a “utilização excessiva” dos militares para cumprimento de ações que competem aos governos locais. “Só no Rio Grande do Norte, as Forças Armadas já foram usadas 3 vezes em 18 meses”. E arrematou o general: “a segurança pública precisa ser tratada pelos estados com prioridade zero” – o que certamente quer dizer alguma coisa antes da prioridade número um. Agora, no entanto, a situação é diferente. A medida é ainda mais forte. Não se trata de parceria ou de compartilhamento dessas ações, mas de uma intervenção, a primeira desde 05 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição em vigor. O general Braga Netto passa a exercer o controle operacional de todos os órgãos estaduais de segurança pública. Ele sabe dos riscos envolvidos. Riscos para a população, sobretudo para os jovens pobres e negros das comunidades e para os próprios militares. Não há argumento que justifique a continuidade da utilização do Exército no controle da segurança pública dos estados. Não é mais possível aceitar as desculpas dos governadores, as vistas grossas dos juízes e a omissão dos promotores de justiça em relação aos abusos e à violência policiais. Numa palavra, falta governo.

Vem a lembrança da fala de Torquato Jardim, em outubro do ano passado, que gerou fortes reações. Entre outras afirmações, o ministro da justiça disse que o comando da PM no Rio está associado ao crime organizado; que a PM do Rio faz “acerto com deputado estadual e o crime organizado e que comandantes de batalhão são sócios do crime organizado”. Na ocasião, um dos mais veementes críticos de Torquato Jardim foi o então presidente da Assembleia Legislativa do Rio, Jorge Picciani, atualmente preso por suposto envolvimento com esquema de corrupção “monumental” – segundo a subprocuradora geral da República, Cláudia Sampaio Marques. Vale perguntar: quando é que as investigações chegarão às cúpulas da PM do Rio? A intervenção federal terá alguma coisa a dizer sobre isso?

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