Por Liam Kennedy* – The Conversation, compartilhado de Projeto Colabora –
Apesar do interesse global pelas eleições americanas, pesquisas mostram que imagem do país nunca foi tão desfavorável no exterior
A eleição presidencial dos Estados Unidos sempre atrai intenso interesse mundial, em parte devido ao espetáculo, mas também porque a liderança do país mais poderoso do mundo tem uma influência significativa nos assuntos internacionais. É também um momento de imenso poder cultural que amplia a importância global dos EUA.
Enquanto os líderes políticos e especialistas em política assistirão às eleições pelo prisma de seus interesses estratégicos, a maior parte do mundo observará com uma sensação mais nebulosa que o destino do mundo está de alguma forma em jogo. Para o bem ou para o mal, em todo o mundo as pessoas tendem a ver os Estados Unidos pela figura de seu presidente. Este é certamente o caso de Donald Trump, cuja celebridade global serviu para amplificar os sentimentos sobre os EUA.
A eleição de 2020 se alinha simbolicamente com uma mudança de paradigma na ordem mundial, uma desmontagem do domínio ocidental e mais particularmente americano. O que está em jogo aqui é a ideia dos Estados Unidos como a nação líder mundial, uma ideia que moldou fortemente o “século americano” e agora está se dissolvendo rapidamente.
As percepções globais dos Estados Unidos são monitoradas regularmente pelas principais organizações de pesquisa, como o Pew Research Center e o Gallup. Existem também inúmeras pesquisas regionais e nacionais que buscam informações sobre a reputação e influência dos Estados Unidos. Por quase todas as medidas quantitativas, a posição global dos Estados Unidos despencou desde a eleição de Trump e esta espiral descendente está frequentemente associada à sua liderança.
Um estudo do Pew em setembro de 2020 observou que o número de países com uma visão favorável dos EUA é o mais baixo desde que o Centro de Pesquisas começou a pesquisar este tópico há quase duas décadas. A pesquisa mostrou classificações de “confiança no presidente dos EUA” variando de um mínimo de 9% na Bélgica a um máximo de 25% no Japão.
Desilusão europeia com Trump e os EUA
Pesquisas internacionais vinculam o declínio da confiança na liderança americana ao tratamento equivocado de Trump com a pandemia do coronavírus, tanto nacional quanto internacionalmente. Medir essas percepções quantitativamente dá muito espaço para erros, mas é difícil negar que a escala e a consistência dessas pesquisas são indicadores da imagem difamada e empobrecida dos EUA no mundo de hoje.
Essa sensação de diminuição do apelo americano aos olhos do mundo é evidente não apenas nas pesquisas, mas também na cobertura da mídia global dos EUA. Isso não é surpreendente, dadas as imagens de turbulência doméstica que viajam rapidamente em tempo real: cenas de trabalhadores da saúde sobrecarregados, de manifestações massivas sobre os assassinatos de afro-americanos pela polícia, de vigilantes armados desafiando as ordens sobre a pandemia e de incêndios florestais na Califórnia.
O primeiro debate presidencial provocou choque e consternação na mídia internacional. Foi descrito como um “espetáculo caótico e virulento” (El Pais, Espanha), como “luta de lama” (The Times of India), como “uma piada, um ponto baixo, uma vergonha para o país” (Der Spiegel, Alemanha) , como uma “humilhação nacional para a América” (The Guardian, Reino Unido), e como evidência da “recessão da influência dos EUA e de seu poder nacional” (Global Times, China).
Desde 2016, a mídia na Europa tem noticiado um sentimento generalizado e crescente de desilusão europeia com os EUA, centrado em Trump, mas também apontando para uma aceleração do declínio americano. Em artigo no Irish Times em abril, o editor e jornalista irlandês Fintan O’Toole observou: “É difícil não sentir pena dos americanos … O país que Trump prometeu fazer grande novamente nunca em sua história pareceu tão lamentável”. O escritor birtânico Simon Kuper, do Financial Times, fez uma observação semelhante em outubro: “a atitude europeia em relação aos americanos está mudando da inveja para a compaixão”.
O fim do século americano
Na base desta mudança nas percepções globais – e especialmente ocidentais – sobre os EUA está um desinvestimento profundo, mas pouco coerente, do governo Trump na fantasia da “América” como uma potência liberal e redentora, que age em nome de um bem comum global. Isso perdurou por muitas culturas políticas e populares nacionais desde o fim da segunda guerra mundial e, até recentemente, foi alimentado pelo soft power e pela cultura popular americana. É uma fantasia que dramatiza e idealiza narrativas americanas – o exemplo comum sendo “o sonho americano” – e faz da “América” uma tela para desejos e descontentamentos globais.
Os EUA têm funcionado há muito tempo como um espelho global com muitas nações vendo-os como ideal da modernidade e medindo seu “progresso” em comparação com essa imagem. Fascínio e desprezo estão ligados nesta fantasia. Depende do que é conhecido, mas não pode ser reconhecido: o medo e o desejo pelo poder americano. Fornece a outras nações o bálsamo de poder invocar a hipocrisia dos EUA no uso indevido de seus poderes – hipocrisia que geralmente é medida pela distância entre a retórica do poder brando americano e as ações do tal poder brando.
Houve um tempo em que os EUA alimentaram essa fantasia. Quando o editor da revista Henry Luce publicou seu famoso ensaio The American Century (O Século Americano) em 1941, na véspera da entrada dos Estados Unidos na segunda guerra mundial, ele fez uma declaração de missão da singularidade americana. O ensaio expressou uma visão do poder político, econômico e cultural dos EUA, de um EUA proeminente que lideraria o mundo do pós-guerra por seu exemplo no avanço dos ideais democráticos, da livre empresa e do “modo de vida americano”. Foi uma visão convincente da hegemonia americana que uniu o nacionalismo e o internacionalismo no interesse da liderança global.
A fantasia está se desfazendo rapidamente à medida que o século americano chega ao fim. Isso coincidiu não com o século 20, mas mais claramente com o período entre o início da Guerra Fria e a atual implosão da ordem mundial liberal. Nos últimos anos, o declínio relativo dos Estados Unidos tem sido muito observado à medida que um “mundo pós-americano” emerge, e o nacionalismo, particularmente uma agenda “America First”, substituiu o internacionalismo na política externa americana.
Poder cultural
Muitas pesquisas internacionais nos últimos anos sugerem que os EUA estão perdendo seu poder de comunicação e não são mais vistos como um farol cultural ou político. A medida mais comum dessa percepção é a afirmação de que o soft power americano, entendido como o poder de atrair em vez de coagir, foi muito reduzido, até porque Trump e sua administração o rejeitaram como irrelevante para a promoção do “America First”.
Enquanto os liberais americanos se preocupam com a perda do apelo cultural global da América em termos de poder brando, eles se agarram a uma concepção crua de como os processos culturais funcionam e do impacto que eles têm. O poder cultural assume muitas formas e os Estados Unidos continuam a fornecer influência cultural e política em todo o mundo, embora não necessariamente moldados pelo cargo de presidente ou pela diplomacia do Departamento de Estado. Um exemplo recente é o impacto global dos protestos por justiça racial e a expansão internacional do movimento Black Lives Matter.
Ao longo de junho de 2020, as pessoas tomaram as ruas em todo o mundo em resposta aos protestos nos Estados Unidos provocados pela morte de um homem negro, George Floyd, enquanto estava sob custódia de polícia. Expressões de solidariedade foram a característica mais comum dos protestos, mas também invariavelmente se conectaram e expressaram questões locais de divisão racial e injustiça. À medida que se transformavam através das fronteiras, os protestos desencadearam ativismo e debates sobre violência policial, discriminação racial, detenção de requerentes de asilo e remoção de monumentos.
Esses protestos e conversas indicam a ressonância simbólica da luta pelos direitos civis norte-americana em todo o mundo. Um acerto de contas nacional com raça nos Estados Unidos pode ajudar a restaurar a autoimagem do país e sua posição no mundo.
O mundo não deve subestimar a capacidade de renovação da América, mas também não deve subestimar sua capacidade de auto-ilusão e de empacotar essa crença na singularidade americana como algo a ser vendido ao resto do mundo. Em suma, a morte da fantasia da América como uma potência liberal e redentora não é necessariamente uma coisa ruim – e a eleição de Joe Biden como presidente dificilmente a renovará.
Uma análise profunda da realidade sobre o poder americano, incluindo seu poder cultural, está atrasada. Isso envolve fazer um balanço das maneiras pelas quais os EUA fomentaram uma reação cultural tanto contra a democracia liberal em casa quanto contra a ordem mundial liberal no exterior. Essa reação – colocada de forma crua, o povo contra as elites – ressoa em políticas étnico-nacionalistas e populistas em todo o mundo.
Com o declínio da democracia liberal, estamos em um ponto crítico cultural no Ocidente, onde os oponentes não se alinham nitidamente como esquerda versus direita e onde a política é cada vez mais definida por valores culturais. Parte da importância da eleição de 2020 nos Estados Unidos como um momento cultural global é a dramatização desse ponto de inflexão, colocado entre as forças insurgentes do nacionalismo e as forças residuais do liberalismo.
O mundo estará assistindo, menos fascinado do que com perplexidade e comiseração.
*Liam Kennedy é professor de Estudos Americanos da Universidade de Dublin (Irlanda)