Por Paulo Moreira Leite, Brasil 247 –
Não há motivo de espanto para a recente sequência de mobilizações ocorridas em vários pontos do país, onde uma massa de cidadãos defende Luiz Inácio Lula da Silva, denuncia a tentativa de golpe contra Dilma Rousseff e aponta os abusos do juiz Sergio Moro. Após dois anos de espetáculo judicial, assiste-se a um despertar da consciência democrática da sociedade brasileira, a mesma que no passado produziu momentos inesquecíveis de resistência a movimentos autoritários.
Nascida como uma investigação necessária sobre corrupção na Petrobras que se transformou numa operação contra a democracia, a Lava Jato e os aliados de Sergio Moro enfrentam uma oposição relevante, no plano da luta social, nos meios jurídicos e no centro de poder político. É a primeira vez que isso acontece, desde seu evento inaugural, a prisão do doleiro Alberto Yousseff, seguida do ex-diretor da Petrobras, Paulo Roberto Costa.
Vamos nos entender a esse respeito. Não há dúvida de que, hoje como ontem, Moro segue um magistrado popularíssimo, com blindagem assegurada pela mídia grande, aliada preferencial e indispensável. Nessa condição, amedronta o Legislativo, ameaça o Executivo e muitas vezes intimida os tribunais superiores, inclusive o Supremo, mais alta corte do país.
A diferença é que nas últimas semanas — mais exatamente, depois que Lula foi conduzido coercitivamente a prestar depoimento a Polícia Federal — boa parte dos protagonistas dessa crise passaram a interagir de outra maneira. Ao atingir com brutalidade o mais popular presidente da história — ainda hoje e por larga margem, confirma o Data Folha — a Lava Jato deu a seus adversários um conteúdo popular que não possuíam.
Foi o que também se viu nos protestos — contra Moro e contra a TV Globo – depois que o juiz decidiu manter em segredo de Justiça a relação de 300 políticos incluídos numa lista apreendida num dos escritórios da Odebrecht, com a anunciada presença de várias cabeças coroadas da oposição. Pode até ser correto. Mas chega a ser grotesco, quando se recorda o ambiente de devassa exibido neste período em material usado para incriminar o governo Dilma e o PT. O mesmo raciocínio aplica-se a Globo, que só fez questão de aplicar a cautela e a prudência que deve ser dispensada a toda denúncia quando ela poderia atingir aliados e amigos.
Há outro comportamento no Planalto, também. Depois da caçada descarada contra Luiz Inácio Lula da Silva, que tem como alvo um político que pode ajudar o governo a enfrentar o imenso sufoco no Congresso, Dilma e o governo mudaram de postura. Em vez de tentar reconquistar a simpatia de uma parcela do eleitorado pela lembrança — justa, no exame frio dos fatos — de seu papel na criação de um ambiente favorável às investigações contra corrupção, a presidente tem denunciado abusos contra garantias individuais.
Sentindo-se usurpado nas prerrogativas para julgar casos que envolvem autoridades com direito ao chamado foro privilegiado, o relator Teori Zavaski enquadrou Sérgio Moro numa resolução na qual diz que o juiz era “reconhecidamente incompetente” para liberar grampos telefônicos que envolviam a presidente da República e ministros do Estado.
Ao determinar que as investigações sobre Lula fiquem sob guarda do Supremo, Teori assegurou que, ao menos nos próximos dias, o debate sobre a posse de Lula na Casa Civil possa vir a ser feito pelo Supremo num ambiente de tranquilidade, distante da tensão permanente criada por decisão liminar de Gilmar Mendes, que não só impediu a nomeação mas enviou o caso para Sergio Moro, facilitando, na prática, novas pressões contra o ex-presidente.
A reação dos brasileiros também envolve uma mudança no ambiente intelectual do país. Indignado entre vozes que louvam ilegalidades e atos arbitrários em nome do combate a corrupção, dois dias depois do protesto de 18 de março o colunista Janio de Freitas, da Folha de S. Paulo, abriu um debate necessário sobre a Lava Jato. Ele colocou num ponto essencial.
Escreveu: “A corrupção é um crime, como é um crime o tráfico de drogas, como o contrabando de armas é crime, como criminoso é –embora falte a coragem de dizê-lo– o sistema carcerário permitido e mantido pelo Judiciário e pelos Executivos estaduais. Mas ninguém apoiaria a adoção de um regime autoritário para tentar a eliminação de qualquer desses crimes paralelos à corrupção. “
Num raciocínio semelhante, o professor Wanderley Guilherme dos Santos escreveu que a Lava Jato coloca o país numa situação de chantagem: “É falsa a tese de que o Judiciário se sobrepôs ao Executivo e ao Legislativo. A verdade aterradora é que um grupo de procuradores e juízes-bomba acuou as três instituições da ordem democrática usando a chantagem de se auto explodir, instalando, no ato, o estado natural da desordem.”
Para Wanderley Guilherme, cabe reconhecer que essa situação estimula movimentos de caráter fascista, que dão sinal de vida em várias partes da Europa. “Não é recente a revelação das sementes fascistas de parte da opinião pública brasileira. O fenômeno é consubstancial às sociedades capitalistas, e só contido por condições econômicas favoráveis e instituições democráticas vigilantes. À intolerância do irracionalismo sucumbem todos os países, se a oportunidade se lhe oferece, como o provam os péssimos espetáculos contemporâneos das civilizadas sociedades nórdicas, pós-crise de 2008.”
A questão é a defesa da democracia. A boa notícia é que um número cada vez maior de brasileiros já percebeu isso.