‘Resistir às incertezas é parte da Educação’, diz Edgar Morin

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Por Audrey Furlaneto, publicado no Portal de O Globo – 

No Rio para um congresso sobre o tema, o sociólogo francês de 97 anos fala ao GLOBO sobre o papel da Educação em tempos de crise

O sociólogo Edgar Morin, em hotel em Ipanema: o francês está no Rio para participar de congresso sobre Educação socioemocional Foto: Ana Branco / Agência O Globo
O sociólogo Edgar Morin, em hotel em Ipanema: o francês está no Rio para participar de congresso sobre Educação socioemocional Foto: Ana Branco / Agência O Globo

RIO – Aos 97 anos, o francês Edgar Morin está instalado num banco no topo de um hotel com vista para a praia de Ipanema, ao lado da socióloga Sabah Abouessalam Morin , com quem é casado há dez anos. Ele está no Rio para participar do 3º Congresso Socioemocional Liv , que o escalou para uma palestra amanhã, às 15h30, no hotel Windsor Oceânico, na Barra. Um dos maiores sociólogos vivos, Morin foi convidado pelo evento de Educação a falar sobre “a relação entre a razão e a emoção no pensamento complexo”.

Autor de mais de 30 livros, entre eles títulos canônicos como “O Método” ou “Os Sete Saberes Necessários para a Educação do Futuro”, Morin desacelerou as viagens nos últimos anos, recolhido à vida emMontpellier , no Sul da França , mas decidiu cruzar o Atlântico para visitar o Brasil , onde, como conta, gostaria de ter morado.

— Ele não veio foi porque eu não podia — interpela Sabah, ao lado do marido que, antes, por mais de 40 minutos, havia discorrido, ora em francês, ora em espanhol, sobre os desafios da Educação em tempos críticos, mas driblara temas da política local, como o contingenciamento de verbas do Ministério da Educação ( MEC ) para as universidades federais.




Se em meio às eleições brasileiras no ano passado Morin chegou a assinar um manifesto de repúdio ao então candidato Jair Bolsonaro, agora ele recua:

— Acabei de chegar, não posso falar do presidente — ponderou o sociólogo algumas vezes durante a conversa.

Ao seu lado, Sabah, indignada, interrompe:

— Edgar, se você não falar sobre a política no Brasil, eu vou me divorciar esta noite!

Sabah Abouessalam Morin, socióloga, casada com Edgar Morin há dez anos Foto: Reprodução/Twitter
Sabah Abouessalam Morin, socióloga, casada com Edgar Morin há dez anos Foto: Reprodução/Twitter

Ele reclama:

— Mas eu falei! Falei sobre o contexto mundial, mas acabei de chegar. Deixem eu entender…

A socióloga, enérgica, interrompe outra vez o marido:

— Shhh! ( pedindo silêncio ) É preciso falar, Edgar! É importante!

Ele tenta convencê-la:

— Escute: eu cheguei aqui há dois dias, deixa eu me aprofundar. Eu sou contra o sistema autoritário, repressivo, mas não posso fazer um diagnóstico se eu acabei de chegar.

Ela, então, esbraveja:

— Sinto muito, Edgar, mas um pensador não precisa de dois ou três dias para fazer um diagnóstico. Você me desculpa, mas  eu vou me divorciar esta noite se ele não disser algo. ( olhando para a repórter ) Você não vai embora até que ele diga alguma coisa. Edgar ficou doente, eu sou sua mulher e posso testemunhar. Ele ficou doente por duas semanas com o que se passava no Brasil. Os intelectuais brasileiros, de todos os lados políticos, evidentemende não os de direita, procuraram-no. Ele se correspondeu muito com esses intelectuais, falou muito sobre seu desgosto e, ao mesmo tempo, analisou e acompanhou essa mutação. Eu posso te mandar esses registros todos. A cada vez que foi convidado a assinar um manifesto para reagir, Edgar o fez, porque via no Brasil justamente os movimentos de conscientização — diz Sabah, quase sem pausa entre as palavras: —  O Brasil tem uma cultura da resistência, e o país vai resistir, ele resiste já. Nós assistimos a essas mutações em todo o mundo, com as mudanças de paradigma, porque não conseguimos dar uma alternativa à crise. É preciso saber que o que se vive no Brasil, nós também vivemos na Europa. Aqui ou acolá, há o surgimento da política de extrema direita que se articula contra os mecanismos da democracia. Edgar caiu doente! Nós dois não pudemos acreditar que isso estava acontecendo no Brasil. Na Europa, sim, mas no Brasil? Nós não conseguíamos acreditar.

Quando Sabah terminou o discurso, avisou que iria trabalhar no quarto do hotel, enquanto o marido, encerrando a entrevista, recostou-se no banco, fechando os olhos depois de se despedir.

Qual é o papel da Educação hoje?

O papel da Educação é de ajudar os alunos a enfrentar problemas da vida. Isso de uma forma geral, mas sobretudo num mundo em crise. Eu fiz vários livros sobre Eduicação e, para mim, a ideia fundamental é que falta nos programas de Educação alguns temas fundamentais para que as pessoas possam enfrentar problemas da vida.

Que temas são esses?

Em primeiro lugar, a Educação trata de de conhecimento, mas é preciso fazer a pergunta: o que significa conhecer? Porque conhecer pode ser uma armadilha, que guarda ilusões, equívocos, erros. Devemos ensinar aos jovens todas as dificuldades do conhecimento, todas as possibilidades de erro. Por exemplo, uma percepção visual não é uma fotografia, é uma reconstrução com os olhos. As pessoas que estão longe de mim parecem pequenas aos meus olhos, mas na minha mente estão normais. Ou seja, todo conhecimento é uma tradução e uma reconstrução. E, em cada tradução, há possibilidade de erro. É muito importante ensinar a enfrentar o erro. O segundo problema da Educação é a compreensão humana. Não se ensina a compreender o outro. Quando falo do outro, não falo de estrangeiros, de pessoas que falam outra língua ou que são de outro país. Falo de quem está ao seu lado. É muito importante para  a vida compreender esse outro. Então, tem a questão da crise. A crise é um momento de muito mais incertezas que em tempos normais. Há angústias e dificuldades. Na Educação em tempos ditos normais, ensinam-se certezas, e não incertezas. Por exemplo, quando a França era um país ocupado pelos alemães, havia uma situação de incerteza, e era preciso encontar possibilidades de enfrentar isso. Resistir à incerteza é importante.

O senhor costuma dizer que estamos imersos numa crise. Que crise é esta?

Não é unicamente uma crise econômica, aquela que começou em 2008, mas é uma crise de civilização, das relações humanas. É uma crise de mentalidades, uma crise da Humanidade que não chega a se tornar Humanidade porque a globalização criou uma unificação técnica do planeta, mas não fez uma compreensão das culturas. Ao contrário: as culturas se fecharam em si mesmas, quando começou a unificação técnico-econômica. É uma crise generalizada, enfim. É preciso ensinar hoje em dia, as várias características da globalização. Há característas positivas e muito negativas. Uma parte das populações asiáticas ou latino-americanas que saíram da pobreza e passaram à classe média, mas outra parte dos pobres caiu na miséria. O processo da globalização ainda está descontrolado e nos conduz à possibilidade de catástrofe generalizada. Esses problemas precisam estar na Educação. Para onde vamos? Onde estamos, humanos? Hoje em dia é necessário ter consciência de que pertencemos à espécie humana, que tem um destino comum frente a tantos perigos terríveis. Não existe essa consciência, mas o oposto dela. A crise, a angústia fazem com que as pessoas se fecham em suas próprias identidades, etnias, religições, nações. A Educação precisa ensinar essa consciência de pertencimento à Humanidade.

O senhor disse que resistir é importante em tempos de crise. A Educação é uma forma de resistência?

Sim, resistência é um tema fundamental da Educação hoje. Existe uma onda generalizada de retrocessos, uma crise generalizada de democracia em muitos países. É uma degradação do pensamento político que não é nada mais do que uma obediência à economia. Vivemos a destruição da política em proveito da economia. O poder econômico controla a política, e não mais o caminho oposto. Nessa onda de retrocessos, de crise na democracia, há o neoautoritarismo, um novo tipo de poder, como na Turquia, na Rússia, na Hungria e aqui mesmo, no Brasil. A França também corre este perigo, além de outros países. É uma época de retrocessos e devemos resistir. Resistir pelos valores humanistas, resistir pelos ideais de liberdade, igualdade e fraternidade. Temos que manter essa ideia de fraternidade humana, de uma economia solidária, devemos manter uma ideia de, digamos, oásis, outro tipo de vida que não obedeça a poderes econômicos. Isso é resistência.

O senhor citou a Hungria, um país que adotou medidas restritivas na Educação, fechando inclusive universidades. No Brasil, recentemente, o Ministério da Educação bloqueou 30% do orçamento para universidades…

Veja, cada país tem sua especificidade. Há uma tendência em todos os países, sobretudo nesses países autoritários, de se eliminar a cultura humanista em prol da adaptação a uma realidade econômica imediata. Devemos resistir justamente a isso.

No Brasil, o presidente Jair Bolsonaro declarou em abril, no Twitter, que se pretende “descentralizar investimentos em faculdade de filosofia e sociologia (humanas)”, com o objetivo de “focar em áreas que gerem retorno imediato ao contribuinte, como Veterinária, Engenharia e Medicina”. Como o senhor vê isso?

Há uma necessidade vital de salvaguardar as Ciências Humanas e também de não fragmentar a cultura científica e a cultura humanista. O importante é manter a relação entre as duas. Porque a cultura humanista tem o poder da reflexão, da meditação sobre as descobertas da cultura científica. De novo: devemos resguardar todos os saberes.

Qual é a importância da Educação pública?

A Educação pública não pode ter um interferência, não pode ser regida, e, por isso, a princípio, é mais livre. Mas frequentemente perde essa liberdade. O ensino público precisa de uma reforma profunda, mas não há um só país que tenha chegado a uma Educação capaz de contemplar de forma igualitária o pensamento complexo, capaz de relacionar, sem fragmentar, a cultura humanista e a cultura científica.

O governo brasileiro vem defendendo o ensino das crianças em casa, o chamado “homeschooling”. O que o senhor acha desse modelo? E qual é o papel da escola na formação do indivíduo?

A vantagem da escola é que existe uma relação pessoal do professor com os alunos. Se o professor tem a paixão de ensinar, se tem o amor dos alunos… Olha, Platão dizia que, para ensinar, é necessário Eros, quer dizer, amor. A escola dá a possibilidade de relações concretas, e se existe essa paixão, o professor pode ajudar os pequenos a se tornarem adultos mais conscientes. A escola é uma possibilidade de fazer amigos e amigas, e isso é um tesouro que se carrega para toda a vida. Há este elemento que é muito importante na escola como lugar sede da Educação, o de não deixar a criança ilhada, isolada do mundo. Pode-se até ajudar com internet, televisão e outras coisas, mas é fundamental o aprendizado em coletivo.

Numa entrevista recente ao jornal “Le Monde”, o senhor disse que perdeu as ilusões. O que isso significa?

O que eu digo é que ficam comigo todas as aspirações da adolescência, mas não mais as ilusões.

Quais seriam suas ilusões perdidas?

A ilusão de pensar que poderíamos fazer um mundo totalmente novo. Não se pode conseguir um mundo totalmente harmonioso. Sempre haverá a luta entre diferentes forças, os conflitos, as brigas por união, por solidariedade. A luta é permanente, é parte de toda a História humana, não se pode pensar num ponto onde há harmonia total. A sociedade é um misto de ordem e desordem. A ilusão é a perfeição, e estamos num mundo imperfeito. Mas, não esqueçamos, ele pode ser melhorado.

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