Ressurgimento rentista e tomada de controle: Capitalismo financeiro vs. capitalismo industrial

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Por  Michael Hudson, compartilhado de AEPET – 

 O trabalho está sendo explorado crescentemente pela dívida à banca

Marx e muitos dos reformadores menos radicais que lhe foram contemporâneos via o papel histórico do capitalismo industrial como sendo o de remover a herança do feudalismo – os latifundiários, banqueiros e monopolistas que extraíam renda econômica sem produzir valor real. Mas aquele movimento de reforma fracassou. Hoje o setor das Finanças, Seguros e Imobiliário (Finance, Insurance, Real Estate, FIRE) recuperou o controle do governo, criando economias neo-rentistas.

O objetivo deste capitalismo financeiro pós-industrial é o oposto daquele do capitalismo industrial bem conhecido dos economistas do século XIX: Ele busca riqueza primariamente através da extração de renda econômica, não da formação de capital industrial. O favoritismo fiscal para o imobiliário, a privatização do petróleo e da extração mineral, a banca e os monopólios de infraestrutura aumentam o custo de vida e de fazer negócio. O trabalho está sendo explorado crescentemente pela dívida à banca, dívida estudantil, dívida do cartão de crédito, ao passo que a habitação e outros preços são inflacionados com o crédito, deixando menos rendimento para gastar em bens e serviços quando economias sofrem deflação da dívida.




A Nova Guerra Fria de hoje é um combate para internacionalizar este capitalismo rentista pela privatização e financiarização global dos transportes, educação, cuidados de saúde, prisões e policiamento, correios e comunicações, além de outros setores que antigamente eram mantidos no domínio público de economias europeias e americanas de modo a manter seus custos baixos e minimizar seus custos de estrutura.

Nas economias ocidentais tais privatização reverteram o impulso do capitalismo industrial para minimizar custos de produção e distribuição socialmente desnecessários. Além dos preços de monopólio para serviços privatizados, administradores financeiros estão a canibalizar a indústria pela alavancagem da dívida e elevados desembolsos de dividendos para aumentar preços de acções.

As economias neo-rentistas de hoje obtêm riqueza principalmente pela busca de renda, enquanto a financiarização capitaliza a renda imobiliária e monopólica em empréstimos bancários, acções e títulos. A alavancagem da dívida para aumentar preços e criar ganhos de capital sobre crédito para esta “riqueza virtual” tem sido alimentada desde 2009 pela Facilidade Quantitativa (Quantitative Easing) do banco central.

Famílias e indústria estão a ficar afundadas em dívida, devendo renda e serviço de dívida ao setor FIRE. Esta sobrecarga rentista deixa menos rendimento de salários e lucros para gastar em bens e serviços, levando a um encerramento dos 75 anos de expansão dos EUA e da Europa desde o término da II Guerra Mundial em 1945.

Estas dinâmicas rentistas são o oposto do que Marx descreveu como leis do movimento do capitalismo industrial. A banca alemã na verdade financiava a indústria pesada sob Bismarck, em associação com o Reichsbank e os militares. Mas em outros lugares o empréstimo bancário raramente financiou novos meios de produção tangíveis. Aquilo que prometia ser uma dinâmica democrática e em última análise socialista degradou-se em direcção ao feudalismo e à servidão da dívida, com a classe financeira de hoje a desempenhar o papel que a classe dos senhores da terra tinha em tempos pós-medievais.

A visão de Marx do destino histórico do capitalismo: Libertar economias do feudalismo

O capitalismo industrial que Marx descrevia no Volume 1 do Capital está sendo desmantelado. Ele considerava que o destino histórico do capitalismo era libertar as economias do legado do feudalismo: uma classe hereditária de senhores da guerra que impunha uma renda da terra tributária e da banca usurária. Ele pensava que na medida em que o capitalismo industrial evoluísse rumo a uma administração esclarecida, e na verdade rumo ao socialismo, ela substituiria a “usurária” finança predatória, suprimindo o economicamente e socialmente desnecessário rendimento rentista, a renda da terra, os juros financeiros e taxas relativas a crédito improdutivo. Adam Smith, David Ricardo, John Stuart Mill, Joseph Proudon e seus companheiros economistas clássicos analisaram este fenómeno e Marx resumiu sua discussão nos Volume II e III do Capital e no seu livro paralelo Teorias da mais-valia que trata da renda económica e da matemática do juro composto, o qual leva a que a dívida cresça exponencialmente a uma taxa mais alta do que o resto da economia.

Entretanto, Marx dedicou o Volume I do Capital à característica mais óbvia do capitalismo industrial: o impulso para fazer lucros pelo investimento em meios de produção para empregar trabalho assalariado a fim de produzir bens e serviços para vender com uma margem superior ao que pagava ao trabalho. Analisando o valor excedente pelo ajustamento das taxas de lucro para levar em conta gastos com a fábrica, equipamento e materiais (a “composição orgânica do capital”), Marx descreveu um fluxo circular no qual patrões capitalistas pagam salários aos seus trabalhadores e investem seus lucros na fábrica e em equipamentos com o excedente não pago aos empregados.

O capitalismo financeiro corroeu este núcleo da circulação entre trabalho e capital industrial. Grande parte do meio-oeste dos Estados Unidos transformou-se num cinturão de ferrugem. Ao invés de o sector financeiro evoluir para financiar investimento de capital na manufactura, a indústria está a ser financiarizada. A feitura de ganhos económicos financeiramente, primariamente pela alavancagem da dívida, ultrapassa de longe a feitura de lucros pela contratação de empregados para produzir bens e serviços.

A aliança do capitalismo dos bancos com a indústria para promover reforma política democrática

O capitalismo nos dias de Marx ainda continha muitas sobrevivências do feudalismo, mais notavelmente uma classe hereditária de senhores da terra a viverem de rendas da terra, a maior parte das quais era gasta improdutivamente com serviçais e luxos, não para obter lucro. Estas rendas tiveram origem num imposto.

Estas rendas tinham tido origem num imposto. Vinte anos após a Conquista Normanda, Guilherme o Conquistador havia ordenado a compilação do [censo territorial] Domesday Book em 1086 para calcular o rendimento (yield) que podia ser extraído como imposto das terras inglesas que ele e os seus companheiros haviam capturado. Como resultado das exigências fiscais prepotentes do Rei João, a Revolta dos Barões (1215-17) e a sua Carta Magna permitiram aos principais senhores da guerra obter grande parte desta renda para si próprios. Marx explicou que o capitalismo industrial era politicamente radical ao procurar libertar-se do fardo de ter de suportar esta classe privilegiada de senhores da terra, a receber rendimentos sem qualquer base no valor de custo ou do próprio empreendimento.

Os industriais procuravam ganhar mercados através de cortes de custos abaixo daqueles dos seus competidores. Aquele objectivo exigia libertar toda a economia das “faux frais” [falsas despesas] de produção, encargos socialmente desnecessários embutidos no custo de vida e de fazer negócio. A renda económica clássica era definida como o excesso de preço acima do valor de custo intrínseco, este último sendo em última análise redutível aos custos do trabalho. O trabalho produtivo era definido como aquele empregado para criar um lucro, em contraste com os serviçais e criados (cocheiros, mordomos, cozinheiros, et al.) com os quais os senhores da terra gastavam grande parte da sua renda.

A forma paradigmática de renda económica era a renda de terra paga à aristocracia hereditária da Europa. Como explicou John Stuart Mill, os senhores da terra colhiam rendas (e aumentos dos preços da terra) “durante o sono”. Ricardo havia apontado (no capítulo 2 dos seus Princípios de Economia Política e Tributação, de 1817) uma forma parecida de renda diferencial em renda de recursos naturais decorrente da capacidade de minas com teores de minério de alta qualidade para venderem a sua produção mineral de baixo custo a preços estabelecidos pelas minas de alto custo. Finalmente, havia uma renda monopolista paga aos proprietários em pontos de estrangulamento na economia onde podiam extrair rendas sem base em qualquer desembolso de custos. Tais rendas logicamente incluíam juros financeiros, taxas e penalidades.

Marx via o ideal capitalista como libertar economias da classe dos senhores da terra que controlavam a Casa dos Lordes na Grã-Bretanha, assim como legislativos superiores em outros países. Aquele objectivo exigiu reforma política do Parlamento na Grã-Bretanha, em última análise para substituir a Casa dos Lordes pela Câmara dos Comuns (Commons), de modo a impedir os senhores da terra de protegerem seus interesses especiais a expensas da economia industrial britânica. A primeira grande batalha neste combate contra o interesse dos proprietários de terra foi vencida em 1846 com a revogação das Leis do Milho. A luta para limitar o poder dos proprietários de terra sobre o governo culminou com a crise constitucional de 1909-10, quando os Lordes rejeitaram o imposto fundiário imposto pelos Comuns. A crise foi resolvida por uma decisão de que os Lordes nunca mais poderiam rejeitar uma lei de arrecadação fiscal aprovada pela Câmara dos Comuns.

O lobbies da banca contra o setor imobiliário, 1815-1846

Pode parecer irónico hoje em dia que o sector da banca britânico estivesse de todo o coração por trás do primeiro grande combate para minimizar a renda da terra. Tal aliança verificou-se depois de acabarem as Guerra Napoleônicas em 1815, o que terminou o bloqueio francês contra o comércio marítimo britânico e reabriu o mercado da Grã-Bretanha a importações de cereais com preços mais baixos. Os senhores da terra britânicos exigiam tarifas protectoras de acordo com as Leis do Milho – para elevar o preço da alimentação, de modo a aumentar a receita e portanto o valor locativo dos seus haveres territoriais – mas isso resultava em economia de alto custo. Uma economia capitalista com êxito teria de minimizar estes custos a fim de ganhar mercados estrangeiros e, na verdade, defender o seu próprio mercado interno. A ideia clássica de um mercado livre era um mercado livre de renda económica – do rendimento do rentista na forma de renda da terra.

Esta renda – um quase-imposto pago aos herdeiros dos bandos de senhores da guerra que haviam conquistado a Grã-Bretanha em 1066, e bandos vikings semelhantes que haviam conquistado outros reinos europeus – ameaçava minimizar o comércio exterior. Isso era uma ameaça para as classes banqueiras da Europa, cujo mercado era o financiamento do comércio através de letras de câmbio. A classe banqueira ascendeu quando a economia da Europa foi reanimada pelo vasto saqueio do ouro monetário de Constantinopla pelos Cruzados. Aos banqueiros foi permitida uma escapatória para evitar a proscrição à cristandade de cobrar juros, pela tomada deste retorno na forma de ágio, uma taxa pela transferência de moeda de uma divisa para outra, incluindo de um país para outro. Mesmo o crédito interno podia utilizar esta escapatória do “câmbio fictício” (” dry exchange “), cobrando ágio em transacções interna camufladas como transferência de moeda estrangeira, da mesma forma que as corporações modernas utilizam hoje “centros bancários offshore” para fingir que ganham os seus rendimentos em países que não cobram um imposto sobre o rendimento.

Se a Grã-Bretanha se tornasse a fábrica do mundo, isto se demonstraria altamente benéfico para a classe dos banqueiros. (Ele era o seu porta-voz parlamentar; hoje diríamos lobbyist.) A Grã-Bretanha desfrutava de uma divisão internacional do trabalho em que exportava manufacturas e importava alimentos e matérias-primas de outros países especializando-os em commodities primárias e dependentes dos produtos industriais britânicos. Mas para isto acontecer, a Grã-Bretanha precisava de um trabalho a baixo preço. Isso significava baixos custos alimentares, os quais naquele tempo eram as maiores rubricas nos orçamentos familiares dos trabalhadores assalariados. E isto por sua vez exigia acabar com o poder da classe dos senhores da terra de proteger o seu “almoço gratuito” da renda da terra e o de todos os receptores de tais “rendimentos não merecidos”.

Hoje em dia é difícil imaginar industriais e banqueiros de mãos dadas a promover uma reforma democrática contra a aristocracia. Mas aquela aliança foi necessária no princípio do século XIX. Naturalmente, a reforma democrática naquela época só ia até o ponto de remover a classe dos proprietários de terra, não de proteger os interesses do trabalho.

A retórica democrática vazia da classe industrial e banqueira tornou-se evidente nas revoluções da Europa de 1848, onde os interesses instalados se uniram contra a extensão da democracia à população em geral, uma vez que esta última havia ajudado a acabar com a protecção das rendas dos proprietários de terra.

Naturalmente, foram os socialistas que retomaram o combate político depois de 1848. Marx mais tarde recordou a um correspondente que o primeiro ponto do Manifesto Comunista era socializar a renda da terra, mas divertia-se com os críticos da renda no “mercado livre” que se recusavam a reconhecer que existia uma exploração semelhante ao do rentista no emprego industrial da mão-de-obra assalariada. Tal como os proprietários de terra obtinham uma renda da terra superior ao custo de produzir as suas culturas (ou arrendamentos de habitação), também os empregadores obtinham lucros através da venda dos produtos do trabalho assalariado com uma margem de lucro. Para Marx, isso em princípio tornava os industriais parte da classe dos rentistas, embora o sistema económico geral do capitalismo industrial fosse muito diferente do dos rentistas pós-feudais, senhores da terra e banqueiros.

A aliança da banca com o imobiliário e outros setores em busca de renda

Com estes antecedentes de como o capitalismo industrial estava a evoluir nos dias de Marx, podemos ver quão excessivamente optimista ele estava a encarar o impulso dos industriais para se desfazerem de todos os custos de produção desnecessários – todos os encargos que aumentavam o preço sem aumentar o valor. Nesse sentido, ele estava plenamente em sintonia com o conceito clássico de mercados livres, como mercados livres da renda da terra e de outras formas de rendimento rentista.

A teoria económica convencional de hoje reverteu este conceito. Numa distorção orwelliana de duplo pensamento, os direitos adquiridos (vested interests) definem um mercado livre como sendo “livre” para a proliferação de várias formas de renda da terra, chegando ao ponto de dar benefícios fiscais especiais ao investimento imobiliário ausente, a indústrias de petróleo e mineração (renda sobre recursos naturais) e acima de tudo à alta finança (a ficção contabilística dos “direitos adquiridos”, uma expressão obscura para arbitragem especulativa a curto prazo).

O mundo de hoje na verdade libertou as economias do fardo do arrendamento de terras hereditárias. Quase dois terços das famílias americanas são proprietárias das suas próprias casas (embora a taxa de propriedade da casa própria tenha vindo a diminuir constantemente desde os Grandes Despejos de Obama, que foram um subproduto da crise das hipotecas lixo e dos salvamentos (bailouts) de bancos de Obama de 2009 a 2016, que baixaram as taxas de proprietários de casas próprias de mais de 68% para 62%). Na Europa, as taxas de propriedade imobiliária atingiram 80% na Escandinávia e taxas elevadas caracterizam todo o continente. A propriedade da casa própria – e também a oportunidade de comprar bens imobiliários comerciais – tornou-se de facto democratizada.

Mas foi democratizada a crédito. Este é o único modo de assalariados obterem habitação, porque do contrário teriam de gastar a poupança de toda a vida para comprar uma casa. Após o término da II Guerra Mundial, em 1945, os bancos forneceram o crédito para a compra de casas (e para especuladores comprarem propriedades comerciais), concedendo-lhes crédito hipotecário a ser liquidado ao longo de 30 anos, a provável vida de trabalho do jovem comprador de casa.

O imobiliário é de longe o maior sector do mercado bancário. Os empréstimos hipotecários representam cerca de 80 por cento do crédito bancário estado-unidense e britânico. Ele desempenhava apenas um papel menor remontando a 1815, quando os bancos se concentravam no financiamento do comércio e nas transacções internacionais. Hoje podemos falar da Finança, Seguros e Imobiliário (FIRE) como o sector rentista dominante da economia. Esta aliança de banca com imobiliário levou os bancos a tornarem-se os principais lobistas da protecção dos proprietários imobiliários, opondo-se ao imposto territorial que parecia ser a onda do futuro em 1848 face à crescente advocacia no sentido de tributar todos os ganhos de preços e de rendas da terra, para fazer da terra a base tributária como instava Adam Smith, ao invés de tributar o trabalho e os consumidores ou os lucros. De facto, quando o imposto sobre o rendimento dos EUA começou a ser cobrado em 1914, ele incidia apenas sobre os mais ricos Um Por Cento dos Americanos, cujo rendimento tributável consistia quase inteiramente em propriedades e direitos financeiros.

O século passado reverteu aquela filosofia fiscal. A nível nacional, os bens imóveis pagaram quase zero de imposto sobre o rendimento desde a Segunda Guerra Mundial, graças a duas dádivas. A primeira é a “depreciação fictícia”, por vezes denominada de “super-depreciação” (” over-depreciation ” ). Os donos podem fingir que os seus edifícios estão a perder valor, alegando que estão a desgastar-se a taxas ficticiamente elevadas. (É por isso que Donald Trump tem dito que adora a depreciação.) Mas de longe a maior dádiva é que os pagamentos de juros são dedutíveis nos impostos. Os bens imóveis são tributados localmente, com certeza, mas tipicamente apenas a 1% da sua valorização avaliada, o que é menos de 7 a 10% da renda real do terreno [1] .

A razão básica porque os bancos apoiam o favoritismo fiscal para os proprietários é que tudo o que o arrecadador fiscal abrir mão fica disponível para ser pago como juro. Banqueiros hipotecários acabam assim por ficar com a vasta maior parte da renda da terra nos Estados Unidos. Quando uma propriedade é posta a venda e proprietários licitam uns contra os outros para comprá-la, o ponto de equilíbrio é onde o vencedor está disposto a pagar ao banqueiro o valor pleno da renda para conseguir uma hipoteca. Investidores comerciais também estão desejosos de pagar todo o rendimento como rendas para conseguirem uma hipoteca, porque eles são após o ganho de “capital” – ou seja, da ascensão do preço da terra.

A posição política dos chamados socialistas ricardianos na Grã-Bretanha e dos seus homólogos em França (Proudhon, et al.) era a de que o Estado cobrasse a renda económica da terra como a sua principal fonte de receitas. Mas os ganhos de “capital” de hoje verificam-se principalmente no sector imobiliário e financeiro e são virtualmente isentos de impostos para os proprietários de terras. Os proprietários não pagam impostos sobre as mais-valias à medida que os preços imobiliários sobem, ou mesmo sobre a venda se utilizarem as suas mais-valias para comprar outra propriedade. E quando os proprietários morrem, toda a responsabilidade fiscal é extinta.

As indústrias petrolífera e mineira também estão notoriamente isentas do imposto de rendimento sobre as suas rendas de recursos naturais. Durante muito tempo, o subsídio de esgotamento (depletion allowance) permitiu-lhes um crédito fiscal para o petróleo que era vendido, permitindo-lhes comprar novas propriedades produtoras de petróleo (ou o que quisessem) com a sua suposta perda de activos, definida como o valor para recuperar o que quer que tivessem esgotado. Não havia perda real, é claro. O petróleo e os minérios são fornecidos pela natureza.

Estes setores também se tornam isentos de impostos sobre os seus lucros e rendas no estrangeiro utilizando “pavilhões de conveniência” registados em centros bancários offshore. Este estratagema permite-lhes reivindicar a realização de todos os seus lucros no Panamá, Libéria ou outros países que não cobram um imposto sobre o rendimento ou têm mesmo uma divisa própria, mas utilizam o dólar americano para poupar às empresas americanas qualquer risco com câmbios estrangeiros.

No setor petrolífero e mineiro, tal como no sector imobiliário, o sistema bancário tornou-se simbiótico com os beneficiários do rendas, incluindo as empresas que extraem renda monopolista. Já no final do século XIX, o sector bancário e segurador era reconhecido como “a mãe dos trusts”, financiando a sua criação para extrair rendas monopolistas acima das taxas de lucro normais.

Estas mudanças tornaram a extracção de renda muito mais remuneradora do que a busca do lucro industrial – exactamente o oposto do que os economistas clássicos insistiam e esperavam que viesse a ser a trajetória mais provável do capitalismo. Marx esperava que a lógica do capitalismo industrial libertasse a sociedade do seu legado rentista e criasse investimento público em infra-estruturas a fim de reduzir o custo de produção em toda a economia. Ao minimizar as despesas de mão-de-obra que os empregadores tinham de cobrir, este investimento público colocaria em funcionamento a rede organizacional que, a seu tempo (por vezes necessitando de uma revolução, certamente) se tornaria uma economia socialista.

Embora a banca se tenha desenvolvido ostensivamente para servir o comércio externo das nações industriais, ela tornou-se uma força em si mesma minando o capitalismo industrial. Em termos marxistas, ao invés de financiar a circulação M-C-M’ (dinheiro investido em capital para produzir lucro e, portanto, ainda mais dinheiro), a alta finança abreviou o processo para M-M’, ganhando dinheiro puramente com dinheiro e crédito, sem investimento de capital tangível.

O esmagamento rentista nos orçamentos: Deflação da dívida como um subproduto da inflação dos preços de activos

Democratização da propriedade das casas significava que a habitação já não era mais possuída primariamente por proprietários ausentes a extraírem renda, mas sim pelos seus próprios ocupantes. À medida que a propriedade das casas se difundia, novos compradores vieram apoiar o impulso rentista para bloquear a tributação da terra – não percebendo que a renda que não era tributada seria paga aos bancos como juros para absorver a renda de arrendamento até então paga a senhorios ausentes.

Os preços do imobiliário subiram em consequência da alavancagem da dívida. O processo torna ricos os investidores, especuladores e seus banqueiros, mas eleva o custo da habitação (e da propriedade comercial) aos novos compradores, os quais são obrigados a assumir mais dívida a fim de obter habitação segura. Esse custo é também transferido para os arrendatários. E os empregadores, em última análise, são obrigados a pagar à sua força de trabalho o suficiente para que esta cubra estes custos financiarizados de habitação.

A deflação da dívida tornou-se a característica distintiva das economias actuais desde a América do Norte até a Europa, impondo austeridade à medida que o serviço da dívida absorve uma parte crescente do rendimento pessoal e empresarial, deixando menos para gastar em bens e serviços. Os 90% da economia endividada vêem-se obrigados a pagar cada vez mais juros e taxas financeiras. O sector empresarial, e agora também o sector estatal e local, são igualmente obrigados a pagar uma parte crescente das suas receitas aos credores.

Os investidores estão dispostos a pagar a maior parte dos seus rendimentos de rendas como juros ao sector bancário, porque esperam vender a sua propriedade em algum momento por um ganho de “capital”. O capitalismo financeiro moderno centra-se nos “retornos totais”, definidos como rendimentos correntes mais ganhos nos preços de activos, sobretudo para terrenos e bens imobiliários. Na medida em que uma casa ou outra propriedade é valiosa por muito que os bancos emprestem contra ela, a riqueza é criada principalmente através de meios financeiros, pelos bancos que emprestam uma proporção crescente do valor dos activos dados em garantia colateral.

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As alterações anuais do PIB e os principais componentes dos ganhos em preços de activos.
O fato de que os ganhos em preços de activos são amplamente financiados pela dívida explica porque o crescimento económico está a arrefecer nos Estados Unidos e na Europa, mesmo quando o mercado de ações e os preços imobiliários são inflacionados com crédito. O resultado é uma economia alavancada por dívida.

As alterações económicas no valor da terra de ano para ano excedem de longe as alterações do PIB. A riqueza é obtida primariamente através de ganhos em preços de activos (“capital”) na valorização de terras e imóveis, acções, obrigações e empréstimos de credores (“riqueza virtual”), não tanto pela poupança de rendimentos (salários, lucros e rendas). A magnitude destes ganhos de preços de activos tende a apequenar lucros, rendimentos de arrendamentos e salários.

A tendência tem sido de imaginar que o aumento dos preços dos imóveis, ações e títulos tem tornado os proprietários mais ricos. Mas esta subida de preços é alimentada pelo crédito bancário. Uma casa ou outra propriedade é valiosa por mais que um banco empreste contra ela – e os bancos têm emprestado uma proporção cada vez maior do valor das casas desde 1945. Para os bens imobiliários dos EUA como um todo, a dívida tem excedido o capital próprio desde há mais de uma década. A ascensão dos preços imobiliários tornou os bancos e especuladores ricos, mas deixou os proprietários das casas e a dívida imobiliária comercial afundados em dívidas.

A economia como um todo sofreu. Os custos de habitação alimentados pela dívida nos Estados Unidos são tão elevados que se todos os americanos recebessem gratuitamente os seus bens de consumo físico – a sua comida, vestuário, etc – ainda assim não poderiam competir com os trabalhadores na China ou na maior parte dos outros países. Esta é uma das principais razões pelas quais a economia dos EUA está a desindustrializar-se. Assim, esta política de “criação de riqueza” através da financeirização socava a lógica do capitalismo industrial. (continua)

[1] Apresento os gráficos em The Bubble and Beyond (Dresden: 2012), Capítulos 7 e 8, e Killing the Host (Dresden: 2015).

Este artigo é baseado no Capítulo 1 de Cold War 2.0. The Geopolitical Economics of Finance Capitalism vs. Industrial Capitalism (Dresden, ISLET: em impressão; tradução chinesa em 2021). ©

O original encontra-se em michael-hudson.com/…

Fonte: Resistir.Info

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