Mais um instantâneo da coluna “A César o que é de Cícero”, do doutor em Literatura Cícero César Sotero Batista. Nesta clicada, César fala de fotografia, analisando duas fotos de sua infância. A crônica lembra Drummond, sobre sua cidade natal: “Itabira é apenas uma fotografia na parede. Mas como dói!” Nos leva também a Tom Jobim e Chico Buarque em “Retrato em Branco e Preto”: Pra lhe dizer que isso é pecado / Eu trago o peito tão marcado / De lembranças do passado / E você sabe a razão / Vou colecionar mais um soneto / Outro retrato em branco e preto / A maltratar meu coração.
Olha o passarinho!
“O texto de hoje é sobre fotografia, esta forma de arte ao alcance de qualquer um. Não é de se estranhar a possibilidade de qualquer pessoa, sendo ela inapta ou não, ter conseguido tirar ao menos uma bela foto. Não digo isto para desmerecer os grandes fotógrafos, que de fato nos forneceram fotos extraordinárias com seu engenho e paciência. Digo isto porque às vezes uma boa foto está alcance de um clique.
Há algum tempo tenho interesse em fotografia e, para tanto, com o passar dos anos, às vezes mais, às vezes menos, fui lendo Roland Barthes, John Berger e Susan Sontag, grandes autores que tratam do tema. Cheguei a abrir um arquivo com algumas fotos dos fotógrafos que foram citados pelos autores com o objetivo de decorar as paredes brancas e encardidas da minha sala.
Entretanto, como sou uma pessoa que toca diversos projetos simultaneamente, e que muitas vezes sou forçado a seguir os rumos dos acontecimentos, muitos dos quais defavoráveis a quem toca projetos pessoais, este ficou um tanto suspenso no ar, pelo menos por enquanto. Quem sabe, em um futuro próximo eu não adquira alguns livros de fotógrafos da pesada?
Seja como for, um pouco do estilo dos autores se entranhou na minha escrita. Por mais que eu me esforce para escrever em linguagem desanuviada, alguma coisa dos autores fica em mim. Por exemplo, é comum eu comentar nesses modos: “O que me fere”, que é uma forma de me referir ao que me chama atenção na foto para além do arranjo, da composição. “O que me fere”, portanto, pretende ser uma contribuição do meu olhar, da minha sensibilidade, para a pequena obra portátil, rasgo no tempo, que é a fotografia. “O que me fere”, a bem da verdade, é a tradução de “Punctum”, termo em latim que Barthes usa para falar das fotografias que o comovem e para falar da relação extremamente delicada que ele teve com a mãe ao longo da vida. Tanto foi assim que a morte da mãe causou uma tristeza muito profunda em Barthes.
Pois é, eu não quis partir do plano teórico, embora eu tenha um pouco de estofo para falar sobre o assunto. Também não quis demonstrar que a fotografia me interessa a ponto de eu estudá-la. Não quero ser fotógrafo, a não ser amadoristicamente.
Hoje em dia com o advento destas máquinas fotográficas de não sei quanto mil pixels, eu fiquei encabulado com a tecnologia. Só que as fotos me ajudam a resgatar memórias e este é sem dúvida um dos meus assuntos prediletos quando se trata de escrever crônicas.
Eu fui à cata da memória pessoal que pudesse ser resgatada a partir do manuseio de uma fotografia. As que apresento hoje foram recolhidas na casa de meu irmão, sendo portanto de arquivo pessoal. Gosto muito delas porque eu já tinha idade para ter noção de que esse tipo de foto pode apontar para o futuro. Por isso, faço pose, quero sair bem. Não há tanta inocência nem espontaneidade assim. Vamos às fotos? De duas em preto e branco.
Foto 1: “A casa sem forro”
No plano da composição, o que me fere nesta foto senão sua falha de arranjo? Não é possível compreender qual era o objetivo do fotógrafo. Se era para registrar uma pessoa, lamente-se, registrou-se dela apenas o cocuruto, de onde sobressaem cachos talvez infantis. Talvez o fotógrafo quisesse em seu plano retratar os dois fachos de luz que estão ao fundo (pensei que se tratasse de um sinal de igual; outras pessoas reconheceram um sinal de pausa. Sinais dos tempos interferindo na foto). Se a cabeça não aparecesse, penso, seria uma grande foto.
Também me concentro nas madeiras que compõem o telhado. Durante a infância, eu cheguei a me perguntar por que as casas de Alagoas eram assim, sem forro. Naquele tempo não ocorreu que eu estava dormindo em casas de pessoas muito humildes, para quem o progresso da construção civil demoraria a chegar, muito embora e ironicamente falando muitos dos migrantes tenham conseguido emprego na construção civil.
Foto 2: “A paisagem em preto e branco”
Minha mulher disse o seguinte em relação a esta foto: “Parece com aqueles filmes de que você gosta”, referindo-se aos de pé-na-estrada a que de vez em quando eu via. Eu devo estar com a idade da Cecília, minha filha? Não, talvez um pouco mais, uns onze, uns doze anos. Não sei quem tirou a foto, muito provavelmente foi meu pai. É uma foto boa, excelente até, apesar de eu ter quase ficado de fora. Enquadramento tem dessas coisas.
Outra vez, acho que a foto seria ainda melhor se não tivéssemos sido fotografados. Há um belo contraste entre o chão de areia (claro) e o fundo (escuro) de uma natureza indistinguível na foto. Ao centro, um varapau. Ao fundo, uma mureta (um guarda-corpo) de concreto.
Eu me lembro dos Kichutes. A maioria dos alunos tinha pelo menos um par desses calçados. Lembro-me também de que o professor de educação física da Escola Equador, em Vila Isabel, no Rio de Janeiro, onde estudei do quinto ao oitavo ano, encrencava com esses tipos de tênis, que segundo ele poderia causar problemas de coluna e nos tendões de Aquiles, por causa dos laços compridos enrolados ao redor dos tornozelos.
Depois viriam os Rainha Iates, os All Stars, os Nikes e os Rebooks. Para não dizer daqueles tênis que atualmente custam mais do que meio salário mínimo, para oferecerem a ilusão segundo a qual seus portadores são bem melhores que os outros humanos.
Quanto aos cabelos, no início da década de 1980, o pessoal não encrencava com cabelos compridos. Mas quando a gente ia ao barbeiro era para tosar. Atualmente vou ao barbeiro com freqüência, mas apenas para não parecer desalinhado junto aos alunos. Madeixas do ofício. Eu mesmo não gosto de cortar cabelos; se pudesse, não os cortaria de mês em mês pelo menos. Mas os grisalhos dão um trabalho danado. Talvez seja o caso de tosá-los mais uma vez como se fazia na infância.
E o filme? Acaba de passar pela minha cabeça, este cineminha incerto. Fotos em preto e branco são capazes de me seduzir. Talvez minha mulher esteja certa de novo – e ela não costuma errar em suas observações. Talvez esta foto seja uma daquelas que pudessem estar enquadradas em um filme de pé-na-estrada.
Nota: Há um grão de melancolia no texto, por óbvio. Creio que tal fato se deva à chegada de meu aniversário, no dia 17 de junho (52 anos, Pqp!). Por pouco eu não me chamei Antonio.
Sobre o autor
Radicado em Nilópolis, município do Rio de Janeiro, Cícero César Sotero Batista é doutor, mestre e especialista na área da literatura. É casado com Layla Warrak, com quem tem dois filhos, o Francisco e a Cecília, a quem se dedica em tempo integral e um pouco mais, se algum dos dois cair da/e cama.
Ou seja, Cícero César é professor, escritor e pai de dois, não exatamente nessa ordem. É autor do petisco Cartas para Francisco: uma cartografia dos afetos (Kazuá, 2019) e está preparando um livro sobre as letras e as crônicas que Aldir Blanc produziu na década de 1970.