Retrospectiva 2015: entre a flor e a náusea o STF decidiu

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Por Monaliza Montinegro, para o site Justificando – 

“Olhos sujos no relógio da torre:
Não, o tempo não chegou de completa justiça.
O tempo é ainda de fezes, maus poemas, alucinações e espera.
O tempo pobre, o poeta pobre
fundem-se no mesmo impasse.”
(Carlos Drummond de Andrade) [1]




Foi um ano difícil. A crise política, sob o manto das ideologias, acabou ofuscando a rosa da esperança. A difusão da “síndrome do pânico contra a corrupção alheia” contribuiu para que o crédito sumisse e com ele as vendas de bens de maior valor, os investimentos financeiros e a justiça social, catalogada na nossa Constituição Federal. Do outro lado, a ofensiva do novo imperialismo contra os países com viés socialistas faz resgatar o antigo temor ao comunismo. Fez resgatar o pior dos medos quando se fala em política, aquele que fortaleceu a ditadura em nosso país.

O cenário perfeito para que a mídia use e abuse do seu poder de “colonização de massas”. Num processo inverso ao do consumo tradicional, as pessoas passam a ingerir não só os bens de consumo palpáveis, mas também as visões de mundo que lhes são oferecidas pelos detentores de poder, que compram a difusão da informação para vomitá-las ao público através dos meios de comunicações tradicionais.

E neste momento cíclico de desalentos, quem poderia nos defender? Num passado não muito longínquo a credibilidade da nossa Constituição foi depositada na mais alta Corte judiciária, grande responsável pelo filtro da democracia, guardiã da Constituição. Parafraseando Luis Roberto Barroso, a Corte responsável pelo exercício contra majoritário e representativo, por exercer, em nome da Constituição, o importante papel de conter as paixões momentâneas da maioria e assim “assegurar o respeito às regras do jogo democrático e aos direitos fundamentais”, consagrando a representatividade.

Para ilustrar esse enunciado, cabe lembrar, saudosamente, importantes decisões das quais podemos nos orgulhar do Supremo: a vedação ao nepotismo nos três Poderes, consagrada na súmula vinculante de número 13; a ADPF 132 e ADI 4.277, proposta pelo Procurador-Geral da República que reconheceu como entidade familiar as uniões entre casais de igual gênero, ou, até mesmo, podemos lembrar da belíssima conclusão proferida na ADPF 186, que consagrou a necessidade de cotas nas Universidades Públicas.

Foram muitos aplausos e, com muito orgulho, nós, meros juristas, almejando ser “pensadores do direito”, passamos a nos guiar, muitas vezes, sem questionar, pela jurisprudência da Suprema Corte. Hoje, lamentavelmente, ao final de 2015, já não podemos dizer o mesmo. E quando o perfume das paixões do senso comum – tão mais compreensivelmente ludibriadas pelo capital – invadem as portas da corte, faz-se necessário, uma pausa, não só para listar, mas para repensar as piores decisões do 2015. [2]

“Em vão me tento explicar, os muros são surdos.
Sob a pele das palavras há cifras e códigos.”
Carlos Drummond de Andrade

Não vou listar as razões do meu lamento para não me alongar. Fundamentarei minha lástima direcionando cada decisão a um link com as razões dos meus colegas, colunistas do justificando.com, com os quais dividi o pensamento ao longo desse ano e que também transformaram em letras toda a indignação cada vez que aquela Corte chancelou com algum atentado aos direitos fundamentais.

“Preso à minha classe e a algumas roupas,
vou de branco pela rua cinzenta.
Melancolias, mercadorias espreitam-me.
Devo seguir até o enjôo?
Posso, sem armas, revoltar-me?”
Carlos Drummond de Andrade

Inquéritos penais e ações penais em curso como maus antecedentes

No julgamento dos HC 94.620 e HC 94.680, o STF retrocedeu sua posição considerando inquéritos ou ações penais como maus antecedentes, passando por cima do princípio da presunção da inocência. Por pouco não foi alterada a orientação adotada no julgamento do RE 591.054, em 17/12/2014, aquele firmado na véspera de natal com repercussão geral, segundo o qual era vedado considerar inquéritos ou ações penais em curso como maus antecedentes, por força dos princípios da culpabilidade e da presunção de inocência. Na verdade, a orientação em sede de repercussão geral não foi alterada porque os ministros decidiram que aquele não seria o momento para rever a tese que velava pela presunção da inocência, mas firmaram um compromisso para que se afete outro recurso como repercussão geral para fixar nova tese sobre a mesma questão. Oremos!!! [3]

Com a palavra, Juarez Cirino dos Santos [4]

“O sol consola os doentes e não os renova.
As coisas. Que tristes são as coisas, consideradas sem ênfase.
Uma flor nasceu na rua!
Vomitar esse tédio sobre a cidade.
Quarenta anos e nenhum problema
resolvido, sequer colocado.
Nenhuma carta escrita nem recebida.”
Carlos Drummond de Andrade

Furto de bombom e o princípio da insignificância

No julgamento dos Habeas Corpus 123734, 123533 e 123108, o STF perdeu a oportunidade de uniformizar a jurisprudência sobre o princípio da insignificância preferindo deixar margens para prisões arbitrárias em situações nas quais os juízes de instâncias inferiores afastam a aplicação do referido princípio com base na qualificação do delito ou na reincidência do agente, renegando o direito penal do fato, para adotar o direito penal do autor. Quem explica o assunto é Gustavo Ribeiro [5]

“Todos os homens voltam para casa.
Estão menos livres mas levam jornais
E soletram o mundo, sabendo que o perdem.
Crimes da terra, como perdoá-los?
Tomei parte em muitos, outros escondi.
Alguns achei belos, foram publicados.
Crimes suaves, que ajudam a viver.
Ração diária de erro, distribuída em casa.”
Carlos Drummond de Andrade

A entrada forçada em domicílio sem mandado judicial

O STF firmou a tese de que a entrada forçada em domicílio sem mandado judicial, mesmo em período noturno, será considerada lícita quando for amparada em fundadas razões, justificadas “a posteriori”, que possam indicar que dentro da casa estaria ocorrendo situação de flagrante delito. (STF. Plenário. RE 603616/RO, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgado em 4 e 5/11/2015 – repercussão geral- Info 806). Phillippe Watanabe fala sobre o assunto [6]

“Os ferozes padeiros do mal.
Os ferozes leiteiros do mal.
Pôr fogo em tudo, inclusive em mim.”
Carlos Drummond de Andrade

Sobre a flexibilização do conceito de prisão em flagrante

A decisão sobre prisão do Senador Delcídio foi repudiada pelo mundo jurídico por ter sido proferida com fundamento em uma gravação obtida de forma clandestina, sem que tenha havido investigação ou ação penal em curso, fundamentada em um “novo conceito” de crimes permanentes apto a justificar um flagrante continuado mesmo após 20 dias da gravação das conversas, violando, ademais, o princípio da subsidiariedade das prisões com o descarte das medidas cautelares diferentes da prisão (STF. 2a Turma. AC 4036 e 4039 Referendo-MC/DF, Rel. Min. Teori Zavascki, julgados em 25/11/2015 (Info 809). )

Apesar de toda ojeriza que nos causa a corrupção, de todo descrédito que têm os dispositivos que consagram os privilégios dado aos parlamentares, a interferência indevida nos poderes, bem como a insegurança que causa ver as regras do jogo serem modificadas bem na hora em que se joga e o risco que sofrem os direitos fundamentais diante multiplicação de um precedente que viola direitos, não permite que tal decisão seja comemorada. Aliás, só podemos lastimar tamanha insensatez formalizada numa decisão. Aqui, dentre tantas outros brilhantes textos criticando a decisão, duas excelentes escolhas representando nossos colunistas: Gerivaldo Neiva [7] e Roberto Tardelli [8].

Sobre a constitucionalidade das Vaquejadas (julgamento ainda não concluído)

Outra situação na contramão da constituição é o julgamento da ação Direta de Inconstitucionalidade 4.983, ajuizada pela Procuradoria Geral da República contra a Lei 15.299/2013 do estado do Ceará, na qual a vaquejada conta com três votos de diferença para se tornar constitucional, legitimando os maus tratos de animais. Quem vos fala é a ilustre Carolina Salles [9].

“Sento-me no chão da capital do país às cinco horas da tarde
e lentamente passo a mão nessa forma insegura.
Do lado das montanhas, nuvens maciças avolumam-se.
Pequenos pontos brancos movem-se no mar, galinhas em pânico.”
Carlos Drummond de Andrade

Sobre a classificação indicativa nos programas de rádio e televisão

Do mesmo modo, parece estar vencendo o capital das empresas de rádio e televisão sobre a infância de nossas crianças no que se refere a possibilidade de se declarar inconstitucional a “única determinação legal que permite responsabilizar as emissoras em caso de desrespeito à proteção de crianças e adolescentes” em razão da barreira da classificação etária indicativa. Os ministros mostram-se tendenciosos a aceitar o falacioso argumento da “liberdade de expressão”, ignorando pesquisas do mundo inteiro que “confirmam que a exposição precoce a esse tipo de conteúdo é extremamente prejudicial ao desenvolvimento infantil.” Entenda melhor com o texto de Tamara Amoroso Gonçalves [10].

“Dou a poucos uma esperança mínima.
Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego.”
Carlos Drummond de Andrade

Essas duas últimas decisões, embora ainda não concluídas, foram aqui retratadas porque sinalizam a possibilidade de prevalecer no sentido exposto acima. É verdade que outras decisões, com tão grave teor, encontram-se pendentes de discussão naquela Corte. Mas, por acreditar em uma inclinação em sentido oposto por parte da maioria dos ministros, não considero relevante incluí-las nesse rol desastroso, como é o caso da decisão que discute o direito de a Administração Pública efetuar descontos de forma arbitrária no salário dos servidores que estão em greve e também da decisão sobre a autonomia da Defensoria Pública.

Neste ponto da história, felizmente, o ano termina com um lampejo de esperança, que eu transformo em apelo. Chamo atenção não só para aqueles ministros e ministras (que por muito tempo deixaram o ensino jurídico orgulhoso), mas a todos os pensadores e pensadoras do direito por uma postura cada vez mais crítica a qualquer precedente que signifique a violação de direitos duramente conquistados. Para que assim, em 2016, os direitos fundamentais já realizados e efetivados, numa alusão ao princípio da vedação ao retrocesso, retornem a sua condição de direitos constitucionalmente garantidos. Não o faço com um ar de tristeza ou de pessimismo, mas como forma de pedir socorro ao espelho do judiciário, ao espelho da democracia, antes que a fotografia desse espelho saia numa imagem tosca a ser multiplicada. Não podemos permitir que os ânimos mais selvagens possam passar uma borracha sobre tudo que até agora fora conquistado.

E, assim, encerro meu último texto do ano de 2015. Com fé, a qual invoco nas palavras do Ministro Barroso (desde sempre sábias). Palavras de alguém, que, em outra ocasião, assim como um pensador comum do direito, sem a toga que hoje lhe reveste, também esteve do outro lado, acreditando naquela Corte, e consignou com maestria a compreensão de que “as teses justas e corretas podem esbarrar nas reações mais retrógradas, mas um dia elas prevalecem”.

E aos que estão do lado de fora, as últimas palavras de Drummond, que diluídas ao longo desse texto se aglutinam ao final, como a esperança que prossegue em cada voto dissidente, dos ministros que falam pelos que não tem voz, anunciando um tempo novo para a justiça, que rompe aos poucos como os limites impostos pelo asfalto, em nome de um direito que nasce das ruas, como a “rosa do povo”, furando o tédio, o ódio e o nojo:

“Uma flor ainda desbotada
ilude a polícia, rompe o asfalto.
Façam completo silêncio, paralisem os negócios,
garanto que uma flor nasceu.
Sua cor não se percebe.
Suas pétalas não se abrem.
Seu nome não está nos livros.
É feia. Mas é realmente uma flor.
É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio.”
Carlos Drummond de Andrade

Monaliza Maelly Fernandes Montinegro é Bacharel em Direito pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte; Analista do Seguro Social com formação em Direito; Aprovada no concurso da Defensoria Publica do Estado da Paraíba.

REFERÊNCIAS
[1] Andrade, Carlos Drummond de, 1902-1987. A rosa do povo/ Carlos Drummond de Andrade. — 1a ed. — São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
[2] Disponível em http://justificando.com/2015/11/09/2015-esta-sendo-ano-de-pessimo-congresso-e-ruim-supremo/
[3] Disponível em http://www.migalhas.com.br/Quentes/17,MI222370,31047-STF+pode+rever+posicao+sobre+aumento+de+pena+decorrente+de Acesso dia 23/12/2015
[4] Disponível em justificando.com/2015/06/29/retrocesso-do-stf-sobre-antecedentes/ Acesso dia 23/12/2015
[5] Disponível em http://www.justificando.com/2015/10/30/o-furto-do-bombom-e-o-principio-da-insignificancia/ Acesso dia 23/12/2015
[6] Disponível em http://justificando.com/2015/11/11/decisao-do-stf-funcionaria-como-um-legitimador-da-violencia-policial-segundo-ong-de-dhs/ Acesso dia 23/12/2015
[7] Disponível em http://www.justificando.com/2015/11/26/aos-amigos-que-me-perguntam-sobre-a-prisao-do-senador/ Acesso dia 23/12/2015
[8] Disponível em http://justificando.com/2015/11/26/-por-mais-odioso-que-delcidio-seja-pior-e-comecar-a-destruir-o-que-ja-temos-de-tao-pouco/ Acesso dia 23/12/2015
[9] Disponível em http://justificando.com/2015/08/19/nao-nem-a-tourada-e-nem-a-vaquejada-sao-modalidades-esportivas/ Acesso dia 23/12/2015
[10] Disponível em www.justificando.com/2015/11/04/infancia-em-risco-com-o-julgamento-da-classificacao-indicativa-no-stf/ Acesso dia 23/12/2015

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