Reviver entre o balcão e a calçada

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Reviver Centro é um programa da Prefeitura do Rio, criado para estimular a ocupação dos imóveis dos bairros da região por residências. Foi lançado no ano passado quando a pandemia já havia feito estragos terríveis. Só em 2020, 40% dos imóveis no Centro foram esvaziados, pelas contas da Associação Brasileira das Administradoras de Imóveis: escritórios (de advocacia, de contabilidade, de consultoria) aderiram ao home office; muitas lojas passaram fazer somente serviços de entrega; as portas fechadas, com ou sem cartaz de vende-se e aluga-se, se multiplicaram. Dos 2.500 bares e restaurantes cariocas fechados durante a pandemia, grande parte ficava no coração histórico da cidade.

Por Oscar Valporto, compartilhado de Projeto Colabora




Dois anos e cinco meses do começo da pandemia, que ainda não acabou, o movimento pelas ruas do Centro é um sinal de retomada; de que reviver é preciso. Mas a alma da região guarda cicatrizes. Estão fechados lugares que fazem parte da história do Rio de Janeiro como o Bar Luiz, fundado em 1887, nos tempos do Imperador, e o Cedro do Líbano, de 1948, apontado como o primeiro restaurante árabe da cidade e conhecido por fazer parte do roteiro das campanhas políticas no Saara. Fechados estão restaurantes igualmente tradicionais como o Sentaí, perto da Central do Brasil, e o Mosteiro, na Praça Mauá. Nada indica que possam ressurgir como aconteceu com a Casa Villarino, no Castelo.

O Café Gaúcho, a calçada e o balcão: inspiração para formas de reviver no Centro do Rio (Foto: Oscar Valporto)
O Café Gaúcho, a calçada e o balcão: inspiração para formas de reviver no Centro do Rio (Foto: Oscar Valporto)

Para não se abater com as cicatrizes nesta fase menos perigosa da pandemia, melhor revisitar os lugares que não se abateram e bravamente resistiram no Centro do Rio; bares que praticamente não fecharam as portas; que, na verdade, praticamente dispensam portas, que não têm ar condicionado; que vivem e sobrevivem no espaço sagrado entre o balcão e a calçada.

Foi no Café Gaúcho que tomei, numa segunda-feira de março de 2020, os últimos chopes antes da declaração de calamidade pública provocada pela pandemia – foram quase três meses sem ver aquele líquido sair do barril. O bar tem um dos mais longos balcões não apenas do Centro mas de toda a cidade: começa na São José e faz até curva antes de terminar na Rodrigo Silva (e ainda tem um pequeno balcão só para o cafezinho). O Café Gaúcho está naquele sobrado e naquela esquina desde 1935: foi ponto de encontro de pintores e escultores modernistas nos seus primeiros anos.

Sanduíche de linguiça do Café Gaúcho, bar instalado desde 1935 em sobrado no Centro do Rio: resistência ao tempo e as epidemias (Foto: Oscar Valporto)
Sanduíche de linguiça do Café Gaúcho, bar instalado desde 1935 em sobrado no Centro do Rio: resistência ao tempo e as epidemias (Foto: Oscar Valporto)

Naquela fatídica segunda-feira, balcão e calçada estavam quase vazios: o medo do coronavírus já tomava as ruas. Quase um ano depois, quando, aos poucos, voltei a circular pelo Centro, reencontrei o Café Gaúcho na velha forma: uma certa aglomeração do lado de cá do sinuoso balcão, as pessoas espalhadas pelas mesas altas, sem cadeiras, espalhadas pelas calçadas generosas das proximidades do Buraco do Lume, a Praça Mario Lago. Só recentemente, entretanto, voltei a encostar numa mesa para tomar chope, comer um sanduíche de linguiça, o clássico de casa, provar a empada de palmito e batida de gengibre para confirmar que tudo continuava como antes – inclusive, e principalmente, aquele espírito carioca que prevalece entre o balcão e calçada.

O majestoso pernil do Opus Bar: atração para lotar balcão e calçada da Rua Gonçalves Dias desde 1968 (Foto: Oscar Valporto)
O majestoso pernil do Opus Bar: atração para lotar balcão e calçada da Rua Gonçalves Dias desde 1968 (Foto: Oscar Valporto)

Também encontrei tudo igual como era antes no balcão – e na calçada – do Opus Bar, na estreita Rua Gonçalves Dias, onde, 233 anos atrás, o alferes Joaquim José da Silva Xavier foi preso pela guarda do vice-rei do Brasil, colônia portuguesa em 1789. Na última sexta-feira de julho de 2022, é preciso andar pelo meio da rua de pedestre para passar em frente: as calçadas estão tomadas por clientes em torno de mesas altas iguais aos do Café Gaúcho; outros se espremem do lado de cá do balcão. Do outro lado, o mesmo Edson retira do forno as enormes peças de pernil, responsáveis por ocupar os sanduíches que fazem a fama da casa; o mesmo Agamenon pilota a choperia de onde sai um chope escuro da melhor qualidade. O Opus, ali desde 1968, persistiu e resistiu.

Nesses espaços entre os balcões e os calçadas, nas tardes do inverno carioca, ouve-se de tudo: debates sobre os melhores chopes da cidade, fofocas de escritório, análises de pesquisas eleitorais, confissões amorosas, teorias conspiratórias, histórias – verdadeiras e exageradas – da violência urbana, piadas quase sempre infames, avaliações tática e técnica dos principais times da cidade, desabafos de machistas de meia idade com saudade do tempo em que podiam ser machistas sem qualquer receito; troca de informações de mulheres para garantir sua segurança nessa cidade ainda infestada pelo machismo. Entre o balcão e o calçada, vale a pena manter a boca ocupada e os ouvidos atentos.

Chope escuro (ou claro), conversa fiada (ou séria), venda de todo o tipo de produto: ingredientes da vida entre o balcão e a calçada (Foto: Oscar Valporto)
Chope escuro (ou claro), conversa fiada (ou séria), venda de todo o tipo de produto: ingredientes da vida entre o balcão e a calçada (Foto: Oscar Valporto)

Essa arte tradicional dos botequins cariocas – ouvir a conversa alheia – enfrenta um burburinho que só faz crescer nesse tempo de crise aguda. No espaço entre os balcões e as calçadas do Centro do Rio, vende-se de tudo: cintos, brigadeiros, óculos escuros ou para leitura, capas e carregadores de celular, carteiras, lenços de papel, máscaras contra a covid-19. Por razões que escapam a este observador carioca, há todo tipo de vendedores ambulantes aqui nas calçadas perto dos bares do Centro, mas um menor número de pedintes – e um menor número de crianças – do que nas calçadas dos centros comerciais da Zona Sul e da Zona Norte.

Essa crise aguda – é preciso ter esperança – vai passar. E ver e viver os movimentos entre o balcão e o calçada nos leva ao começo do texto e ao programa para levar cariocas a morar novamente no Centro, como faziam até a metade do século passado. No primeiro ano do Reviver Centro, a Prefeitura recebeu 22 pedidos de licença para edificações habitacionais: 1.788 unidades residenciais, das quais 1.317 já licenciadas, mais do que nos 10 anos anteriores. Há muito a caminhar nessa direção de levar sangue novo para o antigo coração da cidade, onde ela verdadeiramente nasceu e cresceu. Mas o Café Gaúcho e o Opus são provas que viver e conviver são verbos que tem tudo a ver com o histórico Centro do Rio de Janeiro.

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