Rio Capibaribe: palafitas e prédios de luxo ocupam as mesmas margens

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Por Victor Moura, compartilhado de Projeto Colabora – 

À beira do mais importante rio da cidade pernambucana, encontramos Mary Rosa, que canta e se orgulha da casa própria em uma área sem saneamento mas até bucólica, e Adilza, que foi vítima de violência doméstica e vive em uma região insalubre

No fim de 2020, com dados antes da pandemia, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) classificou o Recife como a capital mais desigual do país. A partir dessa referência, na companhia de uma bicicleta, decidi sair às ruas para reportar uma exclusão tipicamente local: a das pessoas que moram nas beiras de cinco rios. À procura de histórias, beiradejei o Rio Capibaribe, o Beberibe, o Morno, o Jordão e o Tejipió. Foram quase 170km percorridos de bicicleta em sete diferentes dias.




O Capibaribe é o mais conhecido e importante rio da capital pernambucana. E, também, o mais desigual. Corta áreas centrais e bairros nobres. Porém isso não o exime de problemas ambientais e sociais. Em alguns pontos, as comunidades pobres vivem acuadas diante de avanços do setor imobiliário. Coabitam no mesmo ecossistema edifícios de alto padrão e palafitas, sobrados e mocambos. A desigualdade se apresenta de maneira mais explícita.

Rio Capibaribe: onde começa a jornada de 170km de bicicleta pelo Recife | Foto de Victor Moura
Rio Capibaribe na Várzea, Zona Oeste do Recife: o começo de uma jornada de 170km de bicicleta | Foto de Victor Moura

Percurso de bicicleta pela margem do Capibaribe tem início no ponto em que o rio chega à capital de Pernambuco

Naquela terça-feira de verão, pedalando pelas planícies, me acheguei na Várzea, Zona Oeste, onde o Capibaribe começa seu sinuoso percurso pela cidade rumo ao Oceano Atlântico. No passado escravagista, as terras da Várzea eram de senhores de engenho. Aqui o açúcar era produzido e, graças ao transporte fluvial, chegava ao Porto do Recife. Estima-se que 437 mil escravos tenham sido desembarcados na capital pernambucana, o terceiro maior quantitativo do Brasil, só atrás de Rio de Janeiro e Salvador.

Desde então, heranças coloniais, como a segregação racial, continuam sendo uma realidade na cidade. O Plano Recife 500 anos, publicado em 2019, mostra que mais de 75% das pessoas que formam as comunidades mais carentes são pretas e pardas. Na Veneza brasileira, fundada em 1537, muitas pessoas encontram água, mas não encontram pontes em seu caminho.

Instituto Brennand, Recife
Castelo de Brennand: instituição cultural é vizinha de comunidade ribeirinha com casas sem reboco | Foto de Bruno Lima/MTur

Desigualdade: falta água na vizinhança do Instituto Brennand

Na Várzea, prestes a chegar às comunidades ribeirinhas, parei na frente do Instituto Ricardo Brennand, conhecido como Castelo de Brennand. A sede da instituição cultural é inspirada na arquitetura europeia medieval. Mas pedalando pelas ruas e becos da vizinhança, vi uma realidade menos pomposa em meio a casas sem reboco e até mesmo barracos. Era por volta do meio-dia e o sol estava de matar quando presenciei uma fila imensa de baldes e galões na Vila Arraes, a pouco mais de 2km do Instituto Brennand.

O abastecimento regular de água, atribuição da Compesa (Companhia Pernambucana de Saneamento), não acontece na comunidade desde o fim de 2020. O problema tem sido atenuado graças a um vizinho, que bombeia água de outra parte da Várzea para a Vila Arraes. Havia gente demais na rua, e gente sem máscara. Segui beiradejando outras comunidades acometidas pelo mesmo problema hídrico. Ver pessoas que moram ao lado do Capibaribe sofrendo com falta d’água causa, no mínimo, estranheza.

A cantora Mary Rosa, que mora com o marido e três cachorros na margem do Rio Capibaribe | Foto de Victor Moura
A cantora Mary Rosa na beira do Rio Capibaribe onde mora com o marido e três cachorros | Foto de Victor Moura

Mary Rosa canta brega e instala lâmpadas na margem do Rio Capibaribe

Cheguei a uma área da Várzea mais verde e menos habitada. Do alto de um pequeno morro, avistei uma égua, um potro e um cachorro, mas nenhum ser humano. Desci uma escadaria, notei a presença de barracos. Fui avançando à medida que batia palmas. Dois jovens rapazes apareceram e disseram que ali se assentava a comunidade Império. Ouvi o som de uma TV vindo de uma casa, cuja porta se encontrava aberta. Dentro dessa casa, sozinha com os cachorros, apareceu uma mulher de cabelo rosa.

Marinalva Rosa, ou apenas Mary Rosa, como prefere ser chamada, tem 23 anos. Nascida e criada no bairro, ela cresceu nas ruínas do antigo Magitot, o primeiro hospital odontológico do Recife e da América Latina. A construção centenária é também conhecida como Casarão da Várzea. Durante 21 anos, a família de Mary Rosa morou no terreno, onde plantava verduras, legumes e frutas. Seu pai foi caseiro do Casarão até 2013, quando morreu, aos 81 anos. No mesmo ano, Mary, a mãe e cinco irmãos foram despejados pela Prefeitura. Foi dito que os donos não pagavam IPTU nem davam função social à propriedade. Em 2015, um decreto municipal transformou a construção em Imóvel Especial de Preservação. O Casarão da Várzea continua “despreservado” e sem função social.

Com apenas 15 anos, Mary foi separada da sua base. “Fui para a casa de uma amiga da escola. Mas comi o pão que o diabo amassou naquela casa, porque o pai dela todo dia falava mal de mim”, conta. O que a salvou, e continua salvando, é a música.

Ainda na adolescência, Mary começou a cantar em barzinho. O dinheiro era o suficiente para custear o aluguel de um barraco na beira-rio. Trocou de casa diversas vezes, mas sempre na Várzea, sempre às margens do Capibaribe. Em 2020, Mary Rosa conseguiu vender uma música. Com o dinheiro, comprou esse terreno e, há dois meses, vive com o marido numa casa própria. Depois de passar oito anos pulando de casa em casa, é aqui onde ela deseja se estabelecer, apesar da infraestrutura básica ainda deficiente.

Região à beira-rio convive com pouca água, lixo, falta de saneamento e de iluminação pública

As duas entradas são pouco acessíveis. O saneamento não existe. A água é irregular. A iluminação pública fica a cargo dos moradores. “Cada um bota sua lâmpada”, diz Mary. Mas o pior mesmo, a seu ver, é a falta de zelo com o meio ambiente. “O pessoal de lá de cima está jogando lixo aqui para baixo”, conta. Mary Rosa varre a frente de casa todos os dias. Quando tomou a decisão de vir para essa margem do Rio Capibaribe, levou em consideração o espaço para seus três cachorros. Aqui, os bichos têm a companhia, não tão rara, de capivaras, timbus, pássaros, lagartos e até mesmo jacarés.

O pessoal de lá de cima está jogando lixo aqui para baixo

Mary Rosa
moradora da beira do Capibaribe

O quintal da casa de Mary carrega um bucolismo que pouquíssimo se vê na cidade. Mas também carrega um forte estigma social. “O pessoal quando passa fala ‘oxe, Mary, mora aqui, é?’. Digo: moro. Não tenho vergonha de dizer que moro na beira de rio ”, relata com orgulho. O mesmo orgulho com o qual se apresenta como cantora de brega romântico, gênero musical popular na periferia do Recife.

Nas margens, fazendo arte, é cantando que Mary Rosa se sustenta. Durante a pandemia, passou por dificuldades financeiras porque sua fonte de renda, os shows, tinham sido todos cancelados. Hoje, mesmo sabendo que é um erro, admite cantar “todo fim de semana” em festas clandestinas, longe do radar da fiscalização. Seu marido, que também é músico e DJ, a acompanha no trabalho. Quando eu a encontrei, ela cuidava do lançamento de sua nova música, “Você vai chorar”. “Essa daí vai alavancar a minha carreira”, diz. Estava esperançosa. Com o brega no peito, ela segue construindo pontes nessas terras varzeanas.

Ponte improvisada sobre o Rio Capibaribe
Ponte improvisada sobre uma tubulação no Rio Capibaribe liga bairros das zonas Oeste e Norte do Recife | Foto de Victor Moura

Ponte improvisada passa por cima de uma tubulação no Rio Capibaribe

Saí de casa no dia seguinte com uma certeza: a de que encontraria vários outros antagonismos de realidade ao longo do caminho. Desta vez, ainda na beira do Rio Capibaribe, meu ponto de partida foi a Ponte da Salvação, entre as zonas Oeste e Norte. Uma ponte em retalhos, sem acessibilidade alguma, entre os bairros da Iputinga e do Monteiro. Na década de 1970, a passagem foi construída para uma adutora de abastecimento de água. Hoje, é uma importante travessia (improvisada) de pedestres, ciclistas e motociclistas.

A ponte é a junção de várias placas de concreto sobre uma tubulação. Há um risco latente de vazamento. O que não impede, porém, o vaivém de transeuntes e a presença de moradores em suas imediações. A apenas alguns metros dali, entre os mesmos bairros, a ponte “oficial” que deveria servir à população é digerida pelo tempo, em estado de abandono. Ela começou a ser construída em 2012 e foi paralisada dois anos depois com menos de um terço de conclusão. Nela foram gastos R$ 10 milhões de recursos públicos.

Ponte abandonada às margens do Rio Capibaribe
Jovens em meio às ferragens de uma ponte “oficial” abandonada às margens do Rio Capibaribe | Foto de Victor Moura

Jovens e crianças ‘escalam’ ruínas de ponte milionária e abandonada

Encontrei dois adolescentes que moram na Iputinga, favela vizinha ao Rio Capibaribe. Conversávamos sobre o dia a dia na comunidade, até que eles me convidaram para subir na ponte abandonada. “Como?”, perguntei. “Escalando”, eles me responderam.

Eles me falaram sobre como proceder até o topo e sobre ter cuidado com as ferragens expostas, que são perigosas e muitas. Não há tapumes no local. Não há nada que impeça as pessoas, inclusive crianças, de acessarem o que deveria ser tão somente uma ponte entre dois bairros. Dentro dela, há um ambiente hostil, empoeirado e escuro, que mais parece uma caverna. Não sei ao certo a altura (talvez uns 9 ou 10 metros), mas era explícito o quanto aquela “brincadeira” colocava as nossas vidas em risco.

“No fim da tarde, a gente sobe aqui, conversa, come um pão doce”, disse um dos adolescentes. É simbólico que, no Recife, uma ponte milionária e abandonada tenha sido “ressignificada” por uma juventude periférica e se transformado numa espécie de “equipamento público de lazer radical”. Lá de cima, avistamos a outra margem do Capibaribe onde estão situados bairros nobres como Monteiro, Apipucos, Poço da Panela e Casa Forte.

Continuei beiradejando o Capibaribe até o Centro. Encontrei várias “beiras-rio”, desequilíbrio ambiental e barqueiros que realizam a travessia fluvial por R$ 1,50. No fim de 2020, houve uma licitação para requalificar a Avenida Beira Rio, território abastado do Recife. O orçamento é de R$ 43 milhões. Enquanto isso, outros trechos nas margens do mesmo rio sequer têm uma estrutura básica para se darem ao luxo de passar por uma requalificação.

Rio Capibaribe visto do alto de uma ponte abandonada
Rio Capibaribe visto do alto da Ponte Monteiro-Iputinga, construção paralisada em 2014  | Foto de Victor Moura

Adilza, mãe solteira, vítima de violência doméstica, mora em palafita ao lado de polo médico

É o caso da favela Roque Santeiro III, no bairro dos Coelhos, região central. Cheguei exausto. Nem tanto pelos 14 quilômetros pedalados, e sim pelo pela exposição contínua ao sol (jamais esqueçam de repor o protetor solar). Além disso, o entardecer se aproximava. Não tinha condições de continuar a reportagem naquele dia. Voltei na manhã seguinte ao mesmo local. Porém, como estava no meu limite físico, acabei recorrendo ao transporte público (perdão, cicloativistas, foi uma excepcionalidade, eu juro).

Em meio ao odor da maré, me surpreendi negativamente com o alto nível de insalubridade e precariedade. Ziguezagueando desnorteado pelos becos estreitos, encontrei Adilza Felipe, de 31 anos, nascida e criada nos Coelhos. Adilza é mãe solteira de três filhos, incluindo uma bebê de 2 anos. Ela mora sobre tábuas de madeiras, numa das muitas palafitas da região. É um ecossistema quente, úmido e sem saneamento, no qual os dejetos humanos são lançados no rio. Para piorar: “Tem bicho morto, é cavalo, é cachorro, é porco, é rato (…). É PET, é saco de lixo, é tudo”, diz Adilza. “Aqui a gente não vive muito bem. Não é digno. Não é limpo.”

Segundo dados oficiais mais recentes, de 2017, Recife tem 4.725 domicílios precários, o que inclui esse tipo de construção sobre ou à beira-rio. Mas não, essas palafitas não são uma construção, e sim uma corrupção de todo e qualquer conceito de lar.

Com os pés sujos de lama, entrei na casa de Adilza, de onde é possível ver pela janela, no outro lado do Rio Capibaribe, um dos principais fóruns de Justiça da capital: o Desembargador Rodolfo Aureliano. Avizinhados dela também estão hospitais, clínicas e laboratórios de luxo. Um dos maiores polos médicos do país, o maior do Norte-Nordeste, se encontra no bairro ao lado da Ilha do Leite. Quem passa pelo asfalto, muito provavelmente, sequer se apercebe da comunidade oculta e diminuta atrás dos prédios.

Adilza Felipe mora em uma palafita sobre o Rio Capibaribe ao lado do polo médico da Ilha do Leite | Foto de Victor Moura
Adilza Felipe na mercearia na entrada da favela onde mora em uma palafita na margem do Rio Capibaribe | Foto de Victor Moura

O medo do fogo diante da beira-rio dos Coelhos

A única entrada e saída da Roque Santeiro III é por meio de um terreno na Rua Francisco Alves. Antes os moradores passavam por dentro de um estacionamento, mas há pouco mais de um ano têm de passar ao lado de um daqueles cercos de construtora. “A gente já é esquecido aqui. Com a construção de mais prédios vai ser mais esquecido ainda”, diz Adilza.

Seu maior medo nem é o esquecimento, e sim um encurralamento. Em 2013, um incêndio no bairro dos Coelhos atingiu mais de cem barracos. Uma tragédia da qual Adilza se recorda bem: “O povo nem saía da comunidade nem entrava. Aquele desespero, a gente querendo tirar as coisas e sem poder”. Mais construções significam mais obstáculos em uma emergência. São populações que assentadas perto das águas temem o fogo. E o Recife tem um forte antecedente de incêndios em favelas de beira de rio.

Três filhos, dois ex-maridos violentos e um sonho: sair da margem do Rio Capibaribe

Hoje Adilza vive com o auxílio emergencial do governo. Pouco antes da pandemia, ela resolveu abrir uma singela mercearia bem na entrada da Roque Santeiro III, em um espaço cedido pelos pais. Foi lá, cada qual numa cadeira de plástico branca, que tivemos uma conversa mais difícil. Aos 16 anos, Adilza tornou-se mãe. Com o primeiro ex-marido, vivenciou episódios frequentes de violência doméstica. Após sete anos “conturbados”, ela decidiu se separar e retornar para a casa dos pais.

Passado um tempo, se envolveu com um outro homem, um relacionamento ainda pior. Vizinhos e família sabiam, mas ninguém se metia. “Ele cortava o meu rosto, dava murro no olho na frente de todo mundo”, disse, limpando as lágrimas com um pano cinza. Ao longo de nove anos, por duas vezes Adilza conseguiu prestar queixa numa delegacia. Acabou esfaqueando o homem violento para se defender. O ex-marido chegou a ser preso, mas pagou fiança e foi solto.

Atualmente, Adilza luta na justiça pelo direito de pensão dos três filhos, de dois pais diferentes. Quando tem tempo e condições, Adilza gosta de ir à praça do Marco Zero, de se bronzear e ajeitar o cabelo. Quer ver os filhos educados e seu sonho é tão cedo sair da beira do Rio Capibaribe. “Se for o caso de você vir para cá de novo, tomara que eu não esteja mais aqui”, disse na nossa despedida, visivelmente emocionada. De minha parte, só tenho a dizer: tomara mesmo.

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