Por Maria Fernanda Arruda, no Correio do Brasil –
O Rio de Janeiro possui algumas características que são desconsideradas pelos cariocas e fluminenses. É o quarto menor Estado da Federação, contendo em pequeno espaço nada menos do que 8,4% da população nacional, logo, o Estado de maior densidade demográfica. A cidade do Rio de Janeiro sofreu com a transferência da Capital Federal para Brasília, mas já se ajustou a uma realidade nova. Sua população é majoritariamente formada por segmentos de classe média: comerciários, funcionários públicos, bancários, tendo se tornado nas últimas décadas o maior fornecedor de oficiais para o Exército Nacional.
Economicamente, perde apenas para São Paulo, tendo um setor de serviços muito forte, sediando a Petrobrás e muitas empresas de âmbito nacional. Foi pioneiro na indústria siderúrgica, automobilística (Fábrica Nacional de Motores), refinação de petróleo. Fazem parte de um passado muito longínquo a cana de açúcar e o café: a agricultura do Estado hoje é inexpressiva e decadente.
Tem um colégio eleitoral de 12 milhões de votos e muitos municípios com mais de 150 mil habitantes; isso é, compõe um colégio eleitoral tipicamente urbano. Notável que, dos 16,5 milhões de habitantes do Estado, nada menos do que 10,6 milhões estão no Rio de Janeiro e arredores: São Gonçalo, Duque de Caxias, Nova Iguaçu, Niterói, Belford Roxo e São João do Meriti.
Seu grande vulto político foi o almirante Amaral Peixoto, genro de Vargas, com o seu nome associado à CSN, à Companhia Nacional de Alcális, à FNM e à criação da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Se Jango foi o braço esquerdo de Vargas, Amaral Peixoto foi-lhe o direito, o grande nome do PSD, que sobreviveu à morte de seu sogro, eminência parda em todos os conchavos que moveram a República, antes de 1964.
A fusão da Guanabara e Rio de Janeiro foi obra da ditadura (1974), preocupada em amortecer a força política que, na cidade do Rio de Janeiro, havia-se constituído em bastião, na luta pela democracia. A vida política autônoma do novo Estado começou em 1982 com a eleição de Leonel Brizola, recém-chegado de exílio, beneficiado pela “lei da anistia geral e irrestrita” de João Figueiredo. A Justiça Eleitoral dos tempos fardados roubou dele a legenda PTB, entregando-a à gorda fanfarronice de Ivete Vargas. E foi assim que nasceu o PDT, mistura de sotaques gaúcho e carioca, postos nas figuras do próprio Brizola e Darcy Ribeiro.
Brizola
O Rio de Janeiro nasceu “sinistro”, à esquerda, com duas figuras intimamente ligadas ao presidente João Goulart. E aos dois, Oscar Niemeyer, com os projetos arquitetônicos da Passarela do Samba e dos CIEPs. Nos ares rarefeitos da “democracia consentida”, o Rio viveu tempos de renovação. Depois do intervalo dos anos de governo Moreira Franco, Brizola retornou em 1990, para um mandato que foi agitado pela “revolução dos bichos”. Os banqueiros do jogo passavam a investir também no tráfico de drogas, a violência nos morros aumentou e Brizola se negou a usar de violência da polícia militar.
Marcelo Alencar foi o resultado de um ajuste do PSDB com vários outros partidos, um momento inicial da grande “salada de frutas” em que se transformaria a vida política do Rio de Janeiro, somando clientelismo, mandonismo, patrimonialismo, incorporando, ajustando e triturando siglas partidárias que se prostituíram, sem que precisassem brigar pelo ponto e pela clientela. Anthony Garotinho elegeu-se com as roupagens do PDT, associado ao PT, que forneceu Benedita da Silva aos amigos e compadres. Continuado pela mulher, a Rosinha, não antes de criar um curupira, de nome Eduardo Cunha.
Com os dois mandatos de Sérgio Cabral, e agora com o Pezão, que goza da companhia de Francisco Dornelles, homem do PP, o partido político mais corrupto do país do carnaval, consolida-se a filosofia do PMDB, o “centrão”, o partido político que dispensa ideologia política, que não se programa, a não ser para o uso e gozo do Poder.
Com pequeno atraso, o Rio de Janeiro assumiu o modelo comprovadamente exitoso do PSDB de São Paulo. Ressurgem as raposas do antigo PSD, criam-se sósias de Amaral Peixoto, mas a figura marcante vem a ser a de um renascido Orestes Quércia, aquele que transformou o MDB revoltado em PMDB apascentado. E quem é Geraldo Alckmin se não um Quércia equivocadamente ancorado no cais do PSDB? Essa grande mistura de ingredientes, que dispensa qualquer seriedade às legendas partidárias, traz no fundo um “gostinho” de ademarismo, o governo com os “compinchas”, com quem se trocam favores e dividem-se as comissões.
Há grande coerência em tudo isso. No Rio de Janeiro, tanto quanto em São Paulo ou no Paraná, pratica-se a política possível dentro dos limites da “democracia consentida”, aquela que realiza os mesmos objetivos que animaram no passado a ditadura civil-militar, dispensando-se a figura ridícula de um ditador. Trata-se da consolidação do Estado autoritário e elitista, fisicamente garantido pelas forças da Polícia Militar, a kafkiana “polícia pacificadora”, que coloca cidadãos bem-comportados à poltrona, sentados em frente da programação da Rede Globo. Garante-se, assim a transformação de 12 milhões de eleitores, programados para consagrar figuras como os deputados federais: Jair Bolsonaro (PP), 464 mil votos; Clarissa Garotinho (PR), 335 mil votos; Eduardo Cunha (PMDB), 232 mil votos. Entre os deputados estaduais: Flávio Bolsonaro (PP), 160 mil votos; Samuel Malafaia (PSD), 148 mil votos); e Paulo Melo (PMDB), com 125 mil votos, presidente da Assembleia Legislativa.
Pode-se admitir alguma consciência política nesse colégio eleitoral? O PMDB, associado com partidos pequenos e ferramentas de corrupção, o PP e PR, mais os democratas do DEM, montou uma máquina de controle do Estado e da cidade do Rio de Janeiro, legitimada democraticamente pelos votos postos nas urnas. Onde está esse eleitorado reacionário, extremamente conservador, ignorante, consagrando figuras fascista e aproximando-se dos pastores capazes de curar até os gays?
Figura nacional
Dúvidas, perguntas, especulações são justificáveis, e mais ainda quando se tem em conta que, em eleições presidenciais de 2014, Dilma Rousseff obteve 55% dos votos no Estado. O que se pode supor? O eleitor médio distingue duas situações: a Presidência da República está lá, muitos distante, em Brasília, e a Mulher é a indicada pelo Lula. Estado e município estão muito perto e não há nenhum Lula rondando nessas proximidades. Lula é figura nacional, seu prestígio é exclusivamente nacional. Como São Paulo, o Rio de Janeiro derrota o partido do Lula. E Dilma Rousseff vence, baseada na assimilação do PT pelo PMDB, com as suas sublegendas, os partidos pequenos, entre eles o dos Trabalhadores.
A escolha dos governantes do Estado demonstra uma lógica que se repete, quando se tem em e vista os prefeitos escolhidos pelos cariocas. Depois de dois eleitos pelo PDT, Saturnino Braga e Marcelo Alencar, teve início em 1992 a era de César Maia, inicialmente eleito pelo PMDB; em 2001, já então pelo PTB; reeleito em 2004, pelo DEM. A partir de 2009, sempre pelo PMDB, Eduardo Paes, eleito e reeleito. A competência do eleitor pode ser discutida, mas não a sua coerência, que é absoluta. Cesar Maia marcou a administração municipal. Aos seus 12 anos de governo devem se somar os 8 de Eduardo Paes, chegando-se ao absurdo dos 20 anos de continuidade, a mesma que espanta tanto em São Paulo, mas que não é enfatizada no Rio de Janeiro. (“nenão?”)
Na escolha dos governantes por cariocas e fluminenses, não houve voto de protesto ou de circunstância, o voto é do PMDB. O PT foi colocado, ou colocou-se como partido pequeno. Na Câmara dos Deputados estão 46 homens, 8 do PMDB, 6 do PR, 6 do PSD e 5 do PT. Com os olhos fixos em Brasília, o PT não tem competência para enxergar o Brasil como um todo, e em especial os centros maiores: nem São Paulo, nem o Rio de Janeiro; como trocado de lambujem, vão-se o Paraná, Santa Catarina e o Rio Grande do Sul.
De quem a responsabilidade por esse quadro? Dos eleitores? Em termos: eles são destituídos de formação política, aceitam o que lhes é dado como prato feito pela TV Globo e pela revista Veja. Mas a grande culpa cabe ao PT, que se distraiu ao namorar o poder, esquecendo-se do povo, povo que não se esgota na imagem idealizada nos que foram tirados da miséria. E tanto é assim, que no Rio de Janeiro, o PT é partido pequeno e de expressão menor. Estamos diante de números, não de sonhos ou de palavras já muito desgastadas.
No próximo ano, 2016, o Brasil será sede dos Jogos Olímpicos,sim, exatamente aqui no Rio de Janeiro. Pois sim, obras de preparação para os jogos estão em andamento, fazendo-se o que historicamente sempre foi feito. Ao descontrole dos gastos soma-se o elitismo, no descaso pela sorte das famílias que vão sendo desalojadas e serão realocadas para além da periferia, ou desovadas em algum “Jardim Gramacho”, lixão. Reforma-se a avenida Rio Branco, que será importante tê-la bela e funcional para a horda de turistas que são aguardados. Abrem-se espaço para os campos de golfe. Serão quatro os Parques Olímpicos? Barra, Deodoro, Maracanã e Copacabana? E da experiência de Paulo Salim Maluf: onde está hoje a avenida jornalista Roberto Marinho, nome outorgado por uma prefeitura do PT (Martha Suplicy), havia uma favela onde a polícia despejou alguns milhares de seres humanos na forma a mais lastimavelmente violenta. Algum ministério, entre os 39 que estão lotados em Brasília, saberá o que acontece no Rio de Janeiro? Existe um ministério das cidades? Existe um ministério do bem-estar social?
O governo do Estado do Rio de Janeiro está aparelhado com tudo isso e algo mais; no papel.
Eleições presidenciais
Se, como é verdade, a segurança dos cidadãos deve ser provida pelos governos estaduais, quando são criadas “polícias pacificadoras” e os moradores das favelas morrem de bala perdida e de bala mirada, a União nada tem a ver com o crime e muito menos com a violência policial? As UPP, atualmente 42 unidades distribuídas pelas favelas do Rio, consagram a contradição: polícia x pacificadora, o que se torna mais absurdo quando se sabe sobre a forma de treinamento desses corpos militares, a quinta essência do entulho autoritário.
A violência da ação das UPP tornou-se motivo de pavor para os favelados. A tortura e assassinato do pedreiro Amarildo tornou-se símbolo dela. Mas o que de farto comoveu a Zona Sul da cidade foram os atos de violência praticados contra os manifestantes de junho de 2013, pois que, afinal, filhos da classe média não foram feitos para apanhar de meganhas. O comportamento das Polícias Militares é o mesmo, independentemente da facção política a que pertença o governador: PMDB (RJ), PSDB (PR) ou PT (BA): elas matam, matam jovens pobres e negros. E o Rio de Janeiro possui muitos, plantados nos quase 1,5 milhão de favelados.
Não apenas a União se mantém convenientemente afastada do problema, como o PT, desimportante no Estado, não quer conhecer o problema. Limita-se aos conchavos eleitorais.
O Estado enfrenta problemas específicos: o esvaziamento de sua economia agrícola, as catástrofes na região serrana, a cada estação de chuvas, a ausência de meios adequados de movimentação. A cidade já sufocada pela ocupação e uso do solo, definidos em função da especulação imobiliária a mais aguda, que produziu a inadequação absurda dos serviços públicos, o congestionamento constante das ruas e avenidas, a poluição sonora, do ar e da água. Às elites, a solução que se oferece na Barra da Tijuca.
Todo esse quadro tem se mantido desconhecido e desconsiderado.
As eleições presidenciais comovem, é verdade, a Zona Sul, quando se promovem encontros, produzem materiais, camisetas, bandeirolas e faixas, distribuídos entre amigos, como se faz no Natal.
O povo não se movimenta sozinho, ele carece de organização e força de um partido político, que traga líderes, propostas e mensagem. Isso não acontece mais por aqui.
As raposas do PMDB optam por trabalhar em silêncio.