Por Rogério Mattos, publicado em Jornal GGN –
Porém um mar separa não só a Europa do Brasil, como também os personagens de seus sonhos ou o país de sua modernidade…
Entre a década de 1970 e 1990, quando Roberto Schwarz escrevia sobre os primeiros romances de Machado de Assis (Ao vencedor, as batatas) e sobre Brás Cubas (Um mestre na periferia do capitalismo), um inglês, John Gledson, na década de 1980, se debruçava sobre o tema da traição em Dom Casmurro. Segundo o autor, o marco histórico fundador do romance seria 1871, ou seja, a Lei do Ventre Livre, que teria sido outorgada pelo imperador para poder fazer sua viagem a Europa e pousar como progressista. Outras correntes cruzam essa data simbólica: a questão religiosa que, com a proclamação da república e do Estado laico fez com que, definitivamente, faltar com a palavra seja fenômeno mais corriqueiro do que na época de maior religiosidade… E o ideal moderno, simbolizado pelas veleidades de Pedro II de frequentar o ambiente europeu como um monarca ilustrado. Porém um mar separa não só a Europa do Brasil, como também os personagens de seus sonhos ou o país de sua modernidade…
José Dias, o agregado, muda sua ideia de apoiar a ida de Bentinho ao Seminário depois de receber como promessa uma viagem a Europa; Dona Glória, mãe do protagonista, nunca poderia sequer sonhar com o continente estrangeiro e suas modernidades devido ao seu conservadorismo e apego religioso; Capitu encontra o desterro na Suíça e o filho do casal, a morte. O suposto amante, Escobar, morre afogado nesse mar que separa cada um de seus sonhos, a sociedade de seu ideal, as duas famílias (de Escobar e Bentinho) de seu idílio europeu (a viagem que planejavam fazer juntos), além de impedir Escobar, como comerciante, de participar do capitalismo financeiro internacional e não só da limitada economia nacional…
Uma outra corrente vinda de longe atravessa o famoso romance de Machado, a Guerra do Paraguai. Quando Bento Santiago discute com Manduca, o pobre e jovem leproso no leito de morte, sobre a Guerra da Criméia, John Gledson enxerga a defesa da Rússia pelo protagonista contra a posição a favor da Turquia, a “Doente da Europa”, como um meio de se comentar sobre a “maldita guerra” brasileira. O crítico americano propõe encarar Bento como o Brasil e Manduca como o Paraguai, “pelo menos no sentido negativo de que (…) muito do que ele diz se encaixa nessa identificação. Em Manduca, a combinação de pobreza e instinto agressivo quadra bem com a ‘personalidade’ do país de Solano López[1]”. Pode ser dito mais: a “combinação” grifada por mim pode ser comparada com texto mais tardio de Machado: “O que é a ação! Alguns dias de combate fizeram mais do que longos anos de polêmica diplomática. Bem podia ter-se poupado o papel que se gastou em notas e relatórios: eram mais algumas libras de pólvora. Com selvagens não há outro meio[2]”. Era a defesa da civilização contra a barbárie, o imperativo da guerra.
Os críticos pontuam que houve uma atenuação de sua empolgação guerreira – selvagem – depois que os anos passaram, a medida que a guerra ia se revelando um desastre… Mas é sempre bom lembrar algumas palavras reveladoras: “Se depois do espetáculo das orelhas enfiadas numa corda e expostas à galhofa dos garotos de Assunção, houver um país no mundo que simpatize com o Paraguai, não precisa mais nada — esse país está fora da civilização[3]”. Tais notícias grotescas não vinham para informar, mas para consolidar entendimentos prévios a respeito da bárbara república paraguaia, sem qualquer veleidade europeísta. No livro de Francisco Doratioto, Maldita Guerra, se relata que, se o império brasileiro não estava tão atrelado a interesses britânicos para deslanchar a guerra (isso teria ocorrido num segundo momento por causa do endividamento extremo do governo com os bancos estrangeiros para financiar a aventura imperial), os paraguaios tentavam se aproximar dos Estados Unidos (que não tinham condições no momento de interferir de maneira mais enfática nos conflitos da América do Sul), num afã bárbaro e federalista, talvez muito próximo ao que buscaram os revolucionários pernambucanos durante boa parte do século XIX. Bárbaros, então. Bolivarianos, talvez se dissesse hoje: Bolívar, outro admirador do sistema federalista americano…
Machado atenua sua visão a respeito da guerra. Chega a dizer que seria melhor lutar contra Mitre ou abjura de uma maneira geral diante de todas as perdas obtidas com a guerra. Deserta de sua entusiasmada militância inicial. Não quer dizer que o Paraguai deixou de ser “bárbaro”. No máximo, a civilização falhou em seus objetivos. O império brasileiro, intracontinental, quanto mais buscava se impor em seu interior profundo, mais distante ficava do mar, distante de uma maneira insuportável da velha Europa… Machado talvez se veja no espelho ao encenar o debate entre Bentinho e Manduca. Sua posição em relação ao conflito mudou quando escreveu Dom Casmurro?
Talvez seu nacionalismo ingênuo tenha se atenuado e essa visão, plasmada com maior racionalidade e empáfia, tenha sido exposta na boca de Bentinho quando debateu com o menino moribundo. Plasmar sua visão antiga através de um personagem de claros contornos elitistas pode ter sido um meio que o autor criou para se distanciar de si mesmo, para rir de si, apesar de que indicação nenhuma é revelada a respeito de o mínimo de consideração pela sorte do povo paraguaio, independente dos abismos em que foram jogados os dois países durante a guerra. Machado recua diante de seu patriotismo ingênuo, torna-se um pessimista empedernido em relação ao império brasileiro; talvez até tenha suavizado sua cruel distinção entre “civilização e barbárie”, porém é inútil procurar uma visão que chamaríamos hoje de progressista, próxima aos dilemas sul-americanos. Não! Não é um caso de anacronismo: essa visão progressista, federalista, estava presente em todo o nosso continente, em especial a partir do nordeste. Mas ali vigorava, tal como vigorou entre quem idealizou e não traiu a Conjuração Mineira, o Estados Unidos anti-imperialista do século XIX. O amor de Machado pela Europa é uma espécie de amor doente, a cópia em negativo do entusiasmo malogrado de Manduca ao defender a Turquia, a “Doente Europa”…
John Gledson esclarece importante metáfora de Dom Casmurro. São as estátuas de antigos imperadores romanos que enfeitavam a casa de sua mãe na rua Matacavalos e que ele faz questão que estejam na cópia da antiga casa que constrói no Engenho Velho. Em especial, trata-se da imagem de Massinissa, rei númida, que casou com Sofonisba. Ela foi esposa de Sifax, rei dos massessilos e inimigo dos romanos. Perde a guerra para Massinissa e sua esposa é sequestrada pelo conquistador. Como ela era filha do cartaginês Asdrúbal, teme a vingança dos romanos e pede para o rei vitorioso lhe proteger. Casam-se, porém Cipião, o Africano, desconfia que a mulher possa ser veículo de traição na província romana e pede ao rei para que a assassine. Ela bebeu a taça de veneno consciente, sabendo dos motivos de sua morte. Muitos comentadores associam Capitu a Sofonisba e Gledson adiciona: Bento se associa a Roma. Capitu não pode casar com alguém de uma classe superior a dela e o veículo de sua morte é esse representante das classes altas.
O problema é que no romance quem quase toma um café envenenado é Ezequiel, filho do casal. Existem, portanto, além desses dois casos de envenenamento, um simbólico e outro narrado pelo protagonista, um terceiro envenenamento. Logicamente, é o do próprio Bento Santiago. Capitu não se envenena, mas pela força geral das circunstâncias, é obrigada a uma vida no exílio. Seu filho não é morto pelo pai por um ato repentino de arrependimento. Irá morrer pouco depois na Europa em meio às ruínas arqueológicas que fora pesquisar. Bento é o único que se mantém vivo, envenenado, ressentido.
De onde vem esse veneno, portanto? Se fizermos o uso da teoria do “autor hipocondríaco” acima aludida, ou seja, num enfoque que pode ir da vida do autor até a vida do personagem, podemos ver que o veneno de Machado, ao que também chamamos de Mar ou o grande tema do mar em Dom Casmurro, a distância da “civilização”, ou seja, a Europa em relação ao Brasil, vemos que seu niilismo, na esfera política, se baseia numa compreensão da completa impossibilidade de se alcançar os padrões civilizatórios que ele julga os mais acertados. Diante do impossível, a galhofa, ou seja, a criação de um estilo sereno e relativamente límpido, afeito a paradoxos não tão emocionantes (caso contrário um tema como o de Capitu, risível, não açoitaria a crítica por tanto tempo…), mas inspirado na Europa e na super-estilização da literatura da época de Flaubert, criamos um autor “modelo exportação”. Que distância, contudo, de um pan-americanismo do furor de um Sousândrade, autor contemporâneo de Machado!
Trecho de artigo maior, publicado anteriormente com o título de Niilismo e Concórdia: os leitores de Machado de Assis
REFERÊNCIAS
[1] GLEDSON, John. Machado de Assis: impostura e realismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1991, p.123.
[2] ASSIS, Joaquim Maria Machado de. Crônicas. Rio de Janeiro/São Paulo/Porto Alegre: W. M. Jackson, 1946, p. 296.