Estado desperdiçou chance de fazer obras contra enchentes no último período de seca, mas nova estiagem se aproxima
Por Gabriel Gama, compartilhado de A Pública
O Rio Grande do Sul enfrenta o pior desastre climático de sua história. As fortes chuvas que atingem o estado já vitimaram 83 pessoas e há ao menos 111 desaparecidos – números que seguem aumentando. O rio Guaíba, que margeia Porto Alegre, subiu ao maior nível já registrado em 83 anos e alagou as ruas da cidade. O desastre escancara: o Estado não tem feito frente às mudanças climáticas nem acompanhado a evolução da gravidade dos eventos extremos.
O sistema de barreiras de prevenção a enchentes da capital gaúcha foi construído na década de 1960 e já não suporta o nível de chuva que atingiu a cidade. A barragem da usina hidrelétrica 14 de Julho se rompeu no dia 2 de maio e a comporta do rio Guaíba colapsou no dia seguinte. Outras quatro barragens, localizadas nas cidades de Bento Gonçalves, Canela, Cotiporã e São Martinho da Serra, estão sob risco de ruptura iminente, de acordo com a Defesa Civil do estado.
Para Luciano Machado, engenheiro civil e geotécnico vinculado à Associação Brasileira de Mecânica dos Solos e Engenharia Geotécnica, essas construções precisam ser modernizadas o quanto antes. “É preciso refazer as barragens e estudar do ponto de vista hidrológico qual é o tipo de projeto mais adequado para recompor essas estruturas. Não tem outra opção, tem que modernizar e refazer”, afirma em entrevista à Agência Pública.
Parte da explicação para os temporais violentos está relacionada ao El Niño, fenômeno climático natural que promove mais chuvas no Sul do país. Intensificado pelas mudanças climáticas, ele deve dar lugar nos próximos meses à La Niña, quando é esperado um período prolongado de seca na região.
Na visão de Machado, esse momento futuro deve ser aproveitado para a construção de obras que mitiguem os impactos dos temporais, já que o clima seco é mais propício para fazer tais empreendimentos.
“Se fala muito em cidades resilientes [aos eventos extremos], mas não pensamos muito no que é essa resiliência. Eu acredito que toda a água que está sobre o Rio Grande do Sul agora pode fazer muita falta no futuro, mas hoje a primeira coisa que queremos é que ela vá embora, para que as pessoas possam recuperar suas vidas”, diz Machado.
Confira os destaques da entrevista:
Este é o quarto desastre climático que o Rio Grande do Sul enfrenta em menos de um ano. O que precisa ser feito para que tragédias como a que estamos testemunhando não se repitam?
A última La Niña ficou instalada por três anos [de 2020 a 2023] e provocou secas históricas no Sul do Brasil, na Argentina e no Uruguai. E não foi feito nenhum tipo de obra durante aquele período para amenizar os problemas quando as chuvas viessem. Era sabido que elas viriam, assim como sabemos que elas vão embora e a seca pode voltar no segundo semestre com a La Niña.
A resiliência não foi construída quando deveria. Está comprovado que ela não existe, vemos pontes desabando, barragens rompendo e muitos deslizamentos. É um trabalho de médio e longo prazo que precisa ser feito. Já sabemos todos os pontos de alagamentos e os locais de riscos de encostas, está tudo fotografado e mapeado. Então, será preciso trabalhar nesses lugares durante o período de estiagem, considerando a volta da La Niña e que provavelmente não teremos chuvas no Sul enquanto esse fenômeno estiver atuando.
Se não tratarmos desses problemas antes do El Niño retornar, teremos novos desastres na região, com mais pessoas morrendo e alagamentos. São as consequências de não ter sido tomada nenhuma ação estruturante durante a seca que pudesse mudar essa situação tão triste que estamos acompanhando.
Em termos concretos, quais seriam as ações mais necessárias e urgentes?
Num primeiro momento, o que se deve fazer é o rescaldo, liberar as rodovias e fazer a limpeza das cidades, transformar essa cena de guerra em algo possível de ser habitado novamente. E, na sequência, entrar com obras estruturantes que reduzam os impactos de chuvas como essas, em especial nos locais onde estão mapeados os maiores danos.
Depois, será preciso refazer essas barragens [contra enchentes] e estudar do ponto de vista hidrológico qual é o tipo de projeto mais adequado para recompor essas estruturas. Os pontos onde houve os rompimentos alcançaram volumes de água inusitados, quantidades que não se vê todo dia. Então, não tem outra opção, tem que modernizar e refazer.
As obras de infraestrutura mais importantes são feitas em um período de médio e longo prazo, não dá para fazer grandes coisas em pouco tempo. São obras grandes, mas, quando a gente pensa que a última La Niña durou três anos, era um espaço de tempo bastante significativo, no qual teria sido possível fazer muitas ações.
E quais seriam essas medidas a longo prazo, considerando a previsão de retorno da La Niña?
É interessante observar os exemplos de outras partes do mundo, como a China, que tinha um problema muito grave com enchentes. Nos últimos 15 anos, o país asiático vem tratando dessa questão e criou o programa que eles chamam de “cidades esponjas”, com uma série de obras estruturantes. Isso envolve parques possíveis de serem alagados, pavimento permeável, drenagem.
Precisamos de várias medidas integradas para atacar o problema de forma efetiva, não há uma solução única. O importante é que as cidades consigam se recuperar rapidamente após um evento extremo, e preservando a vida das pessoas.
A China teve como meta a construção de grandes reservatórios e áreas alagáveis, com a finalidade de usar essas águas no período de seca. O Rio Grande do Sul está debaixo d’água agora, com diversas cidades alagadas, mas daqui a alguns meses há a chance de haver falta d’água nesses mesmos locais [devido à La Niña].
Cada solo tem suas características, alguns são mais permeáveis que outros; então é importante fazer projetos que tenham uma drenagem suficiente para afugentar as enchentes, considerar construir áreas de armazenamento de água e lugares de retenção, para que as águas não cheguem com tanta velocidade nos rios, como aconteceu no Guaíba. Esse rio precisa de pontos de apoio para represar a água antes de chegar nele, para escoar com menor velocidade.
Precisamos pensar em obras resilientes e inteligentes que, ao mesmo tempo, evitem as enchentes e permitam o uso do recurso natural durante a estiagem. São projetos complexos e elaborados, mas que precisam ser tratados com a urgência que os eventos extremos trazem.
O senhor enxerga movimentação dos governos para tomar ações nessa direção?
Tenho a impressão de que a mobilização só acontece no momento em que a calamidade está instalada. Do ponto de vista urbano, não vejo movimentações para atacar essa questão em nenhuma esfera de governo. Precisamos usar os problemas de hoje para pensar nas soluções do futuro, usar esse tipo de inteligência.
Se fala muito em cidades resilientes [aos eventos extremos], mas não pensamos muito no que é essa resiliência. Eu acredito que toda a água que está sobre o Rio Grande do Sul pode fazer muita falta no futuro, mas hoje a primeira coisa que queremos é que ela vá embora, para que as pessoas possam recuperar suas vidas. Cada vez mais precisamos pensar na natureza como um caminho possível de solução, se queremos ter cidades realmente resilientes.
Pelo que tenho estudado, teremos bastante tempo para recuperar as cidades no Sul [durante a estiagem da La Niña]. Será a hora de fazer obras estruturantes olhando para o que já ocorreu em outros lugares do mundo. O Brasil tem a chance de sair na frente no âmbito da adaptação mundial às mudanças climáticas, porque temos muita capacidade técnica e engenharia desenvolvida para resolver os problemas. Mas é preciso que exista interesse político em implementar essas ações.
Edição: Bruno Fonseca