Por Victor Moura, compartilhado de Projeto Colabora –
No rio que transborda e no Jordão, canalizado na área nobre e a céu aberto na região mais pobre, encontramos Alcione, vítima de abuso sexual infantil que hoje mora em um beco, e Gérson, vendedor de camarão da Ilha de Deus que nunca tirou CPF
De bicicleta parti em direção ao extremo sul da capital pernambucana. Mais especificamente, uma região limítrofe entre os municípios de Recife e Jaboatão dos Guararapes. De um lado, o Parque Histórico Nacional dos Guararapes; do outro, o Aeroporto Internacional dos Guararapes. Duas referências à batalha homônima que resultou na expulsão dos holandeses em 1649. E foi durante o governo holandês que Recife construiu a primeira ponte de grande porte da América Latina: a Ponte Maurício de Nassau, de 1643, sobre o Rio Capibaribe.
Quase quatro séculos depois, numa manhã de paz, passei um tempinho distraído olhando o pouso dos aviões que chegavam à cidade. Mas, tão cedo tratei de continuar o propósito de minha saída: encontrar o Rio Jordão. Em campo, porém, logo percebi que isso só seria possível na minha imaginação. Afinal, aquele não era um rio, mas sim um canal.
Recife hoje tem 99 canais, ou melhor, ex-rios e riachos que foram rebaixados. Na década de 1990, o Projeto Nassau canalizou o Rio Jordão, que teve seu leito de curso d’água comprimido para evitar alagamentos e abrir os caminhos para o “desenvolvimento”. Muito da não-existência de pontes na cidade vem da sua relação historicamente abusiva com as populações das chamadas “áreas alagadas”. E não de agora o “solo seco” significa a exclusão dessas pessoas. Com a canalização do ex-rio Jordão, houve um crescimento do sistema viário e do setor imobiliário. Não por acaso, suas “águas secas” passam pelo bairro de Boa Viagem, o mais populoso do Recife, um dos mais ricos e, também, conhecido cartão-postal.
O ‘solo seco’ na área nobre do Jordão contrasta com o manguezal na região mais pobre
Mas antes de chegar lá as águas nascem na periferia, de onde comecei a reportar. Decidi pular no canal assoreado e recém “limpo” pela prefeitura. No olhômetro, apenas uns dois metros de altura para baixo. Calculando impulso, altura e envergadura, imaginava que voltaria facilmente à rua. Porém, dentro do canal, acabei “afundando”. O solo arenoso era instável. Bateu um leve desespero. Mas seu Luiz, de 61 anos, morador da região, viu a situação e prontamente trouxe uma escada para mim. Minha gratidão ao seu Luiz, do bairro do Jordão.
A partir daí, continuei seguindo o ex-rio, desta vez em territórios nobres, onde estão excelentes colégios, supermercados, condomínios, shopping center e algumas pequenas comunidades que ainda resistem ao “solo seco” da Zona Sul. Chegando na altura da Via Mangue, a maior e mais onerosa obra viária do Recife, o canal Jordão deixa de ser “concretado” e passa a ganhar os contornos de um rio. Todo o ambiente se transforma e dá lugar a terra batida, assentamentos simples, postes improvisados e mangues tomados de lixo e entulho. Havia chegado à comunidade Irmã Dorothy, no bairro da Imbiribeira. Entretanto mais parecia que tinha entrado num portal para outra cidade.
Gérson: vendedor de camarão sem CPF em vida
No primeiro dia útil como prefeito do Recife, João Campos (PSB) prometeu mudar a realidade das mais de 10 mil pessoas que moram nessa região. Uma realidade (não recente) de sofrimento, como me diz Gérson, apenas Gérson, de 38 anos. Ele é morador da beira do Rio Jordão desde 1983 ou desde que “tudo era mato”. Quando nos encontramos, ele pedalava de volta para casa após mais um dia de trabalho. Gérson é vendedor. No bagageiro dianteiro da bicicleta emprestada, trazia mais de três quilos de camarão cinza lá da Ilha de Deus, uma tradicional comunidade pesqueira.
A maior parte da sua família, residentes ou não da ilha, trabalha com frutos do mar. “Minha família nasceu, morou e cresceu até hoje na beira da maré. Vendem camarão, tem viveiro, sururu, é tudo de lá da ilha”, diz. Desde os 14 anos, Gérson vive lavando carros e descarregando caminhão, dentre outros clássicos da informalidade. Tem documento de identidade, mas nunca conseguiu tirar CPF. Sem CPF, nunca conseguiu tirar título de eleitor. Gérson nunca votou em ninguém. No cotidiano, porém, o que mais lhe causa afetação nem é não votar, mas sim a impossibilidade de ingresso na formalidade.
“A pessoa perde trabalho, varão. Não vai conseguir sem documento”, o que já lhe aconteceu diversas vezes. Gérson ajuda a sustentar três filhos. Tudo começou com uma paternidade precoce, ainda aos 17 anos. “Ser pai é um compromisso. Não é brinquedo, não é boneco”, diz. Hoje, a filha de 19 anos mora com a mãe em outro estado. Os dois menores, com os avós paternos, em outro ponto do bairro. Mesmo em lares diferentes, diz que procura estar sempre próximo dos três. Na beira do rio, ele vive sozinho numa casa feita de tábua, telha e compensado de madeira.
Falta água nas casas em frente ao maior manguezal em área urbana do país
Quando não está trabalhando com camarão, gosta de jogar futebol e de ir para a igreja. Gérson é evangélico. Naquela tarde, enquanto ele colocava os camarões em sacos para serem guardados na geladeira do vizinho, eu fui até o manguezal ver se conseguia tirar uma boa foto do Rio Jordão. Como a vegetação volumosa bloqueava a vista, tive a ideia de subir numa árvore. Mas antes de chegar lá, meu sapato acabou preso dentro do solo úmido. Ao tentar tirar um sapato, acabei ficando sem os dois. E, desequilibrado, caí com as duas mãos na lama.
Gérson me levou na casa do seu outro vizinho, que tinha uma bomba d’água, para eu tirar a lama dos braços e pernas. Tudo isso acontecia bem em frente ao Parque dos Manguezais, uma unidade de conservação do Recife. O parque não é bem um parque, é o maior manguezal em área urbana do país, berçário da vida marinha e estuário de quatro rios, dentre eles o Jordão. Mesmo morando ao lado de um ecossistema tão abundante, as pessoas da Irmã Dorothy e adjacências carecem de elementos básicos para viver, inclusive água dentro de casa.
Rio Tejipió vaza com frequência e causa alagamentos na capital
Assim como os rios, as pessoas também mudam o tempo inteiro. E a essa altura, após perguntar aqui e acolá sobre os rios Capibaribe, Beberibe e seu afluente Morno e o ex-rio Jordão, eu aprendera algo importante: o recifense, definitivamente, não conhece a sua cidade. Não tão raro eu perguntava alguma informação a um morador da beira do rio e ouvia como resposta: “Que rio?”. Na capital as águas fluviais são comumente conhecidas como “maré”, quando ainda dá para pescar algo; ou “canal”, quando serve apenas para receber lixo e esgoto.
A exceção que foge à regra são as comunidades pesqueiras, que têm uma relação de afeto e sobrevivência com os rios. Mas trata-se de uma minoria. No geral, as águas da Veneza brasileira têm pouca ou nenhuma utilidade, e costumam ser notadas apenas em dias de alagamento. Ainda nessa manhã, estava na rua à procura do Rio Tejipió, cujas águas alagam e chegam à capital numa área cercada de morros e de alta densidade populacional.
Na Zona Oeste, no bairro do Coqueiral, comecei a pedalar devagarinho. Passei por duas unidades ambientais de conservação, a Mata do Barro e o Engenho Uchôa, até encontrar uma pequena comunidade assentada na beira do rio e do trilho do trem. São centenas de casas ao lado de uma conexão férrea que pertence à Transnordestina Logística S.A. Aqui no Caçote os moradores vivem ameaçados por um despejo presente ou futuro, ainda mais cientes do que anda acontecendo no bairro vizinho do Ibura com as mais de 200 famílias da comunidade da linha férrea. Lá, a ordem de despejo tinha o prazo de 4 de maio de 2021.
As pessoas seriam postas na rua, em uma das piores fases da pandemia, sem receber indenização e/ou encaminhamento de moradia. Após uma mobilização social e política, a comunidade da linha conseguiu adiar o prazo de remoção para dezembro de 2021. Até que algo concreto seja feito, todavia, o sentimento de insegurança permanece. Segundo o Plano Local de Habitação de Interesse Social (de 2017), o déficit habitacional da capital pernambucana é estimado em 71 mil unidades. Um número alto, ainda de antes da pandemia.
Alcione: vítima de abuso sexual e moradora de um beco às margens do Rio Tejipió
Aprofundar a cidade fora dos trilhos era necessário. Entretanto eu precisava acompanhar o Rio Tejipió. Uma vez navegando pela Rua Ximboré, fui encontrado por Alcione Estela, de 55 anos. Ela percebeu meu medo. Para continuar a seguir o rio eu precisava entrar num beco. E nenhum ser humano entrava naquele beco. Ela decidiu me acompanhar. “Não sou nada, não. Mas como moro aqui há muitos anos eles me conhecem”, disse ela na beira da maré. “Na cheia que teve, a água deu aqui, olha (apontou na altura da cintura). Ninguém passou pelo beco não”.
Já no fim da tarde, famílias chegavam ao Beco da Emlurb, que leva esse nome por estar colado à Autarquia de Manutenção e Limpeza Urbana do Recife (Emlurb). Mesmo avizinhados de um órgão público, os moradores desse beco sequer têm calçamento, água encanada e postes de iluminação pública. Eles estão espremidos entre um muro e o Rio Tejipió, que enche. Em áreas alagáveis como essa, Alcione cresceu. Ainda criança, levava vidrinhos para capturar os peixes no rio. No entanto, o episódio dos peixinhos é um dos raros momentos lúdicos do qual se recorda. Com menos de 6 anos, ela começou a ser molestada pelo padrasto. “Eu não gosto nem de falar nisso, porque dá uma mágoa. Mas eu nunca esqueci”, disse.
Passou-se meio século, mas ela não esquece. Aos 13 anos, começou a trabalhar de doméstica. Seguia os passos da irmã mais velha que bem antes, aos 8 anos, já “subia no banquinho para lavar os pratos da pia”. Sem saber ler, Alcione ia sozinha para outros bairros, cuidava de outras crianças, cozinhava, lavava roupa e fazia faxina. E assim seguiu mais tarde ao longo da vida. Quando não aparecia trabalho, saía nas ruas para pegar fios de cobre e latinhas.
Nove filhos e uma rotina de violência em áreas alagáveis
Aos 16 anos, precisou sair de casa com a chegada do seu primeiro filho. Mas ela diz que é a perda do seu terceiro, então um bebê de apenas 1 ano e 4 meses, que mais lhe causa dor e revolta. Ela o levou ao hospital, onde o bebê teria morrido. Para piorar a história, o hospital teria sumido com o corpo. Alcione tinha 19 anos e diz que, ao voltar para casa, foi chamada de assassina pelo ex-marido. Convivia com uma rotina de xingamentos, ameaças e violências. Num segundo relacionamento, por volta dos 30 anos, ela passou por um outro momento muito difícil. Sozinha e grávida, caminhava com dois sacos de pó de serra pelos trilhos do trem quando um homem a abordou com extrema violência. Ao ser derrubada, foi estuprada.
Se é que há um lado bom, desde então Alcione, sozinha, tem conseguido criar os seus nove filhos. Dois moram na sua casa e os demais nas redondezas do Caçote. Ela diz que sua maior luta é fazer com que o caçula, de 13 anos, continue motivado em meio aos estudos à distância. Seu único sonho, diz, é ter um lugar na comunidade para “cuidar de um bocado de menininho, dar lanche e ensinar o que é bom”. Em seguida ela me “escoltou” até a Avenida Recife, onde nos despedimos.
Recife, cidade sem pontes
Segui pedalando até a Bacia do Pina, estuário onde o Rio Tejipió encontra o braço sul do Capibaribe, além dos rios Pina e Jordão. Cheguei ao fim do percurso certo de que não cuidamos de nossas águas tampouco das pessoas que assentam em suas margens.
Com ou sem pandemia, as nossas pontes não existem. Ser a capital da desigualdade é um título que nenhuma cidade deseja para si. Como um rio, precisamos mudar. E rápido. No Recife a última gota d’água já caiu faz tempo.