Por Oscar Valporto, publicado em Projeto Colabora –
Comemorada nas ruas em 1888, a abolição, sancionada pela princesa Isabel, é pouco celebrada no Brasil desigual, racista e violento de 2019
Fazia sol naquele domingo, 13 de maio de 1888, dia da Abolição da Escravatura. Quem contou foi Machado de Assis – não me caberia fazer objeções. “Houve sol, e grande sol, naquele domingo de 1888, em que o senado votou a lei, que a regente sancionou, e todos saímos à rua… Todos respiravam felicidade, tudo era delírio. Verdadeiramente, foi o único dia de delírio público que me lembra ter visto” – escreveu Machado em crônica cinco anos depois. Os registros, aqui, corrigem nosso maior escritor: foram dias de festa, até o domingo seguinte, e festa na rua como convém a esta cidade de São Sebastião.
Mais de 130 anos depois, o 13 de maio já não é mais motivo de comemorações nem leva gente para a rua. Com a perspectiva história, os descendentes dos escravos entenderam que a lei 3353, batizada de Lei Áurea, mudou muito pouco a situação de seus antepassados na sociedade brasileira. Mas, em 1888, a abolição era mesmo para ser comemorada. O Brasil era o único país de toda a América onde a escravidão era legal. De acordo com o Censo de 1872, dos quase 10 milhões de habitantes – 15,2% eram escravos. Nem os abolicionistas talvez imaginassem os efeitos dos três séculos e meio de escravidão: a sociedade desigual, racista, elitista e violenta estabelecida no Brasil até este Século XXI.
O que a maioria dos brasileiros sabia era aquela lei simples, encaminhada pela princesa regente Isabel no dia 8 de maio ao Parlamento era para ser celebrada. Desde março, quando caíram o gabinete conservador, comandado pelo escravocrata Barão de Cotegipe, os abolicionistas esperavam a lei, encaminhada pela princesa três dias depois da abertura dos trabalhos legislativos, que não poderia ser mais curta – dois artigos, 17 palavras: “Art. 1°: É declarada extincta desde a data desta lei a escravidão no Brazil. Art. 2°: Revogam-se as disposições em contrário”.
A aprovação foi relâmpago mas, como todas já esperavam a iniciativa da família real, apesar da doença do Imperador, em tratamento em Paris, os jornais – todos abolicionistas – já tinham começado a preparar as festas. Em três dias, os deputados da Câmara Geral – que funcionava na Cadeia Velha, prédio derrubado em 1922, para dar lugar ao Palácio Tiradentes onde hoje funciona a Assembleia Legislativa do Rio por 83 a 9 na primeira votação e por aclamação na segunda. No mesmo dia 11, sexta, a lei já estava no Senado com os senadores dispostos a trabalhar todo o fim de semana para aprová-la.
Na manhã de sol do domingo, alertada pelos jornais, uma multidão tomou as ruas em torno do prédio do Senado, no Palácio Conde dos Arcos, onde hoje funciona a Faculdade de Direito da UFRJ, no Campo de Santana. Um clima festivo esperava a notícia: os senadores aprovaram a lei 3533, no começo da tarde, com apenas um voto contra. E saíram dali – em carruagens, cavalos e alguns até a pé – para levar a Lei Áurea ser assinada pela princesa Isabel que os esperava no Paço Imperial, na então Praça de Dom Pedro II, ou Largo do Paço como todos conheciam a hoje Praça XV.
Uma multidão – inclusive muitos escravos e ex-escravos – cercava o palácio para saudar a regente. Depois de assinar a lei, em solenidade só para a elite da Corte, Isabel foi a sacada acenar para os brasileiros que, em seguida, começaram sua festa, seguindo em cortejo até a Rua do Ouvidor onde ficavam a sede dos principais jornais do país, todos empenhados na campanha abolicionista e com suas sedes enfeitadas para a celebração.
Foram os jornais que organizaram as festas da Abolição; de quinta-feira ao domingo seguinte. Entre segunda e quarta, também teve festa, mas ficou por conta dos batuques noturnos dos negros, principalmente na Pequena África – Saúde, Santo Cristo, Gamboa. Neste 13 de Maio de 2019, como em todas as segundas-feiras, vai ter um batuque, uma roda de samba na Pedra do Sal, antiga área de Quilombo, ali na Pequena África.
Em 1888, a festa organizada também começou na rua – com uma missa campal para milhares de pessoas na Quinta da Boa Vista onde a Princesa Isabel, personagem principal, morava. À noite, em torno dos coretos em São Cristóvão, no Boulevard de Vila Isabel e no Largo do Paço, foram promovidos bailes populares, que repetiram-se até domingo. Os jornais calcularam 30 mil pessoas nos bailes de sábado à noite. Na sexta, houve regatas na Baía de Guanabara e corridas de cavalo no Derby Club (onde hoje é o estádio do Maracanã), tudo aberto ao público e com provas em homenagem à regente, à família real e aos abolicionistas. Nos dois dias úteis, as repartições públicas e o comércio fecharam mais cedo ou nem abriram para que todos pudessem ir para rua.
O fim de semana foi de multidão, com desfiles cívicos: sábado, dos estudantes; domingo, de outras entidades. O percurso repetia, basicamente, o caminho da lei no 13 de Maio: saía do Senado, atravessava o Campo de Santana, entrava na Rua da Constituição; passava pelo Largo da Constituição (hoje Praça Tiradentes) e a estátua de D.Pedro I com saudações à família real; seguia pela Rua do Teatro até alcançar o Largo de São Francisco, onde entrava na Rua do Ouvidor, para passar pela sede dos jornais organizadores da festa, até chegar no Largo do Paço. No sábado, 19 de maio, desfilaram pelas ruas mais de 3 mil alunos – inclusive dois filhos da princesa – de 35 colégios. No domingo, passaram sociedades carnavalescas, clubes abolicionistas, batalhões do Exército, da Marinha e dos Voluntários da Pátria, clubes esportivos, associações estrangeiras. Levavam estandartes e bandeiras; como os estudantes, muitos estavam uniformizados. Era uma festa para ver e ser visto, quase carnaval Só faltava a música, que chegava de noite, na hora dos bailes.
Às vésperas do 13 de maio de 2019, ainda há registros do cenário de 131 anos atrás no trajeto da lei: o prédio do Conde dos Arcos, agora com uma bandeira do Caco contra o fascismo; os jardins do Campo de Santana, cortados pela metade depois da inauguração da Avenida Presidente Vargas; o prédio da Casa da Moeda, hoje Centro Cultural na esquina da Rua da Constituição; a estátua de Pedro I na Praça Tiradentes, a Igreja de São Francisco. Centro da festa, a Rua do Ouvidor perdeu as características arquitetônicas e mesmo sociais do fim do XIX, exatamente no trecho entre a Avenida Primeiro Março e a Rua da Quitanda, onde ficavam a sede dos jornais. Para compensar, entre a Primeiro de Março e perto do Largo do Paço, a festa e a própria Ouvidor estão mais vivas e é o samba, a música dos escravos que – como sempre na Pedra do Sal e muitas vezes na Praça Tiradentes – marca o ritmo da resistência a este presente ainda desigual, racista e violento.
Na foto da capa, A princesa Isabel surge num dos balcões do Paço da Cidade e é aplaudida pela multidão
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Oscar Valporto é carioca e jornalista – carioca de mar e bar, de samba e futebol; jornalista, desde 1981, no Jornal do Brasil, O Globo, O Dia, no Governo do Rio, no Viva Rio, no Comitê Olímpico Brasileiro. Está de volta ao Rio após oito anos no Correio* (Salvador, Bahia), onde foi editor executivo e editor-chefe. É criador da página no Facebook #RioéRua, onde publica crônicas sobre suas andanças pela cidade.