RioéRua em defesa da Dias Ferreira

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Por Oscar Valporto, compartilhado de Projeto Colabora – 

Rua mais antiga do Leblon tem espírito de bairro e não é sua culpa se irresponsáveis e omissos a tornam símbolo da disseminação da pandemia

A Rua Dias Ferreira tem fama – tem fama de ser a rua mais antiga do Leblon, chamada dois séculos atrás de Rua do Sapé (ou Caminho do Pau) que ligava o Largo da Memória (desde 2003, batizado de Sergio Vieira de Mello, em homenagem ao diplomata morte em atentado), ali perto do antigo batalhão da PM às chácaras na subida do Morro Dois Irmãos. Há 113 anos, em outubro de 1917, quando o bairro começava a ser urbanizado, ganhou seu nome atual em homenagem ao médico Antônio Dias Ferreira, eleito para o Conselho Municipal do Rio de Janeiro, então Distrito Federal, em 1892 – no ano seguinte, ele exerceria interinamente, por um mês, o cargo de prefeito, por ser o presidente do conselho.




A Rua Dias Ferreira tem fama – tem fama de ser uma das ruas do Leblon onde prevaleceram os imóveis de uso misto, residencial e comercial, que são fundamentais para manter um bairro – qualquer bairro – com cara de bairro. A rua também tem 21 imóveis preservados pelo decreto de criação da Área de Proteção do Ambiente Cultural (APAC) do bairro do Leblon, quase todos no trecho inicial: pela numeração, a Dias Ferreira começa na Ataulfo de Paiva e termina na Bartolomeu Mitre. São prédios baixos, de dois ou três andares, construídos em meados do século passado.

O La Mole, restaurante mais antigo da Dias Ferreira, inaugurado em 1958: testemunha das mudanças constante nos concorrentes da vizinhança (Foto: Oscar Valporto)
O La Mole, restaurante mais antigo da Dias Ferreira, inaugurado em 1958: testemunha das mudanças constante nos concorrentes da vizinhança (Foto: Oscar Valporto)

A Rua Dias Ferreira tem fama – tem fama de boemia, de concentração de restaurantes e bares, de movimento dia e noite. A fama não é nova: começou lá no final da década de 1970 quando o Baixo Leblon virou sinônimo de badalação noturna no Rio de Janeiro. O epicentro da muvuca nem era na Dias Ferreira. Ficava na esquina da Ataulfo de Paiva com Aristides Espíndola – onde estavam o Real Astoria (fechado em 1994), a Pizzaria Guanabara  (que não resistiu a pandemia), e o Diagonal, único sobrevivente – e se estendia pela caçada da avenida até o Luna Bar, passando pelo Jobi.

No começo dos anos 1980, na Dias Ferreira, a noite também ia longe no Gatão, no Final do Leblon, no Bozó – os campeões da boemia ao lado da lanchonete Gordon, bem no encontro com a Ataulfo de Paiva, onde os mais jovens paravam para um sanduíche. E, não até tarde, no Alt Munchen, no Yune’s, no Mineiro de Botas, no Tio Sam. Com a multiplicação dos restaurantes e bares, os jornais já registravam, quase 40 anos atrás, conflitos entre moradores e frequentadores, reclamações contra o barulho e os automóveis parados em fila dupla.

Nestas quatro décadas, a fama de ponto boêmio cresceu: cheguei a contar, dois anos atrás, 38 pontos de venda de bebida e/ou comida nos pouco mais de 600 metros da Dias Ferreira. Durante a pandemia, virou má fama, com flagrantes de aglomeração e barracos espalhados através das redes sociais. Nestes 40 anos também, mesmo com a fama, poucos foram os estabelecimentos sobreviventes, o que pode ser constatado por uma caminhada. Dos 33 estabelecimentos de venda de bebida e/ou comida, contados na semana passada, só o tradicional – e nada boêmio – restaurante La Mole, de 1956, e o botequim (no sentido mais clássico da palavra) Embalo, de 1968, testemunharam a virada dos anos 70 para os anos 80.  Dos outros, o mais antigo é o chique Sushi Leblon, aberto em 1986.

Embalo, legítimo botequim carioca, desde 1968 na Dias Ferreira: alternativa popular em meio a restaurantes caros (Foto: Oscar Valporto)
Embalo, legítimo botequim carioca, desde 1968 na Dias Ferreira: alternativa popular em meio a restaurantes caros (Foto: Oscar Valporto)

Não estou agourando qualquer lugar, sou a favor de rua e movimento – exceto em tempos de pandemia. Mas a história da Dias Ferreira mostra que o cenário vai mudando com o tempo e as modas. Quarenta anos atrás, o Gatão era frequentado por universitários mais politizados que tomavam chope com batata frita. Intelectuais frequentavam o Bozó pelo uísque honesto e o picadinho. Um dia, no Final do Leblon, Chico Buarque chegou com um gravador enorme, daqueles de rolo, para mostrar uma música recém-composta ao amigo Ruy Guerra.

A tendência atual mistura bares com perfil mais jovem, com restaurantes bem caros. Parece que o clima anda um tanto estranho – não posso confirmar porque não passo lá à noite para evitar aglomerações. Não é de surpreender: tem muita gente ignorante e irresponsável – do Palácio do Planalto a ruas de todo o país. E o Rio, como se sabe, sofre com uma administração omissa e inepta. Como a pandemia, tudo isso, um dia, também vai passar. Mas a Dias Ferreira vai continuar movimentada: já era assim quase um século atrás quando começou a urbanização do Leblon; continuará assim enquanto prevalecerem imóveis de uso misto, enquanto conviverem residências e comércio. Em qualquer parte, de qualquer cidade, é assim que vivem as ruas, assim sobrevivem os bairros.

#RioéRua

Na foto: Trecho da Rua Dias Ferreira preservado como APAC (Área de Proteção do Ambiente Cultural): imóveis de uso misto (Foto: Oscar Valporto)

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