Leia a seguir o depoimento do jornalista José Casado em homenagem ao então diretor da Gazeta Mercantil (onde o autor era editor de política) Roberto Müller Filho, que morreu nesta terça-feira (4/6):
Compartilhado da Revista CONJUR
“— Você é o … — perguntou.
— Sim. E você? – respondeu.
— Eu sou o (Roberto) Müller (diretor de redação).Playvolume
— Ah, prazer. Estou aqui há poucos dias e não conheço quase ninguém.
— Tudo bem, seja bem-vindo — disse, rindo. — Queria conhecer o jornalista que publicou a reportagem contra a empresa dos donos do jornal.
— Como? Desculpe, não entendi.
Reprodução
— É, essa matéria (sobre um projeto de reflorestamento) que saiu na primeira página hoje não é sua? Está lá, assinada. É uma boa reportagem. Você não sabia que a empresa criticada é da família dos donos do jornal?
— Não, nem imaginava…
— Isso é bom, muito bom porque mostra que temos critérios.
O diretor seguiu, rindo de alegria pelo ‘susto’ no repórter recém-chegado, desligado de coisas mundanas como a relação entre os sobrenomes dos acionistas de uma empresa reflorestadora e os donos do jornal. Teriam várias conversas parecidas, sobre casos diferentes, nos anos seguintes.
Foi com esse tom afável e extrema habilidade que Roberto Müller Filho conduziu a transformação de um boletim de cotações de mercado, no início dos anos 70, no mais relevante jornal de economia brasileiro das duas décadas seguintes.
Fez da Gazeta Mercantil produto indispensável para leitores, quase todos assinantes; essencial para anunciantes, que, a certa altura, aceitaram pagar US$ 54 mil por anúncio de página inteira; e importante para jornalistas, entre outras razões, porque se achavam responsáveis por cada letra ou número impresso.
A ‘fábrica’, como dizia, foi uma usina de inovações, quase todas bem-sucedidas. Formou algumas gerações de jornalistas e, quando faliu, inspirou a sucessão no mercado — o Valor Econômico é caso exemplar.
Fez da leveza na conversa — a ‘estética das relações’, como definia — um guia prático de trabalho em ambiente complexo pela diversidade humana, como costumam ser as redações.
Comunista, com uma temporada de prisão na ditadura, moldou a Gazeta Mercantil até consolidá-la como ‘bíblia’ do capitalismo brasileiro. Guardou a frustração por não ter conhecido a velha Rússia, foi atropelado por circunstâncias pessoais na véspera de uma viagem a Moscou, meses antes da queda do Muro.
É dele uma das notícias mais indesejadas pelo governo do general-presidente Ernesto Geisel: a revelação, com documentos, do Acordo Nuclear Brasil-Alemanha. Custou a apreensão do jornal em São Paulo (na prática, um fiasco da ditadura porque a Gazeta Mercantil era impressa simultaneamente em diferentes cidades).
Editor-chefe, conversava com um repórter sobre uma matéria cuja publicação visivelmente se chocava com os interesses conhecidos da maior indústria automobilística da época, grande anunciante do jornal. O telefone tocou, era o presidente da montadora.
Ele não sabia, mas estava no viva-voz. Fez o pedido esperado, e fatal: que a matéria não fosse publicada.
— Certo, mas vamos combinar o seguinte — sugeriu Müller. — A gente deixa de publicar notícias e, em troca, vocês deixam de fabricar automóveis. Combinado?
Riram. No dia seguinte, a história estava no alto da primeira página do jornal, distribuído em São Paulo por frotas de veículos fabricados pela mesma montadora”.VER COMENTÁRIOS