Por Ligia Coelho, compartilhado de Projeto Colabora –
Circuito Carioca de Ritmo e Poesia se consolida como agente de transformação na cidade
Um dos bairros mais boêmios do Rio de Janeiro, Vila Isabel, de Noel Rosa e Vadico, de Martinho e Martnália, e de Luís Carlos da Vila, não nega a fama: “quem é da Vila não vacila”. Em pleno Século XXI, seu feitiço musical continua inspirando artistas e compositores populares. Contra todos os preconceitos, há quase oito anos sobrevive, na Praça Barão de Drummond, mais conhecida como Praça Sete, aos pés do centenário Convento de Nossa Senhora d’Ajuda, onde monjas vivem em regime de clausura, um evento formado por jovens artistas da comunidade, a Roda Cultural de Vila Isabel.
Mas esse não é um privilégio do bairro de Noel. Outros recantos da cidade, como Méier, Manguinhos, Olaria, Jacarepaguá, Botafogo e Ilha do Governador, também se orgulham de suas rodas. Palcos de resistência em tempos de ataque à cultura e às populações menos favorecidas, as rodas se consagraram como espaços da arte pop, urbana, mesclando variados ritmos, que vão do rap ao hip hop, do samba ao funk, reunindo MCs, DJs, beatmakers, produtores culturais e outros artistas.
“As rodas são agentes de transformação sociocultural”, assinala o rapper Dropê, um dos fundadores do Coletivo Comando Selva, precursor do movimento.
Nascidos espontaneamente no espaço urbano, esses grupos acabaram se integrando ao Circuito Carioca de Ritmo e Poesia (CCRP), projeto oriundo do Coletivo Comando Selva, que, de fins do século passado até 2009, se reunia, a convite de Gerard Miranda, no CIC, o Circuito Interativo de Circo, na Fundição Progresso, na Lapa.
No CIC, o grupo promovia batalhas de rimas e outros eventos, mas, devido a um incêndio ocorrido no local, o movimento se deslocou para as ruas. Inicialmente, esbarrou em muita resistência, até ser incorporado pelo programa de desenvolvimento cultural da Prefeitura, em 2012.
Estado tem hoje mais de 150 rodas culturais
Há muito as rodas culturais chegaram também ao interior e hoje estima-se que existam mais de cem grupos espalhados em todo o Estado do Rio. A pesquisadora Rôssi Alves, do curso de Produção Cultural da Universidade Federal Fluminense e autora do livro Rio de Rimas, listou mais de 150 rodas culturais em todo o estado.
Os números, na verdade, são flutuantes, variam muito, conforme os grupos vão surgindo, se fundindo ou se extinguindo. Expansão que justifica o interesse do Estado na regulamentação do movimento. Em nível estadual, a Lei 7.837, de 2018, declarou patrimônio cultural e imaterial do Estado do Rio de Janeiro a cultura hip hop e todas as suas manifestações artísticas, como break, grafite e rap. A norma proíbe qualquer tipo de discriminação ou preconceito, seja de natureza social, racial, cultural ou administrativa contra a cultura hip hop ou seus integrantes.
O produtor Jonathan Ferreira relata que, no início, o movimento enfrentou muitas dificuldades. Após a regulamentação, ganhou mais liberdade. Apesar disso, considera que a relação com a polícia permanece ruim, porque “acham que a roda é culpada pelo uso de drogas no local”. “Mas não é verdade, basta caminhar por Vila Isabel fora do dia da roda pra se constatar isso”, diz.
Artistas relatam experiências
“A roda de Vila Isabel foi uma porta que se abriu pra mim, uma escola onde eu conheci os caras que me ensinaram muitas coisas”, relata Maskot, produtor, beatmaker e MC, que iniciou a carreira como DJ aos 13 anos. Entre outros nomes que o inspiraram, cita os beatmakers Mestre Xim e Goribeatzz e artistas como BK e De Leve.
Ele conta que em sua carreira tem tido altos e baixos, com períodos de sucesso, em que chegou a viajar e se apresentar fora do Rio, com patrocínio de uma famosa marca de tênis. Também foi técnico de som de MC Jonas, com grande impulso em sua carreira. Depois, devido à crise, voltou a trabalhar em casa, sozinho. Junto com outros artistas, criou o selo independente Kotfy.
Vencedor de batalhas no bairro de Noel, MC Xan afirma que a roda cultural de Vila Isabel foi “um divisor de águas”, tanto na sua vida pessoal quanto no bairro. Segundo ele, o movimento, no início, “era muito mais marginal do que hoje”.
Dropê, do Coletivo Comando Selva, afirma que, no atual contexto do País, com a criminalização de movimentos sociais e artistas populares, integrantes das rodas devem considerar a necessidade de reforçar a resistência, para evitar voltar à marginalidade. “Agora é resistência mesmo.”
Espaços de sociabilidade e afirmação cultural
As rodas culturais, na prática, não se restringem à música nem se limitam às batalhas e disputas de rimas. O movimento agrega outros tipos de arte urbana, como os grafites e a dança de rua, com apoio de fotógrafos populares e videomakers. Mais do que um palco para apresentação de artistas, as rodas são espaços de sociabilidade e afirmação cultural, como se depreende do depoimento do DJ Sardinha:
– Faço de tudo um pouco. Sou produtor, DJ, carrego caixa de som, fecho shows. Roda cultural é isso: sinônimo de união, de trabalho pra todos. A gente faz pela comunidade, pelo bairro. A roda representa muito pra mim. Dá trabalho, é cansativo, mas muito gratificante. Tem moleque que poderia estar traficando, ‘plantando na boca’, mas tá lá, improvisando. Quando começamos, eram garotos, sem expectativa nenhuma, e hoje são artistas, seguindo carreira, gravando CD, ocupando a cabeça com coisas positivas, botando a vida pra andar. Então, é muito gratificante fazer parte desse projeto, conclui.
É o que pensa também o produtor Jonathan Ferreira. “O movimento é absolutamente imprescindível na educação das crianças e jovens carentes. Ali, eles têm alguma expectativa de vida, um porto seguro, um contraponto para a rotina pesada”.
“Sempre teve roda na história da humanidade, a gente só ressignificou um momento”, observa MV Hemp, de Bangu, um dos precursores do movimento no Rio. “A gente não é dono do espaço público, não é dono de nada, não é dono do planeta, não, já chega o estado vendendo essa fantasia. A gente negocia com o estado, sim, mas tem que articular e subverter. Vai lá, capta recursos pra uma ideia, mas a gente não paga imposto à toa, o dinheiro é nosso. Qual foi?”