Rondônia devastada

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Madeireiros, grileiros e empresários do agronegócio se apossaram do Estado rondoniense. Pela vontade deles, já não haveria mais florestas. Mas elas resistem graças aos povos indígenas e às Unidades de Conservação. Desmatamento dentro da Terra indígena Karipuna (Foto: Alexandre Cruz Noronha/Amazônia Real)

Por Fabio PontesElaíze Farias e Karla do Val, compartilhado de Amazônia Real  




Porto Velho (RO), Manaus (AM) e São Paulo (SP) – Uma pequena ponte de madeira sobre o igarapé Fortaleza separa a Terra Indígena (TI) Karipuna da área de reserva legal de uma fazenda em Porto Velho, a capital de Rondônia. E basta avançar um pouco pela estrada de terra que vem a seguir para avistar os primeiros troncos de árvores carbonizadas. Eles são o sinal de que uma queimada aconteceu ali e não faz muito tempo. Onde antes havia floresta, os desmatadores espalharam sementes para cultivar um roçado com plantações de abóboras, mandioca e milho. E, não satisfeitos, donos de fazendas vizinhas exibem placas de identificação à margem do rio Formoso, no limite da TI. É difícil dizer onde termina uma área e começa a outra. Essa confusão facilita a vida dos invasores.

A área invadida logo na entrada da TI é apenas uma de muitas frentes de pressão que os Karipuna vêm sofrendo. Eles estão cercados por gado e soja, e ainda vêem o roubo de madeira de dentro de suas áreas acontecer à luz do dia. Madeireiros e grileiros se sentem à vontade para invadir terras públicas e praticar seus crimes na certeza de que nada lhes acontecerá. A lei pode não protegê-los, mas os governantes fazem de tudo para garantir a eles um negócio lucrativo.

A TI Karipuna faz divisa, a leste, com a Reserva Extrativista (Resex) Jaci-Paraná. Uma está de frente para a outra, separadas pelo rio Jaci-Paraná. Mais ao sul a fronteira é com o Parque Estadual de Guajará-Mirim. As duas Unidades de Conservação serviriam, em tese, como zona de amortecimento para pressões da grilagem.

Com uma área de 153 mil hectares, a terra indígena está na margem esquerda do rio Jaci-Paraná. Após os Karipuna quase serem exterminados pelo contato com o homem branco durante o processo de ocupação do que hoje é Rondônia, nas primeiras décadas do século passado, eles conseguiram se reorganizar. Dos 8 indígenas sobreviventes da época do contato, hoje são pouco mais de 60.

Falantes do Tupi-Guarani e autodenominados de Ahé, “gente verdadeira” em português, os Karipuna residem hoje nas casas da única aldeia do território e alguns também na capital Porto Velho, onde estudam e trabalham. Na aldeia, que leva o nome da etnia, a principal liderança é o cacique André Karipuna, que recebe a reportagem da Amazônia Real na ponte do igarapé Fortaleza. Aos 29 anos, ele já enfrentou ameaças de morte e teve a cabeça colocada a prêmio por denunciar as invasões dentro do território. Ele está prestes a embarcar em mais uma missão, que é a de monitorar novas áreas invadidas dentro da TI, nas cercanias das fazendas vizinhas.

Vestígios da destruição

Marca de pneus em novo acesso feito pelos invasores na TI Karipuna
(Foto: Alexandre Cruz Noronha/Amazônia Real)

Era o mês de novembro, e as primeiras chuvas do “inverno amazônico” já davam as caras. Após uma hora descendo o Jaci-Paraná, André chega ao novo ponto de invasão detectado por imagens de satélite. Não é nada fácil chegar ao local pelo rio, porém é a opção mais segura.

Nessa missão em busca de vestígios da destruição, o primeiro desafio é “escalar” um barranco íngreme segurando em troncos e raízes de árvores. Nos dias chuvosos, é quase impossível ficar em pé sobre o terreno escorregadio. Mas André Karipuna sobe sem nenhuma dificuldade os mais de 10 metros do elevado barranco. Nas costas, ele carrega a espingarda que usa para se defender dos animais da floresta, e, se for preciso, também dos invasores. O aparelho GPS é outro item de sobrevivência. Há alguns anos, quando ainda não tinha o dispositivo, ele ficou quase uma semana perdido na floresta.

Para chegar até o ponto da nova invasão, serão pelo menos um quilômetro por uma mata fechada, desde a margem do rio. No caminho, André chama a atenção da reportagem para pontos feitos nos troncos das árvores. As marcações servem para indicar as áreas que serão derrubadas e invadidas já na próxima temporada de seca. É um claro sinal da audácia e certeza da impunidade em Rondônia. “Aqui é uma picada dos caras que estão grilando a terra. Eles já deixam tudo marcado para invadir no próximo verão. Cada um já vai definindo qual lote é de quem”, explica a liderança. 

Antes de chegar à área desmatada, a equipe da Amazônia Real se depara com um tapiri que pode ter sido utilizado por indígenas que não são os Karipuna, provavelmente não-contatados. O local serve como esconderijo para a prática da caça. Surpreende, mas preocupa saber da presença de indígenas isolados numa área de floresta tão pressionada pelas fazendas de gado e de soja.

Marcas de pneus de motos e tratores surgem, então, numa picada (trilha) mais aberta. Os invasores passaram pelo local há pouco tempo. E basta prosseguir por um caminho sombreado para se chegar a uma grande clareira metros à frente. Após o roubo da madeira nobre e a queimada do terreno para fazer a limpeza, os invasores jogaram sementes de capim. Isso é visível nas folhas de braquiárias, uma espécie de capim que brota e cresce rápido. “Logo, logo eles vão trazer o gado e colocar aqui. Aí depois vão aumentando a invasão”, diz o cacique André Karipuna.

Ao longe, é possível ouvir roncos de motores de tratores e caminhões. Eles estão no sentido oposto ao que seria o limite territorial dos Karipuna. André decide arriscar para saber se não estão dentro da TI. O cacique não se aproxima demais, mas percebe que o barulho vem de fora. Eles estão trabalhando na fazenda vizinha.

Cercada de gado e soja

Plantação de soja e celeiro de grãos em Rondônia
(Foto: Alexandre Cruz Noronha/Amazônia Real)

O território histórico dos Karipuna, segundo fontes do Instituto Socioambiental – compreendia o rio Mutum-Paraná e seus afluentes da margem esquerda (a oeste), igarapé Contra e rio São Francisco (ao norte) e os rios Capivari, Formoso e Jaci-Paraná (ao sul e leste). “Este território em parte convergia com a área de ocupação dos Uru-Eu-Wau-Wau e Amondawa (ao sul), Pacaá-Nova (a oeste) e Karitiana (ao norte e leste)”.

A TI Karipuna está localizada nos municípios de Porto Velho e Nova Mamoré. “Ali os Karipuna estão reunidos na aldeia Panorama. A TI tem como limites naturais os rios Jaci-Paraná e seu afluente pela margem esquerda, o rio Formoso (a leste); os igarapés Fortaleza (ao norte), do Juiz e Água Azul (a oeste) e uma linha seca ao sul, ligando este último igarapé às cabeceiras do Formoso”.

Atualmente, a Terra Indígena Karipuna está quase toda cercada por fazendas de gado e de soja. Apenas as áreas que margeiam o Jaci-Paraná estão preservadas. Preservadas, mas não livres da entrada de intrusos e invasores.

O cacique André Karipuna não está sozinho na sua luta para escapar da extinção. Adriano e Eric são seus irmãos e cunhado, respectivamente. Os três são as principais lideranças de um povo que luta teimosamente pela sobrevivência. Eles já perderam as contas de quantas denúncias fizeram em cartas, ações judiciais e quantos foram os apelos na mídia, em entrevistas para jornalistas. Em abril de 2021, Adriano Karipuna denunciou as invasões na 20ª Sessão do Fórum Permanente da ONU sobre Assuntos Indígenas, e novamente no último dia 10 de abril, quando falou, de forma remota, na 49ª sessão do Conselho de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU). “Estamos cercados pelos invasores do nosso território. Tememos ser assassinados dentro de nossa própria aldeia”, disse ele.

Em 10 de dezembro de 2021, a Associação dos Povos Indígenas Karipuna (Apoika) encaminhou à Polícia Federal (PF) e ao Ministério Público Federal (MPF) documento relatando o novo flanco aberto pelos invasores, na região do rio Formoso. O rio vem da região do Parque do Guajará-Mirim e vai se encontrar com o Jaci-Paraná, fazendo o limite Sul da Terra Indígena.

O trabalho de fiscalização do cacique André e dos demais Karipuna tem produzido abrangentes relatos da gênese do desmatamento contemporâneo no Brasil. Esses registros trazem informações detalhadas, com coordenadas geográficas, de roubo de rodas de madeira na região do rio Formoso e da construção de pontes clandestinas pelos invasores.

No ano de 2021, se intensificaram as invasões, já foram feitas várias denúncias e até o momento não houve uma operação de fiscalização com resultado satisfatório. Com isso, a comunidade ficou impossibilitada de coletar castanha pela presença ameaçadora dos invasores, que transitam livremente pelo local”, diz um trecho da denúncia.

Uma cópia desse documento foi parar nas mãos da procuradora da República Tatiana de Noronha Versian Ribeiro e outra nas da delegada da Polícia Federal Larissa Brenda. A procuradora afirma que o MPF instaurou uma nova investigação, que está em curso, e não há previsão para uma nova operação.

SOS Karipuna

Cacique André Karipuna (Foto: Alexandre Cruz Noronha/Amazônia Real)

A última grande operação policial e de combate ao crime ambiental foi em 2020. Era o ano da pandemia e, segundo a procuradora, isso alterou bastante o cronograma das ações. “Descobrimos que o grupo que atuava com o loteamento na TI Karipuna estava se rearticulando e fizemos outra operação contra Ediney Holanda dos Santos. O processo já é público, já teve denúncia. Ele era exatamente o mesmo líder da operação anterior (SOS Karipuna, de 2019)”, lembra ela.

Ediney Holanda dos Santos foi um dos nove denunciados pelo MPF pelos crimes de organização criminosa, estelionato, invasão para ocupação de terras da União, desmatamento sem autorização e lavagem de dinheiro, em 2019. Ela é resultado da Operação Kawyra (desdobramento da SOS Karipuna), na qual a PF constatou invasões,  destruição ambiental e loteamento de áreas dentro da TI Karipuna. Também foram denunciados Cristiane Gomes da Silva, Antonio Machajecki, Sebastião Quintino Alves, Margarethi Alves de Morais, Zé Barbudo, José Pinheiro, Aparecido Quintino Alves e Abraão de Oliveira Brito. As empresas Amazon Gel e Asprube – Associação dos Produtores Rurais Boa Esperança também estavam envolvidas.

As investigações constataram que o loteamento ilegal dentro da TI Karipuna era promovido pela associação Azote, que prometia a regularização da área no Distrito de União Bandeirantes. A Associação dos Produtores Rurais Boa Esperança (Asprube) seria a responsável pela assistência jurídica para regularizar a terra e retirar os invasores da prisão. Já a empresa Amazon Gel, localizada no mesmo Distrito de União Bandeirantes, registrada em nome de Cristiane Gomes da Silva, era responsável pelo georreferenciamento dos lotes.

A procuradora Tatiana Ribeiro lembra que chegou no MPF de Rondônia em 2018 e logo depois foi constituída a Força Tarefa Amazônia que atuou em alguns Estados da região Norte. A primeira operação aconteceu na TI Karipuna, em setembro de 2019, visando justamente desmantelar um grupo que loteava terras.

“A Polícia Federal foi lá e fez a destruição das pontes. Eram umas sete pontes, quando deflagraram a (operação) Karipuna I, em 2019. Já tinha esse mapeamento porque era objetivo nosso destruir. Só que conseguimos destruir só duas em 2019. O mapeamento foi feito com o auxílio da Associação Karipuna e do Greenpeace. E essa foi a última ação concreta que fizemos lá. Desde então continuamos em contato”, afirma.

Fazendas com placas

Anúncio de venda de terra na Resex Jaci-Paraná
(Foto: Alexandre Cruz Noronha/Amazônia Real)

A TI Karipuna foi homologada em 1998, mas o histórico de invasões remonta há quase dez anos. Laura Vicuña, do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), lembra que as invasões aumentaram em 2011, mas somente seis anos depois é que os indígenas conseguiram dar visibilidade às ameaças que sofriam. Naquele ano de 2017, eles iniciaram uma série de denúncias públicas em vários fóruns nacionais, internacionais e na mídia.

Em 2019 e 2020, a Fundação Nacional do Índio (Funai) e a PF iniciaram operações de combate às invasões e retirada de madeira. Para Laura Vicuña, essas ações são “enxuga-gelo” e pontuais, isto é, não trazem resultado efetivo. Segundo ela, não há plano de proteção permanente para os Karipuna. E o fato é que as invasões não apenas não cessaram como aumentaram.

“A Polícia Federal precisa fazer uma investigação séria. A gente passa alguns nomes e algumas questões. A PF pergunta: ‘Sim, mas o que têm de concreto’? A gente responde: ‘Vocês querem que a gente vá prender a pessoa? Cabe a vocês fazer a investigação’. Não temos provas concretas. Existem indícios. Não existe materialidade para a gente opinar. É a PF que tem que investigar”, afirma a indigenista do Cimi.

A prisão de Ediney Holanda dos Santos, em 2019, só ocorreu pelo trabalho de investigação que próprio Cimi fez. No Youtube, a organização encontrou vídeos em que ele vendia lotes na TI Karipuna. Dias depois, o vídeo foi excluído pelos autores. “O crime organizado está tão sem vergonha que eles, além de fazer a ilegalidade, publicam na internet”, diz Laura.

Para a indigenista, não basta fazer operações pontuais sem que se chegue à cadeia do crime que, segundo ela, envolve nomes poderosos do setor econômico e da política. “A gente encontra uma roça formada de pessoas que entram todos os dias dentro da terra indígena. Os Karipuna conseguem identificar, passam as coordenadas para a Polícia Federal, para as demais autoridades, dizendo que em tal lugar tem retirada de madeira. Quando a fiscalização vem, só chega depois que retiraram toda a madeira. Alguma coisa tem aí”, questiona a indigenista.

“Até 2019, essas fazendas (vizinhas à TI Karipuna) não existiam. Eram áreas de floresta. Hoje não tem mais floresta. Tem placas de fazenda, coisa rara de encontrar antes”, conta Laura Vicuña à Amazônia Real.

À luz do dia

Caminhões com madeira ilegal na BR 319
(Foto: Michael Dantas/WWF-Brasil)

Outro indicador de que os invasores perderam o medo de serem flagrados em sua prática ilegal é que eles já não se sentem mais intimidados em transportar madeira à luz do dia. “Os criminosos se sentem legitimados pelo discurso do atual presidente [Jair Bolsonaro]. Eles não têm medo de sair com um caminhão cheio de madeira em plena luz do dia. Coisa que no passado eles faziam à noite ou de madrugada”, afirma a indigenista.

A situação só se agravou depois que o governo de Marcos Rocha (PSL), apoiador de Bolsonaro, aprovou projeto de lei que desafeta duas áreas protegidas: a Reserva Extrativista (Resex) Jaci-Paraná e o Parque Estadual de Guajará-Mirim. Elas atuavam como uma espécie de anteparo para a TI Karipuna. Fruto de sucessivas invasões desde meados dos anos 2000, a Resex Jaci-Paraná é o símbolo da engrenagem da indústria da grilagem em Rondônia e sua destruição se tornou uma dor de cabeça para os Karipuna. Em novembro de 2021, o Tribunal de Justiça de Rondônia decidiu pela inconstitucionalidade da lei que desafetou as duas UCs. 

“A gente sempre vinha dizendo que isso [a desafetação da Resex] ia fortalecer as invasões de nosso território, e isso fortaleceu mesmo”, diz André Karipuna. “Depois que o governo cortou os parques estaduais e a Resex a situação piorou. Nós não fomos chamados para nos ouvir. Eu sei que simplesmente eles cortaram”, desabafa o cacique durante a viagem da Amazônia Real na TI Karipuna.  

Grande parte das pressões ocorre com o incentivo do próprio governo de Rondônia, acusado de ser omisso sobre o Cadastro Ambiental Rural (CAR), instrumento que, na prática, tem legitimado o crime de invasão de terras públicas no Estado e em outras partes da Amazônia – e não importa se elas estão dentro de unidades de conservação ou terra indígena. De acordo com o cacique André Karipuna, ao menos 87 CARs emitidos pela Sedam foram identificados em áreas sobrepostas ao território Karipuna. É o crime de papel passado.https://flo.uri.sh/visualisation/8871650/embed?auto=1A Flourish chart


Leia as reportagens da série “A destruição de Rondônia”.

A fraude do CAR

Emissão indevida de Cadastro Ambiental Rural provoca invasão na TI KaripunaPor Elaíze Farias e Karla do Val, da Amazônia Realcompartilhe  

Manaus (AM) e São Paulo (SP) – Há um ano, os Karipuna lutam para cancelar 87 registros de imóveis registrados no Cadastro Ambiental Rural (CAR) que estão, na totalidade ou em parte, dentro de seu território indígena. Em 3 de março de 2021, o Ministério Público Federal de Rondônia expediu recomendação para que a Secretaria de Estado do Desenvolvimento Ambiental (Sedam) cancelasse esses cadastros e remetesse, em um prazo de 60 dias, um relatório discriminando as alterações e cancelamentos procedidos, indicando as fraudes identificadas.

Os próprios Karipuna já entraram com uma ação (1005670-21.2021.4.01.4100) contra a União e a Fundação Nacional do Índio (Funai), pedindo a desintrusão (saída de não indígenas) e alguma proteção para o território. No processo, eles pedem a condenação do Estado de Rondônia para que deixe de aceitar registros no CAR, caso incidam sobre áreas indígenas. Mas a 5ª Vara Federal Ambiental e Agrária da Justiça Federal de Rondônia preferiu ficar com a versão dos invasores. O juiz federal substituto Shamyl Cipriano afirmou que não ficou demonstrado a correlação entre as invasões e os desmatamentos dentro da TI Karipuna. “Ainda, não se pode dizer aqui que há omissão do Estado de Rondônia na prestação desse serviço, uma vez que não foi juntado aos autos nenhum CAR homologado com área sobreposta à TI Karipuna”, segundo o juiz. A assessoria jurídica do Cimi recorreu da decisão. 

O que é o CAR

O Cadastro Ambiental Rural (CAR) é um registro público de imóvel rural de regularização criado pelo Código Florestal em 2012. Deveria, em tese, botar ordem na casa. Na prática, é a porteira para que a grilagem, o roubo de madeira e fazendeiros ilegais se apropriem de terras que não são suas. Com o CAR, o Brasil criou uma forma de legalizar a ilegalidade e não há o menor sinal de interesse dos governantes para que esse cenário seja revertido.

Quem entra com um registro no CAR está autodeclarando que é dono da área, mas não comprova a titulação. Qualquer brasileiro pode fazer isso agora, mentindo ou falando a verdade. A função desse cadastro seria garantir o cumprimento da reserva legal do imóvel rural, primeiro provando a regularidade ambiental e depois recuperando áreas degradadas até o limite estabelecido em lei – na Amazônia, 80% da área tem de ser preservada.

A inscrição no CAR é o primeiro passo para obtenção da regularidade ambiental do imóvel. Cabe a cada Estado brasileiro estabelecer o CAR, cujos registros são integrados ao Sistema de Cadastro Ambiental Rural (Sicar). Entre os benefícios de se registrar no CAR está a possibilidade de obter financiamento com taxas de juros menores para promover iniciativas de preservação voluntária de vegetação nativa, proteção de espécies da flora nativa ameaçadas de extinção, manejo florestal e agroflorestal sustentável e obtenção de crédito agrícola.

Governo libera cadastro

Cacique André Karipuna (Foto: Alexandre Cruz Noronha/Amazônia Real)

Para o cacique André Karipuna, a emissão de CARs pela Secretaria de Desenvolvimento Ambiental de Rondônia é o principal indutor para a invasão do território. “Quem está liberando esses espaços, vamos dizer assim, querendo doar uma terra que não poderia, é o governo do estado que está liberando os CAR, o cadastro rural, junto com a Sedam”, denuncia. “Os invasores estão usando esse documento para poder entrar na terra, que por lei isso não poderia estar acontecendo, numa terra que é homologada, é registrada.”

Sobre os 87 registros, a única informação enviada pela Sedam à reportagem é que “a identificação e o cancelamento dos CAR sobrepostos às terras indígenas no estado estão ocorrendo paulatinamente”.

O Sicar é um sistema eletrônico, mas a transparência de seus dados remete aos tempos em que processos desapareciam em escaninhos e prateleiras para nunca mais serem encontrados. Os números variam e não há dados precisos. A Sedam de Rondônia não informa com exatidão quando ocorre a atualização dos dados. A agência Amazônia Real tentou desde janeiro obter alguma informação, mas o órgão não respondeu às perguntas.

Desde sua criação, contudo, criminosos passaram a usar a ferramenta para grilar e roubar áreas protegidas e terras indígenas, como acontece na TI Karipuna. É o que o pesquisador do MapBiomas Marcos Rosa descreve como “mau uso” do CAR, pois ele não foi feito para regularização fundiária. Segundo Marcos Rosa, muitos que autodeclaram o CAR em determinada área explora a ignorância e a falta de informação para usar o instrumento como um documento de propriedade.

“Se o CAR toca uma terra indígena, automaticamente ele tem que ficar inativo. Não pode constar como ‘sendo avaliado’”, explica Marcos Rosa. “Se o cara quer avaliar, depois ele entra com processo para avaliar. Mas isso não é feito hoje. O Serviço Florestal Brasileiro diz que não é responsabilidade dele, que é do Estado.”

Mais invasões

Vista aérea arredores T. I. Karipuna
(Foto: Alexandre Cruz Noronha/Amazônia Real)

“A Sedam diz que o CAR é válido só depois que ela vistoria. Como ela não tem perna para vistoriar, na prática, o CAR fica num limbo”, afirma a procuradora da República Tatiana de Noronha Versiani Ribeiro. Os Karipuna já perceberam que a simples possibilidade de realizar o cadastro gera uma pretensão nos invasores, que logo querem se apossar do que não é deles. “O sistema deveria bloquear. Não deveria nem poder ter qualquer espécie de registro, ainda que autodeclaratório e feito antes da vistoria.”

A indigenista Laura Vicuña, membro do Conselho Indigenista Missionário (CIMI), adverte que muitos registros de CARs estão em nome de “laranjas” (proprietários falsos). Essa tática oculta os verdadeiros criminosos que, em geral, são grandes empresários e políticos com interesses nas terras indígenas e nas unidades de conservação.

A falta de transparência e a dificuldade de acessar os nomes dessas pessoas é um dos grandes obstáculos das organizações indígenas e indigenistas, do MPF e da imprensa. No site da Sedam, é possível ver apenas os números dos cadastros, sem detalhamento. A reportagem tentou obter da Sedam mais informações, mas não obteve respostas do órgão. Os mesmos dados foram solicitados pela Lei de Acesso à Informação, mas houve negativa do órgão, sem nenhuma justificativa.

“Uma pessoa com poder aquisitivo baixo não consegue construir a estrutura de uma ponte no valor de quase 40 mil reais. Não tem poder aquisitivo de derrubar 100 hectares para plantar pasto. A gente fala: é uma organização criminosa. Agora, comandada por quem? Por quem tenta legalizar o crime organizado. E essas estratégias de lei de desafetação de áreas de proteção, isso é prova de que se quer legalizar o crime organizado”, diz Laura Vicuña.

A indigenista do Cimi alerta que, na prática, o CAR virou um instrumento político de legitimação da invasão na TI Karipuna, pois só a sua existência sugere que, de forma ambígua, que o local tem um ‘dono’ que sabe que o crime compensa.

Parece um contrassenso criar um registro no CAR em áreas protegidas, já que essa propriedade não pode ser regularizada. Contudo, os invasores munidos de um papel oficial acabam por atuar nas franjas da ilegalidade, sempre na expectativa de que possa haver uma redução de uma unidade de conservação ou a não-demarcação da terra indígena. Em Rondônia, essas situações aconteceram e premiaram grileiros, madeireiros e fazendeiros.

Historicamente ameaçados

Os Karipuna foram contatados pelo homem branco em 1978. Cinco anos depois já surgiram as primeiras denúncias de ataques ao povo. Em 1985, a Terra Indígena perdeu cerca de 40 mil hectares da faixa sul de seu território, a partir da estrada BR-421 (Ariquemes/Guajará-Mirim).

A solução foi adotada pelo Incra e pelo governo de Rondônia para poder abrigar 184 colonos vindos do Paraná entre os anos de 1977 e 1985. Pelo acordo, o Incra se comprometeu em adotar um zoneamento fundiário na área liberada, com o objetivo de orientar uma ocupação mais racional e de menor impacto sobre as TIs Karipuna e Lage.

A TI Karipuna foi demarcada por meio do Decreto 1.775, em 8 de janeiro de 1996, pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso, influenciado pela pressão direta do Banco Mundial, por meio do Planafloro. O projeto executado durante os anos 1990 objetivava o manejo dos recursos naturais em Rondônia pela criação de áreas protegidas. Os 167 milhões de dólares investidos resultaram num rotundo fracasso.

As obras do Complexo Hidrelétrico do Rio Madeira com as usinas de Santo Antônio e Jirau dentro do território dos Karipuna, já nos governos de Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff, trouxeram novos riscos aos Karipuna. Desde 2015 tem ocorrido crescentes invasões na TI. 

A expansão da BR-429 e a abertura das rodovias estadual RO-420 e da federal BR-421, esta última dentro da unidade de conservação Parque Estadual do Guajará-Mirim, facilitaram a ação de invasores e madeireiros. O MPF conseguiu embargar as obras (processo 0002602-91.1995.4.01.4100) da BR-421. Em reação, a Assembleia Legislativa de Rondônia promulgou a  Lei nº 1.193/2014, que autorizou a abertura da BR-421 dentro da Unidade de Conservação vizinha à TI Karipuna, sob a alegação de que haveria situação de emergência nos municípios afetados por inundações e enchentes dos rios adjacentes.

A BR-421 começou a ser construída na década de 1980. Com a enchente do rio Madeira no ano de 2014, a rodovia voltou a ser utilizada, sendo liberada pela Lei 1.193/2014, da Assembleia Legislativa de Rondônia. O argumento era de ser a única alternativa de conexão entre os municípios da região. A intenção de reativar a passagem era tão importante no cenário econômico local e regional, que a ex-presidente Dilma Rousseff “defendeu a Estrada Parque”, alegando sua fundamental importância para a ligação dos municípios isolados com a BR-364 infundada pelas águas do Madeira. A “Estrada Parque” foi a estratégia adotada pelo governo estadual para burlar a proibição imposta pela Justiça Federal às obras da rodovia federal.

Plano de destruição

Desmatamento dentro da TI Karipuna (Foto: Acervo Cimi)

A partir de 2017, as invasões no território Karipuna se intensificaram. E uma das explicações é que os destruidores da floresta contam com um instrumento que chancela o desmatamento em territórios indígenas e áreas de conservação. Criado em 2012, mas regulamentado apenas dois anos mais tarde, pela Instrução Normativa do Ministério do Meio Ambiente, de 5 de maio de 2014, o CAR não tem contribuído para preservar a floresta.

Entre 2020 e 2021, o território mais que dobrou a taxa de desmatamento (120%), segundo dados do Imazon, divulgado neste ano. Levantamento divulgado em outubro de 2021 pelo povo Karipuna, Greenpeace Brasil e Cimi na TI Karipuna identificou 850 hectares de desmatamento ilegal no território da etnia entre agosto de 2020 e julho de 2021 – aumento de 44% em relação aos doze meses anteriores. Só na região do rio Formoso da TI Karipuna foram desmatados 510,3 hectares, dos quais 483,77 hectares (ou 94,7%) registrados nos seis primeiros meses de 2021.

Levantamento realizado em dezembro de 2021 pelo MapBiomas, em parceria com a Amazônia Real, analisou dados do cadastro ambiental rural obtidos por meio do Sicar, do Serviço Florestal Brasileiro. A análise se circunscreveu aos imóveis inscritos no CAR nos municípios de Porto Velho, Nova Mamoré e Buritis sobrepostos à Terra Indígena Karipuna e às Reservas Extrativistas Jaci-Paraná e ao Parque Estadual do Guajará -Mirim.

Os dados sugerem uma sobreposição de 22 imóveis e não de 87, conforme denunciam os Karipuna e o MPF. A procuradora da República Tatiana de Noronha afirmou à Amazônia Real que a Sedam garantiu ao MPF que já cancelou os CARs sobrepostos.

Dos 15.462 imóveis com cadastro ambiental em Porto Velho, 9 estão dentro da TI Karipuna, sendo que 4 cadastros ambientais já foram cancelados judicialmente e 5 estão sob análise, com pendências. Outros 195 imóveis inscritos no CAR estão dentro da Resex Jaci-Paraná, dos quais 15 estão ativos e 180 se encontram pendentes, sob análise. Na Floresta Nacional do Bom Futuro há 39 imóveis inscritos no CAR, sendo que 8 cadastros estão ativos, 7 foram cancelados administrativamente e 24 estão sob análise, com pendências.

Em Nova Mamoré, são 13 sobreposições à TI Karipuna, sendo que 12 delas foram canceladas judicialmente e 1 continua ativa. Outros 16 imóveis estão localizados no Parque Estadual Guajará-Mirim, sendo 2 ativos, 10 pendentes e 4 já tiveram o CAR cancelados administrativamente.  E 10 estão pendentes. Dentro da Resex Jaci-Paraná, são 24 imóveis com inscrição ambiental, dos quais 4 estão ativos e 20 pendentes. Já em Buritis, 13 imóveis estão localizados dentro da Resex Jaci-Paraná, sendo 1 ativo e 12 em análise. Os dados atualizados do MapBiomas indicam que os destruidores de Rondônia já têm um alvo preferencial: as unidades de conservação. (Colaborou Fábio Pontes, de Porto Velho)

Moradores que invadiram terra em TI Karipuna (Foto: Alexandre Cruz Noronha/Amazônia Real)

Mais bois

Como a pecuária e a soja avançam em União Bandeirantes, um distrito-símbolo da grilagem de terrasPor Fabio PontesElaíze Farias e Karla do Val, da Amazônia Realcompartilhe  

Porto Velho (RO), Manaus (AM) e São Paulo (SP) – O acesso à União Bandeirante se dá pela rodovia estadual RO-010. É um dos maiores distritos de Rondônia, localizado a cerca de 160 quilômetros da capital Porto Velho. Trafegar por essa estrada de barro é de uma monotonia sem fim, com fazendas de gado nos dois lados da pista. É por ela que se tem acesso às linhas ou aos ramais que levam à Resex Jaci-Paraná e à Terra Indígena (TI) Karipuna. É neste ponto que o território dos Karipuna sofre mais pressão com o roubo de madeira e a grilagem. União Bandeirante é uma espécie de base, um distrito não oficializado, para quem atua nesta dinâmica da grilagem de terras em Rondônia.

Com pouco mais de 30 mil habitantes, o distrito tem as ruas todas em terra batida e tomadas pela poeira e a lama nos dias de chuva. Foi ali que a agência Amazônia Real encontrou João Marcelo de Souza, presidente da Associação dos Pequenos Agricultores Rurais do Assentamento Renascer (Aparar). Ele exerce a função desde 2012.

No nome da associação, já há duas contradições. Em vez de um projeto de assentamento nos moldes dos implementados pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), o que há ali é uma Unidade de Conservação. E os agricultores associados não são tão pequenos assim. Na estrada, é possível presenciar propriedades de todos os tamanhos. De correto na associação, apenas a sigla parece fazer a referência: aparar a floresta é uma questão de primeira ordem entre os fazendeiros.

As casas nem de longe passam a impressão de pertencer a produtores rurais que vivem da agricultura familiar. A criação de gado é a atividade econômica principal na região, mas plantações de café e milho também são encontradas.

Já áreas de floresta não são mais visíveis de forma farta; apenas pequenas fatias de mata deixadas como reserva legal. A comercialização de terras dá sinais de ainda estar ativa dentro da reserva. Na frente de uma das propriedades, a reportagem encontrou uma placa informando sobre a venda de lotes. “Vende-se 10 alqueires”, anuncia-se na entrada do Sítio Modelo.

Apesar de ser o líder da associação, João Marcelo passa parte de seu tempo no distrito de União Bandeirante. Ele é conhecido como “João Poceiro” por trabalhar na limpeza e manutenção de poços artesianos. Num lugar desprovido de saneamento básico, os poços são vitais para garantir o acesso à água.

O presidente da Aparar recebe a Amazônia Real em sua casa, localizada numa esquina de um dos bairros de União Bandeirante. A residência tem um amplo quintal de uma grama perfeitamente aparada. Num dos cômodos, que serve como depósito para as ferramentas, ele busca pastas e cadernos com as anotações das atas das reuniões da Aparar. 

Ele mostra a carteira de membro da associação, não plastificada e desgastada pela ação do tempo. Para ele, o maior orgulho é a Aparar possuir um número de CNPJ, o Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica, exposto na fachada da sede, localizada dentro da Resex Jaci-Paraná.

João Marcelo diz ter chegado com as primeiras famílias que passaram a ocupar lotes dentro da UC, no início dos anos 2000. “Na época, eram aproximadamente mais de 100 famílias. Cada um fez suas ocupações nos seus lotes, fez as barracas e foi ficando”, diz ele. O presidente da Aparar afirma que todos tinham conhecimento de que a área se tratava de uma reserva extrativista. “Como todo mundo era sem-terra, não tinha terra, a gente foi ocupando. A gente queria um pedaço de chão para plantar.”

O presidente da Aparar nega que tenha havido venda de lotes dentro da Resex. “Foi tudo na base da marcação”, desconversa. A grande maioria das famílias tinha como origem o município de Jaru (RO), que ficaram sabendo da disponibilidade de terras nos arredores de Porto Velho.

De acordo com João Marcelo, o processo de ocupação da reserva foi marcado por altos e baixos, com ações de despejo realizadas. Após um tempo e conversas políticas, acordos permitiram que os invasores retornassem. E até apoio oficial obtiveram. Mesmo com a Resex Jaci-Paraná sendo invadida, a prefeitura de Porto Velho construiu duas escolas na região. Foi o sinal que eles precisavam voltar a ocupar os antigos lotes.

Outro apoio político garantido, explica João Marcelo, foi do então deputado estadual Maurão de Carvalho, que intermediou junto ao governo estadual para não haver mais operações de desintrusão. Em 2018, Maurão disputou o governo de Rondônia pelo MDB. Segundo o presidente da Aparar, os órgãos ambientais não voltaram a realizar operações policiais para despejo desde 2008. 

Em dezembro do ano passado, o pleno do Tribunal de Justiça de Rondônia julgou ação movida pelo Ministério Público Estadual que pedia a inconstitucionalidade da lei sancionada pelo governo Marcos Rocha que desafetou a Resex Jaci-Paraná e o Parque do Guajará-Mirim. A Corte formou maioria pela ilegalidade da medida. 

Naquela ocasião, a expectativa de João Marcelo era a oposta: a de que a desafetação fosse mantida pela Justiça. Sem isso, quem mora na área não possuirá o título definitivo nem a regularização fundiária das propriedades. E, se a lei fosse cumprida, como invasores, eles teriam de sair.

Explosão da pecuária

  • Fazenda de gado dentro da Resex Jaci-Paraná (Foto: Alexandre Cruz Noronha/Amazônia Real)

Dados do IBGE mostram que houve uma explosão da pecuária em Rondônia nas últimas décadas. Em 1970, o rebanho bovino do estado somava 41 mil cabeças de gado, número que saltou para 250 mil em 1980, 1,7 milhão em 1990, 5,7 milhões em 2000 e a 15,1 milhões em 2021.

Ter mais gado em lugar da floresta está longe de representar mais prosperidade. A plataforma Datazoom Amazônia permite visualizar o impacto da presença da atividade pecuária na Amazônia e, em particular, em Rondônia. A capital Porto Velho, em 2019, era o município rondoniense com o maior efetivo de rebanho bovino, contando com 1,1 milhão de cabeças de gado, mas o Produto Interno Bruto per capita era de 36,6 mil reais. Pimenteiras do Norte (RO), que também tem criação de bois, mas não em tão larga escala quanto a capital, tem um PIB per capita 59% maior que o de Porto Velho.

Em 2011, a capital rondoniense era o município mais próspero. Ou seja, em pouco mais de dez anos, mesmo se tornando a maior produtora de carne em Rondônia, Porto Velho voltou para trás. Brasília, a capital mais rica do Brasil, tem um PIB per capita duas vezes e meia maior que a de Porto Velho. Desde 2002, a capital de Rondônia vem aumentando a taxa de destruição florestal, alternando-se a partir de 2014 na liderança dos maiores recordistas municipais em desmatamento na Amazônia Legal.https://flo.uri.sh/visualisation/8894810/embed?auto=1A Flourish chart

Pela mesma plataforma, percebe-se que o PIB per capita caiu de 37,6 mil reais para os 36,6 mil, com dados atualizados para 2021. O Datazoom Amazônia é um projeto da Amazônia 2030, iniciativa do Instituto do Homem e do Meio Ambiente da Amazônia (Imazon), do Centro de Empreendedorismo da Amazônia, da Climate Policy Initiative (CPI) e da PUC-Rio.

A Agência de Defesa Sanitária Agropastoril do Estado de Rondônia (Idaron) emite cerca de 700 mil Guias de Trânsito Animal (GTAs), das quais 160 mil são para abate de bovinos, o que corresponde a uma média anual de mais de 2 milhões de animais abatidos em Rondônia. Apenas no primeiro semestre de 2021 foram abatidas 981.058 cabeças de gado no Estado.

Dados da Idaron consultados pela Amazônia Real mostram que em abril de 2020 havia 1.502 fazendas de gado bovino situadas em áreas protegidas de Rondônia. Nelas, a pecuária bovina comercial é (ou deveria ser) ilegal. O número de animais nessas áreas subiu de 125.560 em novembro de 2018 para 153.566 em abril de 2020. Para encobrir a ilegalidade, a maioria esmagadora desses bovinos é transferida para outras fazendas antes de ir para o abate.

A Idaron aponta que, em 2019, 93% dos bovinos (82.882) procedentes de fazendas localizadas em áreas protegidas foram transferidos para outra propriedade com a finalidade de engorda ou reprodução. Em abril de 2020 havia 323.570 bois em todas as áreas protegidas de Rondônia, incluindo aquelas em que a pecuária pode ser permitida por lei, como nas criações para subsistência. Esse número inclui os dados da Área de Proteção Ambiental do Rio Pardo e Floresta Estadual do Rio Pardo, cujas próprias existências estão em discussão no Tribunal de Justiça de Rondônia

Os 7% dos bovinos (6.316) que foram transferidos diretamente aos frigoríficos para abate fazem parte do esquema batizado de “lavagem de gado”. Esse esquema funciona da seguinte forma: animais de propriedades localizadas ilegalmente dentro da Resex são levados para outra área, fora da UC. Em questão de minutos, novas guias para o abate desses animais são emitidas. E tudo é documentado por meio das GTAs. Esse tipo de lavagem permite que frigoríficos se livrem da acusação de que estão comprando gado ilegal.

Em julho de 2019, o Ministério Público Estadual (MPE) de Rondônia ajuizou uma ação contra a Idaron para proibir a emissão dos GTAs, certificados veterinários e assistência técnica para qualquer gado bovino criado dentro da Resex Jaci-Paraná. O MPE pedia ainda que a Idaron adotasse medidas para desencorajar a produção de gado ilegal no interior dessa reserva e suspendesse a prestação de serviços que facilitam a pecuária bovina comercial.

A Idaron não só não discrimina o gado criado em áreas ilegais como chega a promover campanhas de vacinação contra a aftosa em qualquer tipo de propriedade. Ao regularizar com GTAs o gado proveniente de áreas de proteção, como reservas extrativistas, parques e terras indígenas, o órgão estadual valida o processo de “lavagem de gado” em Rondônia.

Consulta feita pela reportagem no site da Idaron, com dados de janeiro de 2021, apontam que o município de Buritis possui 3.314 propriedades com rebanho bovino, uma população de 50.354 cabeças de gado; Guajará-Mirim tem 712 propriedades, abrigando 132.599 unidades; Ji-Paraná possui 2.830 propriedades voltados à pecuária, com 381.863 cabeças de gados. Nova Mamoré abriga outras 4.245 propriedades, que, juntas, somam 739.147 de bovinos no pasto. Porto Velho é a recordista, com 7.778 propriedades voltadas à criação bovina, num total de 1.227.823 cabeças no pasto. O número de bovinos dentro da Reserva Extrativista do Rio Jaci-Paraná aumentou de 83.642 em novembro de 2018 para 105.478 em abril de 2020 – um aumento de 26%.

Amanda Michalski, mestranda em Geografia pela Universidade Federal de Rondônia, desenvolve pesquisas sobre a expansão da fronteira agrícola nas florestas e áreas protegidas do Estado. Ela afirma que os distritos de União Bandeirantes e Rio Pardo, no município de Porto Velho, e de Nova Dimensão, em Nova Mamoré, apresentam grandes proporções de novas áreas desmatadas incorporadas à atividade da pecuária extensiva. Os distritos também são responsáveis pela pressão de áreas protegidas, como no caso da Resex Jaci-Paraná e da TI Karipuna.

Apesar do incentivo à atividade agropecuária em Rondônia vir desde 1999, nos últimos anos, a pressão tem sido cada vez mais firme e explícita em favor do avanço da pecuária e, por conseguinte, da monocultura. Amanda afirma que nota-se um forte enfrentamento da bancada ruralista para que as Unidades de Conservação sejam, de fato, descaracterizadas e, a partir disso, possam ser anuladas, desafetadas, e vistas como áreas úteis para atividade pecuária. O exemplo foi a redução da Resex Jaci-Paraná, aprovada pela Assembleia Legislativa e sancionada pelo governo de Rondônia, ano ano passado.

“A gente não vê ações do governo para frear as invasões. O que a gente vê é uma proposta de lei que permite a atividade da pecuária para comprovar a posse da terra. A gente vê como o Estado tem atuado em relação à questão ambiental”, afirma Amanda. “O preço da terra é o que move essas ações de aumento da expansão das atividades madeireiras. Quando a gente vê esse aumento exponencial do preço da terra já é a chegada do agronegócio.”

Rondônia é um estudo marcado pela migração e pela ocupação de famílias em assentamentos que nunca deram certo. Segundo Amanda Michalski, os assentamentos faliram porque o Estado não deu suporte necessário para que as famílias permanecessem nas áreas. Mesmo com a titulação, o assentado pode vender sua terra, pois não possui assistência do Estado. 

O assentado vende, por exemplo, um hectare por 2 mil reais e, posteriormente, esse mesmo imóvel passa a valer 10 mil reais. “O que esses proprietários de fazendas fazem é o que a gente está cansada de saber, que é o ‘amansamento’ da terra para que, posteriormente, o agronegócio possa estar incorporando essas áreas para a atividade de monocultura no estado”, diz ela.

Paraíso dos frigoríficos

Frigorífico da JBS em Pimenta Bueno (Foto MPT-RO)

Rondônia abriga mais de duas dezenas de frigoríficos, entre eles os três maiores do país – JBS/Friboi, Minerva e Marfrig. Só na região da Jaci-Paraná operam 17 frigoríficos com a compra de gado em áreas potencialmente sobrepostas à Resex: Frigorífico Roma, Frigorífico Dallas, Frig S.A., Amazon Boi, Mafrico, Frigo Manaus, Distriboi, Irmãos Gonçalves, Frigorífico Tangará, Total S.A. (plantas de Rolim de Moura e Ariquemes), Frigorífico Nosso, Frigoari e JBS (plantas de Porto Velho, Ariquemes, Pimenta Bueno e São Miguel do Guaporé).

Comprometidos com o mercado externo, JBS/Friboi, Minerva e Marfrig garantem monitorar suas cadeias de fornecedores para certificar a origem dos animais. Relatórios já produzidos por outras entidades mostram, contudo, que esses conglomerados industriais se valem da frágil estrutura de fiscalização e controle para continuar a comprar gado de áreas protegidas.

O relatório “Da Floresta à Fazenda”, publicado pela Anistia Internacional em 2020, sugere a prática de lavagem de gado para burlar os sistemas de monitoramento existentes e vender à JBS gado bovino criado dentro da Resex do Rio Ouro Preto. Com base na análise de GTAs e CARs (Cadastro Ambiental Rural), em duas ocasiões de 2019, a JBS comprou gado bovino diretamente de uma fazenda situada na reserva extrativista.

A denúncia choca, uma vez que dez anos antes, a JBS havia firmado acordos (Termo de Ajustamento de Conduta – TAC) com o Ministério Público Federal e o Greenpeace, assegurando que suspenderia a compra de gado de fazendas situadas dentro de áreas protegidas. Em 2017, o Ibama aplicou multa de 24,7 milhões de reais à JBS pela compra de 49.468 bois de fazendas que haviam sido embargadas pela agência ambiental.

Segunda maior produtora mundial de carne bovina, com duas plantas em Rondônia, a Marfrig Global Foods obteve um empréstimo de 43 milhões de dólares do Banco Interamericano e seu braço financeiro privado, o BID Invest. Na carta de intenções, a companhia afirma que os recursos servirão para acabar com o desmatamento em sua cadeia de abastecimento até 2030. Em outubro de 2021, 200 organizações da sociedade civil do Brasil e do mundo publicaram uma carta aberta pedindo ao Banco Interamericano que reveja esse empréstimo. A própria avaliação interna do BID Invest adverte que o empréstimo acarreta sérios riscos ambientais e sociais, incluindo desmatamento, trabalho infantil e trabalho forçado.

Em 2017, a pesquisadora Amanda Michalsk conseguiu identificar para onde ia o gado de União Bandeirantes (Resex Jaci-Paraná). O fluxo, segundo sua análise, segue a rota de Ariquemes, Jaru, Jaci-Paraná, em Rondônia, até São Paulo. Esta é uma das rotas da carne ilegal. Desde 2018, a Idaron deixou de fornecer informações detalhadas sobre a rota do gado que saem de áreas protegidas, o que prejudica qualquer tipo de fiscalização. 

“Que gado é esse? São justamente os da JBS. Esses gados da cria passam para outra propriedade, às vezes é o mesmo dono. São gados de propriedades da Resex. Só que para eles serem comercializados precisam sair de lá e ir para outra área fora da Resex”, explica.

Segundo Amanda, no entendimento das autoridades de Rondônia, o gado dentro da Resex Jaci-Paraná não é ilegal. O que é ilegal é a venda dele. Então, como artimanha, os proprietários transferem o gado para outra área e então comercializam. 

Com as bênçãos da Idaron e da Secretaria de Estado do Desenvolvimento Ambiental (Sedam), responsáveis pelas emissões dos GTAs e CARs em Rondônia, de nada adiantou a criação do cinturão verde para proteger as áreas florestais. Os invasores se sentiram à vontade para tomar posse do território rondoniense. Essas frentes de invasão tinham como base os municípios de Buritis, Nova Mamoré, Porto Velho e Guajará-Mirim. Ao lado de Buritis, o distrito de União Bandeirantes – que pertence a Porto Velho – é apontado como principal ponto de partida para a invasão de terras públicas, sobretudo a Resex Jaci Paraná e a TI Karipuna.

A soja

Se a indústria da carne deixa pegadas na destruição de Rondônia, outro poderoso setor do agronegócio assiste de camarote e só espera a sua vez para avançar Amazônia adentro. A soja empurrou a pecuária do sul para o norte rondoniense, atingindo o interior da floresta e das UCs, a exemplo da Resex Jaci-Paraná e da Flona Bom Futuro, as duas áreas protegidas mais devastadas em Rondônia.

Dados do IBGE mostram que nos últimos dez anos, Rondônia quase triplicou a área utilizada para plantar soja. De acordo com a Associação Brasileira das Indústrias de Óleos Vegetais (Abiove), a quantidade de soja cultivada em áreas “não conformes” cresceu 23% na safra 2019-2020. Em termos percentuais, essa área para o plantio de soja foi a que mais cresceu em Rondônia, com 4.500 hectares para a temporada — um aumento de 54% em relação ao período anterior.

A oleoginosa é considerada a principal cultura agrícola do Estado, com participação no agronegócio de Rondônia correspondente a 90%. Na safra 2020/2021, a área plantada de soja aumentou 10,1%, algo em torno de 663,4 mil hectares, segundo a Secretaria de Agricultura de Rondônia. A produção de grãos na safra 2021/2022 está estimada em 2,6 milhões de toneladas e a área plantada deverá atingir os 675,3 mil hectares, de acordo com a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab).

Até 1998 somente cinco municípios participavam da produção de soja em Rondônia. Duas décadas depois, o espaço dessa atividade espalhou-se por 32 dos 52 municípios rondonienses, com o apoio explícito dos governos.

JBS afirma que monitora e tem plataforma

Em nota enviada à Amazônia Real, a JBS afirma que “monitora seus fornecedores há mais de uma década a partir dos critérios de sua Política de Compra de Matéria-Prima, que impede negócios com produtores de fazendas que tenham sido desmatadas e de áreas de conservação”. A empresa diz também que “para enfrentar o desafio setorial relacionado aos fornecedores dos fornecedores, a Companhia conta desde o ano passado com a Plataforma Pecuária Transparente, que permite ao fornecedor da JBS aplicar a seus fornecedores de gado os mesmos critérios socioambientais. A partir do fim de 2025, somente produtores que estiverem na plataforma poderão fazer negócios com a Companhia.”


A agropolítica

Em defesa do agronegócio, Executivo e Legislativo incentivam a invasão e o desmatamento de TIs e UCsPor Fabio PontesElaíze Farias e Karla do Val, da Amazônia Realcompartilhe  

Porto Velho (RO) – Quando o ex-ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles proferiu a infame frase “passar a boiada”, Rondônia já estava a todo vapor na adoção de uma agropolítica da destruição. Desde a posse do atual governador, o coronel Marcos Rocha (PSC), que conta com apoio majoritário da Assembleia Legislativa e é um ferrenho aliado de Jair Bolsonaro, mudanças na legislação estadual avançavam sem pudores sobre as áreas de conservação. Se o agronegócio não esconde seu interesse em expandir as suas fronteiras, é nesse Estado amazônico que ele encontra as porteiras escancaradas.

Trata-se de um ataque coordenado contra as áreas de proteção ambiental de Rondônia. E se o avanço do desmatamento ocorre há pelo menos três décadas no Estado, é sob o atual governo de Marcos Rocha que todos os limites foram esgarçados. Em abril de 2021, a Assembleia Legislativa aprovou a Lei Complementar 1.089/2021, de autoria do Executivo, suprimindo cerca de 220 mil hectares da Reserva Extrativista Jaci-Paraná (redução de 168 mil hectares) e do Parque Estadual Guajará-Mirim (redução de 55 mil hectares).

Em um vídeo que circulou na internet em 2020, o governador Marcos Rocha indicou ter apoio de Bolsonaro para sua política pró-pecuaristas, e conta que, quando foi questionado sobre a questão ambiental de seu Estado, declarou que que era “a favor de tirar o excesso de reservas porque tem reservas demais”. Para ele, essas áreas protegidas impedem o progresso na região. 

O Tribunal de Justiça de Rondônia declarou, em novembro do ano passado, que a Lei 1089/2021 é inconstitucional. Em seu voto, o relator do processo, desembargador Jorge Ribeiro da Luz, argumentou que a norma fere o artigo 225 da Constituição e os artigos 218 e 219 da Constituição estadual, que garantem o direito do ser humano ao meio ambiente ecologicamente equilibrado e atribuem a responsabilidade dessa garantia ao poder público.

A desafetação dessas áreas impacta diretamente as Terras Indígenas Karipuna, Uru-Eu-Wau-Wau, Igarapé Lage, Igarapé Ribeirão, Karitiana e os povos em isolamento voluntário na região que envolve as áreas protegidas, como a Resex Jaci-Paraná e o Parque Estadual Guajará-Mirim.

A “compensação”

Assembleia de Rondônia aprova Projeto que altera limites de reserva extrativista e cria parques de desenvolvimento sustentável
(Foto Diego Queiroz-ALE/RO)

Para simular uma compensação pela perda brutal de áreas de preservação, o governo estadual propôs a criação de dois parques e três reservas. Pela proposta, seriam criados o Parque Estadual Ilha das Flores (em Alta Floresta D’Oeste, com 89.789 hectares); o Parque Estadual Abaitará (em Pimenta Bueno, com 152 hectares); a Reserva de Desenvolvimento Sustentável (RDS) Bom Jardim (em Porto Velho, com 1.678 hectares); a RDS Limoeiro (em São Francisco do Guaporé, com 18.020 hectares) e a Reserva de Fauna Pau D’Óleo (em São Francisco, com 10.464 hectares).

No entanto, em 06 de julho de 2021, 44 dias após a vigência da norma, a Assembleia Legislativa promulgou as Leis Complementares 1.094 e 1.095, que extinguiu o parque Ilha das Flores e reduzia a área da RDS Limoeiro em 6.566 hectares. A “compensação” anunciada pelo governo estadual foi neutralizada pelas novas normas e ninguém mais falou sobre o assunto.

Em julho de 2021, o governador Marcos Rocha sancionou a Lei 5.069, de autoria do deputado Laerte Gomes (PSDB), que permite ao produtor rural obter financiamento a juros baixos junto a instituições financeiras, apresentando como garantia o rebanho bovino disponível na propriedade rural. A anuência será dada pela Agência de Defesa Sanitária Agrosilvopastoril do Estado de Rondônia (Idaron), a quem caberá tutelar a guarda dos animais disponibilizados na negociação financeira. A Idaron é o órgão estadual que emite a Guia de Trânsito de Animal (GTA), cujo histórico é o de fazer vistas grossas se o gado é proveniente de áreas protegidas.

Dois meses depois, os deputados de Rondônia aprovaram uma nova Lei de Zoneamento Ecológico Econômico (ZEE), o Projeto de Lei Complementar 85/2020. Nesse texto, foi autorizada a utilização de áreas já desmatadas para manejo do solo, dos recursos hídricos e de florestas remanescentes. O PLC estreita o limite entre as macrozonas um e três, por meio da utilização da zona dois, onde a produção agrícola também é regulamentada. 

Exploração madeireira

Caminhão com madeira ilegal na rodovia BR-319, em Rondônia (Foto: Michael Dantas/WWF-Brasil )

Rondônia ocupa a terceira posição no ranking de estados com maior área utilizada para exploração florestal na Amazônia. Entre agosto de 2019 e julho de 2020, 69.794 hectares em florestas do Estado sofreram com a exploração de madeiras. Desse total, 5.814 hectares (ou 8,3%) foram retirados ilegalmente de Terras Indígenas e Unidades de Conservação (UCs) de Proteção Integral.

Os dados são de uma pesquisa realizada pela Rede Simex, formada por Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon), Instituto de Conservação e Desenvolvimento Sustentável da Amazônia (Idesam), Instituto de Manejo e Certificação Florestal e Agrícola (Imaflora) e Instituto Centro de Vida (ICV). Com base em imagens de satélite, o estudo identificou que Porto Velho concentrou 42% da exploração madeireira no Estado – ou seja, 29.646 hectares, dos quais 3.307 hectares em territórios indígenas.

Madeira, gado e soja formam o triunvirato da destruição amazônica, e é em Rondônia que os invasores se sentem mais à vontade para atuar. É por isso que ribeirinhos, extrativistas e indígenas pedem socorro. 

Cercada pelas BRs 429, 420 e 421, que formam o eixo da devastação, a Terra Indígena Karipuna sofre com a ação de grileiros e madeireiros que invadem, desmatam e vendem a madeira ilegalmente e, depois, loteiam e vendem lotes. O prolongamento da BR-421 por cerca de 12 quilômetros intensificou o roubo de madeira dentro dos territórios indígenas. Os grileiros se aproveitaram da mudança do ZEE e invadiram uma vasta área antes considerada imprópria para a agropecuária em TIs. Eles só têm a agradecer ao governo estadual e à Assembleia Legislativa de Rondônia por permitirem que o crime fosse legalizado pela mudança no zoneamento que alterou a classificação das terras.

O avanço sobre áreas protegidas em Rondônia, como a Resex Jaci-Paraná e o Parque Estadual Guajará-Mirim, não diminui o ímpeto dos invasores por qualquer tipo de terra alheia. Por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI), a agência de dados independente Fiquem Sabendo obteve a lista de pessoas e empresas autuadas por infrações ambientais em UCs sob a tutela do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) desde o ano de 2009. A partir desses dados brutos, a Amazônia Real fez o recorte das UCs rondonienses e chegou ao valor de 291 milhões de reais em multas ambientais, sendo que 89% desse montante se concentrou em duas Florestas Nacionais, a do Jamari e a do Bom Futuro.

Nas planilhas obtidas pela Fiquem Sabendo, é possível verificar também os motivos para as infrações ambientais. Roosevelt Delanio Nantes é o recordista, que recebeu duas multas em julho de 2021 num total de 29,0 milhões de reais por destruir 2.888,91 hectares de floresta nativa dentro da Flona do Jamari e ter realizado atividade de garimpo no entorno da UC. Desde 2011, ele comete crimes ambientais na Flona do Jamari. Na Flona Bom Futuro, o campeão de multas é Jairo Herminio Vizioli, que entre 2013 e 2017 recebeu quatro infrações. Em uma delas, ele foi multado em 13,5 milhões de reais por destruir 1.347,52 hectares de floresta nativa no interior da UC.

As multas dos fiscais do ICMBio envolvem desde a construção de cercas, currais e outras estruturas para criação e manejo de gado, introdução de bois, supressão de extensas áreas de vegetação e queimar mata nativa dentro da Flona do Jamari e das Resex Rio Ouro Preto e Pacaas Novas, que compõem o cinturão verde no município de Porto Velho. O governo federal não informa o quanto dessas multas já foram pagas, mas especialistas afirmam que só uma minoria chega a quitar sua dívida com a União.

40% desmatada

Área de desmatamento em Rondônia (Foto: Bruno Kelly/Amazônia Real)

Em 1991, a área desmatada correspondia a 14% do território de Rondônia (34,6 mil quilômetros quadrados), percentual que subiu para 39,5% (96,8 mil quilômetros quadrados) em 2019. No ano passado, Rondônia bateu recordes negativos de área desmatada e se tornou a maior dos últimos 10 anos. Os dados são do relatório de janeiro de 2022 fornecido pelo Sistema de Alerta de Desmatamento (SAD) do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon). Rondônia ocupa a quarta posição no ranking dos nove estados mais desmatados em 2021, com mais de 4 mil quilômetros quadrados de floresta derrubados. 

Segundo nota técnica elaborada pelo Instituto Socioambiental (ISA) em dezembro de 2021, a partir de dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), o salto no desmatamento em Terras Indígenas dentro da Amazônia Legal foi de 138% entre a média dos três anos do governo atual (2019 a 2021) com os três anos anteriores (2016 a 2018). Rondônia é o segundo estado que mais sofreu com o desmatamento em Unidades de Conservação e Território Indígena (TI) nos últimos anos. As informações são do levantamento feito pelo Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam), publicado em fevereiro de 2022. Segundo o Ipam, as áreas mais afetadas ficam próximas de Porto Velho, São Francisco do Guaporé e Costa Marques. Entre elas, estão em destaque a TI Karipuna e a Resex Jaci-Paraná.

Outro dado que mostra o avanço da destruição em Rondônia é o BDQueimadas. O sistema de dados do Inpe revela que 39 das 69 TIs monitoradas registraram focos de incêndio de janeiro a novembro de 2021. Só a TI Karipuna, localizada nos municípios de Nova Mamoré e Porto Velho, contabilizou 62 focos, sendo a mais atingida.

A situação foi ainda mais grave nas UCs, segundo o BDQueimadas. No mesmo período, essas áreas que deveriam estar protegidas registraram 38.108 focos de incêndio. A Resex Jaci-Paraná foi a mais atingida, com 19.291 focos de queimadas, seguida do Parque Estadual de Guajará-Mirim, com 6.801 focos. https://flo.uri.sh/visualisation/8876440/embed?auto=1A Flourish chart

Ane Alencar, pesquisadora do Instituto de Proteção Ambiental da Amazônia (Ipam), afirma que em Rondônia acontece uma situação de retrocesso na qual a ilegalidade impera em quase todas as atividades relacionadas à questão de floresta e agropecuária. “O governo de Rondônia tem se posicionado a favor de uma expansão das atividades, mesmo que seja ilegal, em vez de dizer ‘vamos tirar os invasores e barrar’”, diz a pesquisadora.

“A mesma coisa acontece com as terras indígenas (de Rondônia). O desmatamento começou a ficar forte nos últimos três anos. O que tem que ser feito é tirar dali todo mundo, enquanto ainda dá tempo”, acrescenta Ane Alencar, frisando que o imbróglio da aprovação de leis antiambientais cria no inconsciente coletivo que essa área vai perder o status de proteção algum dia.

Lavagem de madeira

Policial federal na operação Verde Brasil em Rondônia durante apreensão de madeira ilegal Foto: Cabo Estevam) (58)

Para tentar frear a destruição em Rondônia, a Polícia Federal deflagrou a Operação Floresta S.A., que ocorreu em abril e em junho de 2021.  O alvo foi interromper a exploração predatória de madeiras na TI Karipuna e os métodos de lavagem do produto empregados pelas serrarias de União Bandeirantes, distrito de Porto Velho.

As investigações mostram que os donos das madeireiras desenvolveram um grande esquema de falsificação de Documentos de Origem Florestal (DOF), com inserção de informações falsas no Sistema DOF, plataforma administrada pelo Ibama. A PF constatou que madeiras extraídas da TI Karipuna eram comercializadas para consumidores finais, lastreadas com DOFs que continham informações falsas sobre sua origem. Entre 2012 e 2019, quase 70% das operações das madeireiras investigadas ocorreram dentro de Rondônia.

Amazônia Real procurou desde o início deste ano, em diferentes momentos, o governo de Rondônia, a Sedam e a Idaron para questionar sobre as suas respectivas atuações na Resex Jaci-Paraná e na RDS Guajará-Mirim, sem retorno. A reportagem enviou para as autoridades de Rondônia perguntas por e-mail e por Whatsapp a respeito das GTAs, dos CARs expedidos ilegalmente, entre outras questões, mas não obteve respostas.

A Funai e a PF também foram procuradas desde janeiro, mas os órgãos não responderam às perguntas da reportagem sobre as ações e operações contra invasores na TI Karipuna e sobre as novas denúncias das lideranças indígenas. Em um país e em um Estado governados por aliados do agronegócio, o silêncio é eloquente.

Associação dos invasores da Resex Jaci Paraná
(Foto: Alexandre Cruz Noronha/Amazônia Real)

O último seringueiro

Almir Chaves de Melo é o único extrativista que resiste dentro da Resex Jaci-ParanáPor Fabio Pontes, da Amazônia Realcompartilhe  


Distrito de Jaci-Paraná (RO) – Ao navegar pelo rio Jaci-Paraná, a impressão é a de que toda a região encontra-se bastante preservada pela densa floresta nas duas margens. E está igualmente inabitada, ao contrário de outras partes da Amazônia onde sempre é possível encontrar um ribeirinho navegando pelos mananciais. Procurar o último morador da Reserva Extrativista (Resex) Jaci-Paraná, o seringueiro Almir Chaves de Melo, é o desafio a que se impõe a reportagem da agência Amazônia Real. É ele quem pode mostrar que a histórica luta pela preservação é pura ilusão: basta adentrar um pouco pela mata e só se veem fazendas. E que no lugar dos extrativistas, que partiram ou foram expulsos, estão os invasores.

Para se chegar tanto por via fluvial como terrestre à Resex e à Terra Indígena Karipuna, o ponto de partida é o distrito de Jaci-Paraná, a 80 quilômetros de Porto Velho pela BR-364. Por estar no caminho para a capital do Acre, Rio Branco, Jaci-Paraná tem um movimento intenso de veículos pesados. A presença das grandes propriedades de gado e soja fazem o vilarejo respirar o agronegócio. Um outdoor recepciona os visitantes. “Jaci-Paraná – RO apoia o presidente Jair Bolsonaro. Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”, lê-se no anúncio. A propaganda é quase onipresente pelas rodovias que cruzam Rondônia.

Embarcar em uma voadeira, a partir de um flutuante às margens do Jaci-Paraná, confere, por algum tempo, a sensação de deixar para trás um ambiente carregado. Em Rondônia, movimentos sociais, indígenas e ambientalistas são marginalizados, perseguidos e acusados de travar o desenvolvimento. E a lógica da destruição, histórica, ganhou no bolsonarismo a sua expressão máxima. Eles estão presentes nessas áreas que deveriam ser preservadas em Rondônia.

A Resex Jaci-Paraná foi uma das que mais perderam cobertura florestal entre as Unidades de Conservação (UCs) na Amazônia brasileira. Em 2021, essa Resex apresentava uma perda de mais de 80% de cobertura florestal, tendo parte de sua floresta já sido convertida em pastagem. Só em outubro do ano passado foram registrados 206 focos de incêndio na Resex Jaci-Paraná, segundo dados do Projeto Queimadas/Inpe.

Após três horas subindo o rio numa manhã chuvosa, chega-se à colocação do último seringueiro da Resex Jaci-Paraná. A única pista de sua localização era procurá-lo na primeira casa após as “Três Meninas”, como é chamado o ponto de encontro entre um trio de ilhas no rio Jaci-Paraná. O vazio populacional dessa região se explica tanto pela expulsão dos extrativistas pela invasão da UC, quanto pela construção das usinas hidrelétricas do rio Madeira. O encontro do Jaci-Paraná com o Madeira se tornou uma espécie de grande lago represado, onde gigantescas torres de transmissão de energia parecem flutuar. Muitas famílias tiveram que ser reassentadas porque suas áreas foram inundadas.

As canoas estacionadas às margens do barranco são o sinal da presença humana naquelas margens do Jaci-Paraná. Do rio, avista-se numa terra mais alta a casa de madeira do último seringueiro morador da reserva extrativista. A residência afastada das margens é a estratégia dos ribeirinhos da Amazônia para escapar das cheias anuais. 

“Acabaram com tudo”

Uma casa de farinha coberta com palhas é onde o seu Almir Chaves recebe a equipe da Amazônia Real. Após três horas de chuva subindo o rio, a água continua a cair. Em uma outra casa, é onde ele guarda as ferramentas de trabalho com a terra, para cuidar dos roçados e plantações de onde tira os alimentos. 

A casa onde mora com a mulher é uma construção simples em madeira coberta com telhas de zinco. Seu único luxo é uma TV de LED na sala e uma geladeira. Os equipamentos só são acionados poucas horas por dia, para economizar a bateria de sua placa solar. O sinal de TV é captado por meio da antena parabólica colocada ao lado da residência.

Apenas o seringueiro e sua companheira moram ali, além dos cachorros que fazem companhia ao casal. A esposa de Almir prefere não dizer o nome. Não se trata de vergonha. O receio é compreensível diante de tantas pressões e ameaças a que estão submetidos por estarem cercados por fazendeiros.

Dos 120 alqueires que a colocação do casal tinha quando chegou à Resex, no final da década de 1990, os invasores só deixaram que eles ficassem com 60 alqueires. Metade foi derrubada para dar lugar ao pasto, que não lhes pertence mais. Se tentasse questionar a derrubada dentro de sua área, Almir sofria intimidações. 

“Antes a gente tinha os nossos vizinhos que viviam da mesma profissão. Hoje em dia não. A gente só vive rodeado por fazendeiros. A gente sempre sente muito. Acabaram com a floresta, acabaram com tudo”, explica o último morador da Resex para a Amazônia Real.

Os demais seringueiros que moravam na unidade de conservação foram, um a um, sendo pressionados pela ação dos invasores e sem nenhuma proteção por parte do Estado. Tiveram que ir embora para preservar a vida. Conforme lembra Almir, a Resex Jaci-Paraná chegou a contar com mais de 30 famílias cadastradas, reunidas na Associação Bem-Te-Vi, da qual ele foi o último presidente.

Como só ele restou, não havia mais sentido em manter a associação. De lembrança só ficou a antiga sede, uma construção em madeira já deteriorada pela ação do tempo no distrito de Jaci-Paraná. 

Entre os que precisaram ir embora está o filho mais velho de Almir, que agora sobrevive como pescador pelas redondezas do vilarejo. Num passado não muito distante, as famílias conseguiam sobreviver do corte da seringa, da coleta da castanha e da extração do óleo de copaíba. Também pescavam, criavam pequenos animais e cultivavam roçados. Com a destruição da mata, viver apenas do extrativismo ficou inviável.

“Para você ganhar um dinheiro hoje, para sobreviver, tem que lutar muito. Naquele tempo era muito mais fácil. Você tinha muito mais floresta. Você tirava um cipó, tirava uma castanha, uma copaíba. Tudo que era de extrativismo aqui nessa região acabou. Até pra tirar copaíba está ruim”, afirma o seringueiro. 

Dos tempos da extração do látex, Almir guarda ferramentas como a faca e o balde colocado logo abaixo dos riscos na seringueira, para onde escorria o leite da árvore. As ferramentas ficaram, mas as lembranças não são muito boas por conta do baixo valor pago pelo quilo da borracha naquela época: um real. Diante da exploração, muitos deixaram de tirar o látex da seringueira.

Cinturão verde

Seu Almir, último remanescente dos extrativistas originais da Resex Jaci-Paraná (Foto: Alexandre Cruz Noronha/Amazônia Real)

Almir Chaves chegou à Resex Jaci-Paraná em março de 1999. Ele vinha de Candeias do Jamari, município vizinho a Porto Velho, já fugindo de invasões de terras públicas que aconteciam na região. Buscava um lugar dentro da unidade de conservação onde pudesse estar seguro e viver do extrativismo. Mas nem o fato de ali ser, na teoria, uma área protegida estadual, o livrou da ação dos grileiros.

“Quem trouxe a gente para cá foi o pessoal da associação, da organização dos seringueiros. Trouxeram a gente de barco, me deixaram aqui e abri essa colocação”, lembra Almir. Mesmo após ter perdido metade de seu seringal para os grileiros, orgulha-se de ainda ter parte da floresta preservada. “As áreas de reserva que sobraram mesmo, que permanecem em pé, é só essa que eu estou aqui. Essas áreas de floresta que vocês veem por aí é mais beira-rio. O resto é só campo, só gado.”https://flo.uri.sh/visualisation/8875986/embed?auto=1A Flourish chart

A Resex Jaci-Paraná foi criada na década de 1990 com outras unidades de conservação estaduais e federais para criar um cinturão verde no município de Porto Velho. O mosaico era composto de áreas protegidas no município vizinho de Guajará-Mirim, formado por UCs federais e do Estado, além de terras indígenas. Ali se encontram UCs como a Floresta Nacional (Flona) do Bom Futuro, a Resex Pacaas Novas e a Resex do Rio Ouro Preto.

Um caso recente julgado pelo Judiciário exemplifica como se dá esse processo de ocupação de áreas públicas em Rondônia. Em março de 2021, o Superior Tribunal de Justiça julgou o Recurso Especial 1807443 – RO, que condenou a pecuarista Almida Beltramini de causar dano ambiental e dano moral coletivo. Na denúncia do Ministério Público do Estado de Rondônia, Almida se autodenominou possuidora de uma área de 142,1 hectares localizada na Resex Jaci-Paraná. Entre 2001 a 2007, a pecuarista desmatou toda mata nativa para formar pasto para alimentação de bovinos. Ela foi condenada na Justiça a recuperar a área degradada.

O surpreendente, senão bizarro, é que Almida está devidamente cadastrada na Relação de Propriedades, Fichas de Animais e Seus Respectivos Responsáveis, Localizados Dentro da Resex Jaci-Paraná da Agência de Defesa Sanitária Agropastoril do Estado de Rondônia – Idaron. A pecuarista, agora condenada, declara possuir 685 bovinos dentro da Resex Jaci-Paraná, na Fazenda Mayan, em nome de Flávio Kioshi Ueda, localizada no LH 07, Km 70.

Os advogados Paulo Araújo e Neilton Santos informam que Almida “já está providenciando” um projeto de recuperação da área que degradou dentro da Resex, mas que ela manterá a posse da propriedade, uma vez que “somente as atividades incompatíveis serão retiradas, cumprindo assim tudo o que lhe foi determinado”.

De acordo com eles, a posse é anterior à criação da UC e que a criação da Resex recaiu sobre áreas de pastagens que já estavam presentes. E na nota enviada à Amazônia Real, os defensores da pecuarista afirmam: “No Estado de Rondônia, assim como na maior parte do Brasil, as propriedades rurais começam como posses em área devolutas da União até sua regularização fundiária. Neste caso, a posse já mansa e pacificada foi prejudicada pela criação da RESEX, razão pelo qual o termo ‘grilagem’ ou ‘degradação ambiental’ não se amolda no presente caso.”

A luta dos seringueiros

Placa do agronegócio em Guajará-Mirim
(Foto: Alexandre Cruz Noronha/Amazônia Real
)

As terras que formam o Estado rondoniense foram colonizadas a partir da exploração do látex da seringueira entre o fim dos séculos 19 e o início do 20. Um de seus conhecidos desbravadores é o marechal Cândido Rondon (1865-1958), de onde vem o nome Rondônia. Antes era o Território Federal do Guaporé, depois Território Federal de Rondônia, conquistando a autonomia como Estado em 1982.

Responsável pela chamada Marcha para o Oeste, expedição do governo brasileiro aos estados do Centro-Oeste, (chegando posteriormente a Rondonia), Rondon liderou as tentativas de contato com os povos indígenas. Os encontros nem sempre eram amigáveis, havendo confronto ou fuga dos indígenas para as áreas de floresta mais inacessíveis.

Esse processo colonizatório resultou no extermínio de muitas etnias por conta de doenças para as quais os corpos dos indígenas não estavam protegidos. Os Karipuna estão entre as vítimas deste processo, quase sendo extintos.

A construção da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré provocou fortes impactos para as populações indígenas. Aqueles que não eram usados como mão-de-obra, tinham as suas terras afetadas, sendo obrigados a se mudar. É por esse motivo que até hoje Rondônia registra a presença de grupos em isolamento voluntário. Concebida para escoar a produção de borracha entre Brasil e Bolívia, a Estrada de Ferro Madeira-Mamoré se resume atualmente a sucatas de ferro das antigas locomotivas que circulavam entre Porto Velho e Guajará-Mirim, cidade localizada na fronteira entre os dois países.

As duas cidades estão interligadas pelas BR-364 e BR-425, que praticamente seguem o mesmo traçado da ferrovia. Algumas das pontes por onde antes passavam as locomotivas agora servem para o tráfego de carros e caminhões. Diferente da paisagem de quase um século atrás, agora às margens das rodovias entre Porto Velho e Guajará-Mirim só há grandes fazendas de gado e de soja.

“Bem-vindo a Guajará-Mirim, Terra do Avivamento. Aqui Jesus Cristo é o Senhor”, saúda um outdoor na entrada da cidade. Mais à frente, a fotografia de Jair Bolsonaro com seus lemas Deus, Pátria e Família dá as boas-vindas aos visitantes. Apesar de todas as pressões do agronegócio, Guajará-Mirim é apresentado como o município mais verde de Rondônia. A aparente contradição se justifica pela quantidade de unidades de conservação e terras indígenas dentro de seu território. Como são áreas federais, elas ainda estão preservadas por conta de uma atuação mais rígida de órgãos como o Ibama e ICMbio, mesmo com todo o desmonte por que passam no governo Bolsonaro.

Livres para desmatar

Fazenda em território da Resex Jaci Paraná
(Foto: Alexandre Cruz Noronha/Amazônia Real)

O Parque Estadual de Guajará-Mirim também está ameaçado pela onda de destruição de Rondônia. Com a sanção da Lei Complementar nº 1.089/2021 (considerada inconstitucional pelo Tribunal de Justiça de Rondônia no final do ano passado), o desmatamento no parque quadruplicou, com árvores derrubadas em um perímetro de 40 quilômetros quadrados dentro da UC. A facilidade em invadir e desmatar é tanta que os invasores e grileiros se sentiram empoderados o suficiente para atacar, segundo a organização WWF-Brasil. O Projeto Queimadas do Inpe registrou 46 focos de queimada no PE Guajará-Mirim até setembro de 2021. No fim do ano passado, os invasores receberam a tiros agentes ambientais e policiais do Batalhão Ambiental que realizariam operação dentro da unidade. 

Já a Resex do Rio Ouro Preto é definida como um dos últimos símbolos de resistência para as comunidades extrativistas de Rondônia. A UC é uma espécie de refúgio dos antigos seringueiros que fugiram das invasões de suas antigas colocações. Entre eles está José Maria dos Santos, responsável por organizar o movimento seringueiro no Estado, sendo conhecido como o “Chico Mendes de Rondônia”.

Tantos os seringueiros do Acre quanto os de Rondônia enfrentaram o mesmo processo de expulsão de seus seringais após a “falência” da economia da borracha e a invasão dos colonizadores vindos do Sul e Sudeste do Brasil para “ocupar a Amazônia’, incentivada pela ditadura militar (1964-1985). No Acre, a diferença é que esses conflitos foram encerrados após a criação das reservas extrativistas, acelerada depois do assassinato de Chico Mendes, em dezembro de 1988. Em Rondônia, esse movimento não prosperou.

Apesar da criação de um grande número de unidades de conservação e terras indígenas em Rondônia durante a década de 1990, o processo de invasão de terras públicas jamais foi estancado. A destruição da Resex Jaci-Paraná é um exemplo disso. Zé Maria testemunhou essa invasão.

“A criação da reserva se deu justamente para conter o processo de expulsão dos moradores. O objetivo da Organização dos Seringueiros de Rondônia (OSR) com a criação da reserva era garantir a posse da terra das famílias que já estavam lá há muitos anos”, lembra Zé Maria.

Para tentar conter as invasões, a própria OSR – com apoio de outras organizações – pagava diárias para os policiais irem a campo expulsar os grileiros. “Lá no Rio Branco acontecia de ficar a gente numa margem do rio e na outra os grileiros com as barracas montadas dançando e dando tiro pra cima. Daí eles foram ganhando espaço até chegar ao ponto de hoje praticamente a Resex Jaci-Paraná não existir mais”, lamenta Zé Maria. Segundo o líder dos seringueiros, a pressão para as invasões da UC acontecia com apoio da classe política rondoniense. “Vieram invasão com apoio de deputado, apoio político. Davam o rancho [para quem invadia], e o Estado não foi suficiente, capaz de manter a integridade. A obrigação do Estado seria manter a integridade da unidade”, recorda. (Colaborou Karla do Val)

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